Quase 10 meses após o grito do Ipiranga proclamado por D. Pedro, as últimas tropas portuguesas fugiam da Bahia, abandonando definitivamente suas pretensões de manter o controle metropolitano sobre o Brasil. A cidade de Salvador amanheceu livre, e contam os relatos que naquele 02 de julho de 1823, o dia nasceu bonito, o sol brilhou intenso, diferente dos dias de chuva comuns no mês de junho. Não à toa que o hino ao 02 de julho traz nos seus primeiros versos:
“Nasce o sol ao 02 de julho, brilha mais que no primeiro. É sinal que nesse dia, até o sol brasileiro!”
Sim, esse artigo trata da independência do Brasil. Não, o autor dessas linhas não se equivocou trocando a data do 07 de setembro pelo 02 de julho. Em verdade, quando se trata da separação política do Brasil com Portugal, há muito mais coisas entre o céu e a terra que o mítico Grito do Ipiranga consegue explicar. É conveniente para uma visão tradicionalista e conservadora reproduzir o processo da independência do Brasil com uma rica trama palaciana, um jogo de xadrez no qual somente os “bem nascidos” e ilustrados tomaram parte. Nada mais falso, não haveria independência do país que viria a se constituir como Brasil, sem que uma verdadeira guerra de independência ocorresse na Bahia, em Pernambuco e outras regiões do nordeste.
Em 09 de janeiro de 1822, D.Pedro proclamava que não aceitaria às ordens vindas de Portugal e permaneceria no Brasil, esse dia entraria para a História como o Dia do Fico. Pouco mais de um mês depois, em 19 de fevereiro, as ruas de Salvador tornavam-se palco de batalha entre as tropas portuguesas do General Madeira de Mello e os regimentos brasileiros. Ao tentar evitar a invasão do Convento da Lapa pelos soldados portugueses, a Abadessa Joana Angélica tornou-se a primeira mártir da independência. A guerra pela independência na Bahia teve uma característica que até hoje ofende os sentidos e os desejos das classes dominantes: Ela teve cara, sabor e cheiro de povo.
Suas diversas batalhas geraram heróis e heroínas que vieram de baixo, que não tinham nomes pomposos, nem linhagem, brasões e sangue azul. Ao invés de Leopoldinas, tivemos Maria Filipa e Maria Quitéria. A primeira, negra escravizada, organizou outras mulheres iguais a ela para evitar que os portugueses tomassem a Ilha de Itaparica. A segunda, rebelou-se contra os paradigmas que impediam o ingresso de mulheres nas tropas. Disfarçada de homem, ingressou no Exército dos Periquitos. Aliás, este batalhão de voluntários foi criado e comandado pelo avô do poeta Castro Alves, Coronel José Antônio da Silva Castro, e recebeu o curioso nome de “periquitos” por causa do tom verde das suas fardas.
Sob o julgo do general português Madeira de Mello, o povo de Salvador resistia como podia. Grupos de capoeiras, formados por negros libertos ou não, enfrentavam os soldados portugueses nas ruas e vielas da cidade. Enquanto isso, o exército libertador avançava em sua marcha vinda das cidades do Recôncavo em direção a capital. Toda grande guerra tem sua batalha decisiva, e com a nossa não foi diferente. A batalha decisiva da Independência do Brasil foi travada bem longe do riacho do Ipiranga, e ocorreu na madrugada do 25 de novembro de 1822 em Pirajá. O embate em Pirajá envolveu milhares de soldados e é considerado um dos mais importantes ocorridos no continente americano durante o século XIX. O triunfo na batalha de Pirajá foi decisivo para as tropas brasileiras, o cerco a Madeira de Mello estava consolidado e o assalto para libertar Salvador tornou-se possível.
No livro “A elaboração da Independência”, Tobias Monteiro narra toda complexidade da batalha e captura um fato crucial, uma ação decisiva que não partiu de um general, mas de um simples corneteiro:
“A luta foi tremenda, a resistência heroica; mas após quase cinco horas de refregas, acudindo reforços chegados da cidade e para não ver o exército bipartido, os independentes estavam ao ponto de recuar e escolher na retaguarda melhor ponto de defesa.
Já galgavam os atacantes as encostas dos montes, certos de levar de vencida o inimigo, quando ouviram o toque sinistro de avançar cavalaria e degolar. O corneta, a quem o major Barros Falcão, que comandava a ação naquele ponto, dera ordem de tocar retirada, trocara, por conta própria, o toque destinado a anunciar a derrota dos irmãos de armas, pelo do ataque inesperado, donde veio a desordem e o pânico dos portugueses.
O estratagema providencial de Luís Lopes, que assim se chamava esse lusitano aderente à causa do Brasil, transformou subitamente a ação. Espantados da presença dessa cavalaria imaginária, com que não contavam, os portugueses estremeceram indecisos e, por fim, recuaram. Sem perda de um momento, prevalecendo-se os brasileiros da situação, ordenaram a carga das baionetas. As hostes quase vitoriosas vinham agora de roldão sobre a planície, fugindo amedrontadas, envolvendo as reservas na mesma dispersão e na mesma derrota.
Depois desse desastre e do último malogro da ação sobre Itaparica, o exército de Madeira ficou em total abatimento.”
Na já citada manhã ensolarada do 02 de julho, o exército libertador com quase 9 mil soldados e oficiais, marchou pelas ruas de Salvador sem que um único combatente estrangeiro restasse para se opor a resistência. Até hoje, todo dia 02 julho, um grande cortejo popular revive esse momento num desfile carregado de símbolos como o Caboclo e a Cabocla, referência a participação direta do povo na luta pela sua própria libertação.
No presente, assim como no passado, a chave da defesa da soberania nacional não está nas mãos de Bolsonaro ou das elites que o sustentam. Essa chave pertence a classe trabalhadora, ao povo que batalha. Sem este não existe soberania, sem a sua luta, não haverá verdadeira independência.
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