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TEORIA

A resposta revolucionária para o problema do negro nos Estados Unidos

C. L. R. James. Tradução: Maju Venâncio. Notas: Glória Trogo

Apresentação

Acompanhamos nas últimas semanas o desenvolvimento de mobilizações poderosas cujo estopim foi a violência política que tirou a vida de George Floyd. O movimento negro americano é um gigante que neste momento representa a luta de todo o proletariado norte americano numa batalha multiétnica contra o racismo. 

Como contribuição às reflexões de milhares de ativistas no Brasil traduzimos um documento histórico de enorme valor programático para os marxistas. No texto de 5 de julho 1948 C. L. R. James, militante revolucionário, escritor de Os Jacobinos Negros traz uma lição teórica, programática e política ao sistematizar numa Resolução à décima terceira convenção do Partido Socialista dos Trabalhadores uma análise da questão negra no seu tempo.

Como se trata de um documento extenso vamos traduzi-lo em algumas partes. Apresentamos neste texto a primeira delas. Boa leitura!


A resposta revolucionária para o problema do negro nos Estados Unidos (parte 1)

Camaradas, nosso partido, com esta resolução, está se preparando para fazer uma entrada poderosa em uma capítulo da luta de classes que agora está sendo travada nos Estados Unidos. A decadência do capitalismo em escala mundial, a ascensão do CIO (1) nos Estados Unidos e a luta do povo negro precipitaram uma tremenda batalha pelas mentes do povo negro e pelas mentes da população dos EUA como um todo sobre a questão racial. Nos últimos anos, certos setores da burguesia, reconhecendo a importância dessa questão, fizeram uma poderosa demonstração teórica de sua posição, que apareceu na obra: Um Dilema Americano de Gunnar Myrdal (2), uma publicação que custou  250 mil dólares.. Determinados setores da pequena burguesia sentimental produziram os seus porta-vozes, uma das quais é Lillian Smith. (3) Isso produziu alguns frutos muito estranhos, o que resultou em um livro que vendeu cerca de meio milhão de cópias nos últimos dois anos. A pequena burguesia negra, radical e preocupada com o comunismo, também apresentou sua aposta na pessoa de Richard Wright, (4) cujos livros venderam mais de um milhão de cópias. Quando livros sobre uma questão tão controversa como a questão dos negros chegam ao estágio de vender meio milhão de cópias, isso significa que eles deixaram a esfera da literatura e agora entraram na a esfera da política. 

O Presidente Harry Truman fez sua declaração literária e teórica no relatório do Comitê de Direitos Civis (5) e também apresentou sua declaração política em suas recomendações ao Congresso para aceitar as propostas desse comitê. O Partido Comunista está fazendo o máximo possível no mesmo campo e declarou em uma de suas  plenárias recentes que o teste e o parâmetro de avaliação do trabalho do partido, de sua maturidade nos Estados Unidos, é o trabalho que ele fez e faz sobre a questão do negro.

É nessa batalha que agora nos propomos a entrar, de uma forma mais elaborada, mais consistente e mais militante do que entramos no passado. Esse é o primeiro significado desta resolução. Não é apenas um guia para as ações do partido; sua mera apresentação ao público significará que as políticas do genuíno bolchevismo estão agora prontas para competir totalmente armadas na enorme batalha que está sendo travada sobre a questão dos negros nos Estados Unidos.

Agora, o que temos a dizer que é novo? Em certo sentido – e cito –, “nada é novo”. O que dizemos nesta resolução estava “implícito”, foi uma “concepção subjacente” de nossa atividade no passado. Apareceu em muitas discussões de Trotsky e em vários artigos e discursos (6). Mas, no entanto, não apareceu de forma consistente, elaborada e finalizada, como nos propomos a fazer nesta resolução.

Podemos comparar o que temos a dizer que é novo, nesse sentido, comparando-o com posições anteriores sobre a questão dos negros no movimento socialista. O proletariado, como sabemos, deve liderar as lutas de todos os oprimidos e de todos os que são perseguidos pelo capitalismo. Mas isso foi interpretado no passado – inclusive por alguns socialistas muito bons – no seguinte sentido: “As lutas independentes do povo negro não têm muito mais que um valor episódico e, de fato, podem constituir um grande perigo não apenas para os próprios negros, mas para o movimento operário organizado. A verdadeira liderança da luta dos negros deve estar nas mãos do trabalho organizado e do partido marxista. Sem isso, a luta dos negros não é apenas fraca, mas provavelmente causará dificuldades aos negros e perigos ao trabalho organizado.” Essa, como eu digo, é a posição mantida por muitos socialistas no passado. Alguns grandes socialistas dos Estados Unidos foram associados a essa atitude.

Nosso ponto de vista

Nós, por outro lado, dizemos algo completamente diferente. 

Dizemos, primeiramente, que a luta dos negros, a luta independente dos negros, tem uma vitalidade e validade própria; que tem profundas raízes históricas no passado dos Estados Unidos e nas lutas atuais; possui uma perspectiva política orgânica, pela qual viaja, em um grau ou outro, e tudo mostra que, atualmente, está viajando com grande velocidade e vigor. 

Dizemos, em segundo lugar, que esse movimento negro independente é capaz de intervir com uma força extraordinária na vida social e política geral da nação, apesar de ser realizado sob a bandeira dos direitos democráticos e não ser liderado necessariamente pelo movimento trabalhista organizado ou pelo partido marxista. 

Dizemos, em terceiro lugar, e isso é o mais importante, que é capaz de exercer uma poderosa influência sobre o proletariado revolucionário, que tem uma grande contribuição a dar ao desenvolvimento do proletariado nos Estados Unidos, e que é em si uma parte constituinte da luta pelo socialismo. 

Deste modo, desafiamos diretamente qualquer tentativa de subordinar ou secundarizar o significado social e político da luta negra independente por direitos democráticos. Essa é a nossa posição. Era a posição de Lenin trinta anos atrás. Foi a posição de Trotsky, pela qual ele lutou por muitos anos. Isso foi concretizado pela luta de classes em geral nos Estados Unidos e pelas formidáveis lutas do povo negro. Foi aprimorada e refinada pela controvérsia política em nosso movimento e, o melhor de tudo, teve o benefício de três ou quatro anos de aplicação prática na luta dos negros e na luta de classes pelo Partido dos Trabalhadores Socialistas nos últimos anos. 

Agora, se essa posição atingiu o estágio em que podemos apresentá-la da forma que propomos, isso significa que entendê-la atualmente deve ser mais simples do que antes; e simplesmente observando a questão dos negros, o povo negro, ou melhor, as lutas que eles mantiveram e suas idéias, somos capazes de ver as raízes dessa posição de uma maneira que era difícil de ver há dez ou quinze anos atrás. Dizemos que o povo negro, com base em suas próprias experiências, se aproxima das conclusões do marxismo. E terei que ilustrar brevemente isso, como foi mostrado na resolução.

Primeiramente, sobre a questão da guerra imperialista. O povo negro não acredita que as duas últimas guerras e a que pode nos alcançar sejam resultado da necessidade de lutar pela democracia, pela liberdade dos povos perseguidos pela burguesia americana. Eles não podem acreditar nisso.

Sobre a questão do Estado, qual negro, particularmente abaixo da linha Mason-Dixon (7), acredita que o estado burguês é um estado acima de todas as classes, que atende às necessidades de todo o povo? Eles podem não formular sua crença em termos marxistas, mas sua experiência os leva a rejeitar essa porcaria da democracia burguesa. 

Sobre a questão do que é chamado de processo democrático, os negros não acreditam que as queixas, as dificuldades de setores da população sejam resolvidas através de discussões, do voto, de telegramas ao Congresso, do que é conhecido como “caminho americano”.

Finalmente, sobre a questão da ação política. A burguesia americana prega que a providência divina, em sua sabedoria decretou que deveria haver dois partidos políticos nos Estados Unidos, não um, nem três, nem quatro, apenas dois; e também por sua gentileza, a providência divina mostrou que esses dois partidos deveriam ser um, o Partido Democrata, e o outro, o Republicano, para durar a partir de agora até o fim dos tempos. 

Isso está sendo desafiado pelo aumento da população nos Estados Unidos. Mas os negros mais do que nunca mostraram – e qualquer conhecimento de sua imprensa e de suas atividades nos diz – que estão dispostos a romper completamente com essa concepção.

 

NOTAS

1 – Congress of Industrial Organizations – O CIO foi uma federação de sindicatos que organizou trabalhadores em sindicatos industriais nos Estados Unidos e no Canadá entre 1935 e 1955. Eles se recusaram a rejeitar o Comunismo (exigência legal à época para os sindicalistas) e defenderam os direitos dos negros americanos. Entre os anos 30 e 40 o CIO foi considerado uma referência da luta pela igualdade dos negros e negras nos EUA. 

2 – A obra: Um Dilema Americano – o problema do negro e a democracia moderna é um estudo de 1944 sobre relações raciais de autoria do economista sueco Nobel Gunnar Myrdal e financiado pela Carnegie Corporation de Nova York. O volume de Myrdal, com quase 1.500 páginas, detalha minuciosamente o que o autor via como obstáculos à plena participação dos negros na sociedade americana na década de 1940.

3 – Lillian Eugenia Smith (1897 – 1966) foi uma escritora e crítica social dos Estados Unidos, mais conhecida por seu romance best-seller Strange Fruit (1944). Uma mulher branca que abraçou abertamente a crítica à segregação racial e a luta pela igualdade de gênero. 

4 – Richard Wright escreveu Garoto Negro – Black Boy (1945), um livro de memórias no qual Wright descreve sua juventude no sul: Mississippi, Arkansas e Tennessee, e sua eventual mudança para Chicago, onde estabelece sua carreira de escritor e se envolve com o Partido Comunista. O Garoto Negro ganhou elogios nos Estados Unidos por causa da descrição honesta e profunda de Wright do racismo na América. Em 2019 este livro inspirou o filme da HBO “Filho Nativo”, de Rashid Jonshon. 

5 – Comissão encarregada de examinar a condição dos direitos civis nos Estados Unidos, produziu um relatório em dezembro de 1947. O Presidente Harry Truman enviou uma mensagem especial ao Congresso em 02 de fevereiro de 1948 para implementar as recomendações da Comissão sobre os Direitos Civis.

6 – Uma parcial compilação deses textos e discussões: https://www.marxists.org/archive/trotsky/works/1940/negro1.htm

7 – A Linha Mason–Dixon é um limite de demarcação entre quatro estados dos Estados Unidos da América. Faz parte das fronteiras da Pensilvânia, Virgínia Ocidental, Delaware e Maryland. O levantamento da linha de fronteira foi feito quando esses territórios eram ainda colônias inglesas. Depois de a Pensilvânia ter começado a abolir a escravatura em 1781, a parte oeste desta linha e o rio Ohio tornaram-se a fronteira entre os estados escravagistas e os abolicionistas (o Delaware, que se encontra a leste desta linha, permaneceu como estado escravagista).

 

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