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BRASIL

Jorgetânia Ferreira: a casa não é escola e a mãe não é a professora

Em memória de Miguel

Jorgetânia da Silva Ferreira*, de Uberlândia, MG

A situação da classe trabalhadora no Brasil é dramática. Já vivíamos graves crises política e econômica, um governo central, genocida e fascista e aí chegou a pandemia. Chegou pelo andar de cima, com as férias na Europa, e já se alastra como rastilho de pólvora pelas periferias – onde é mais difícil, ou praticamente impossível, o isolamento social. A Casa Grande quer ver corpos pretos e femininos na linha de frente do trabalho para proteger seus negócios. A “gripezinha” já matou mais de 42 mil pessoas enquanto escrevo, mas quando amanhecer provavelmente já serão mais um milhar. Isso sem falar da subnotificação e da falta de exames que mostrariam números reais e ainda mais assustadores. O número de mortes, excetuando o Covid, comparado com o mesmo período no ano anterior mostra, por exemplo, só na Europa, mais de 150 mil pessoas e aqui no Brasil pode ser ainda mais grave. 

Quem se importa com essas vidas? Vidas severinas, vidas negras, vidas pobres, vidas velhas, vidas adoecidas, como dizem governantes: tinham “comorbidades”.  Já chegam a dizer que não se cuidavam. E toca perder gente sem poder acompanhar os minutos finais, sem poder abraçar, sem poder velar, sem poder enterrar dignamente.

A nova mentira do capitalismo é dizer que vai passar. As melhores propagandas são as dos bancos: prometem ser bonzinhos daqui pra frente e adiar algumas parcelas de nossas dívidas, convidando-nos a fazer outras. Mas a pandemia só vai passar se a ciência descobrir vacina ou remédio que cure e, claro, se indústria farmacêutica permitir que todos os países tenham acesso. 

A crise política que vivemos não vai passar rapidamente, o genocida presidente representa parcelas importantes da sociedade brasileira, ele tem amparo social apesar de tudo – inclusive apesar dos crimes de responsabilidade que justificariam o impeachment. Não acredito que nada de novo possa ser construído naturalmente como resultado da pandemia. A experiência histórica nos lembra que a grande crise de 1929 foi sucedida pelo Nazismo e Fascismo. 

E como se não bastasse tudo isso, tenho que falar: a pandemia pode gerar uma endemia na educação brasileira: o tal do ensino remoto. Acusam docentes de tecnofóbicos, como numa fala da reitora da UFRJ. Não somos tecnofóbicos. Talvez a maioria de docentes tenha sido excluída historicamente de recursos tecnológicos importantes, mas há disposição da categoria para aprender. Não se trata disso. 

Trata-se das necessidades do capital de retomar sua empreitada em prol da privatização da educação no Brasil, que ocorre antes mesmo da pandemia. Trata-se ainda de criar, nas palavras do professor Roberto Leher, uma aparência de normalidade, com o retorno às aulas. Expressa o pensamento negacionista, que marca o governo federal. É uma desconsideração sobre a realidade que, em termos de pandemia, tem uma curva ascendente que, precisaria de muito esforço e ampla utilização da única “vacina” que temos no momento: o isolamento social. O andar de cima quer que o povo siga utilizando o transporte público e indo trabalhar, e no caso do ensino remoto, que a famílias vão até as escolas buscar as atividades impressas, enquanto eles fazem carreatas em carrões usando máscaras. 

É neste contexto que se inicia a volta às aulas, negação da trágica situação que vivemos e mascara os interesses dos capitalistas. E como tem sido esse retorno? De qualquer jeito. O governador do Estado de Minas Gerais, o Zema, do Partido “Novo“ propôs reabrir as escolas em 14 de abril. Enfrentou resistências dos/as trabalhadores/as da educação e uma decisão judicial o impediu. Logo reformou seu projetinho e deu início ao ensino remoto em 18 de maio. 

O ensino remoto é mesmo uma saída face a difícil situação em que estamos? Há viabilidade pedagógica? Profissionais da educação, estudantes e suas famílias foram consultadas sobre esse projeto? A resposta para todas essas perguntas é um sonoro NÃO. 

O ensino remoto que está sendo imposto na rede Estadual de Minas Gerais e na rede Municipal de Uberlândia não atende às necessidades pedagógicas mínimas, não foi construído com os/as profissionais de ensino, não foi considerada a opinião de estudantes e famílias e nem as suas condições reais. Em ambos os casos será utilizada a tv, TV Minas e a TV Universitária respectivamente. A própria Secretária de Educação admitiu que muita gente vai ficar excluída, por que o sinal da Rede Minas chega a 186 dos 853 municípios, o que representa uma cobertura de 22% dos municípios de Minas Gerais, sendo que 42% de estudantes da rede estadual ficarão sem acesso às aulas remotas pela tv.  O material produzido é de qualidade acadêmica ruim, os meios para a interação de docentes e estudantes são precários e insuficientes. A alternativa da prefeitura de Uberlândia de imprimir material para estudantes realizarem as tarefas sozinhas em casa, além de ineficiente tem gerado aglomerações nas escolas, colocando a vida de profissionais da educação e das famílias em risco. 

Mesmo que essa alternativa de aula pela TV fosse boa –que não é – é alarmante fato de o Estado de Minas Gerais retomar as aulas, de imediato, excluindo 42% de estudantes. Isso compõe um projeto de ampliação da exclusão e de falsificação da realidade, buscando a ideia de normalidade. Todas nós estamos exaustas e com desejo de fazer alguma coisa, de encontrar uma saída para as dificuldades que vivemos. Mas é importante não remendarmos esse tecido com um pano aparentemente novo. É importante pensar a quem esse projeto serve e não tenhamos dúvidas: serve aos interesses do capital. Não é a toa de que a Fundação Lemann, a Fundação Unibanco e entre outras estão patrocinando publicações sobre a educação à distância. Estão defendendo a importância de retomarmos as aulas de forma remota. O passo seguinte é mais precarização e justificativa para as privatizações. Por isso as escolas privadas já estão demitindo docentes e usando robôs para corrigirem provas. Isso garante alguma qualidade? Educação é isso? E mais: quem vai socorrer estudantes pobres?

No Estado de Minas Gerais, profissionais da educação que não receberam seus salários precisaram retomar as atividades. E, se não têm condições próprias para realizarem o teletrabalho de suas residências, precisam comparecer presencialmente. E aí vem com essa história de que é preciso reinventar – penso que essa é outra cilada perigosa, porque transfere para nós a solução de problemas que não criamos, uma responsabilidade de quem está no poder, de quem é governo. É o governo que precisa criar as condições para a garantia da educação de todos/as estudantes e as condições de trabalho dos/as profissionais. 

Essa crise toda é uma oportunidade fantástica para os nossos inimigos de classe imporem seus projetos de EAD, de escola sem partido, de negócios da Educação. Agora somos nós, docentes, que nos gravamos e somos expostos. Nas redes particulares de ensino, esse drama já se efetivou, deixando mais pessoas no desemprego. 

Temos que pensar a nossa resistência. Durante a Revolução Industrial trabalhadores/as quebravam máquinas que impunham desemprego. Se fosse hoje, teríamos que quebrar nossos próprios equipamentos, e aí temos que reinventar o que? Como profissionais da educação, em função da pandemia, vamos abrir mão de um projeto de educação escolar de qualidade, includente, que promova a inclusão social, que forme a pessoa na sua totalidade, considerando os valores, a formação para a cidadania, os direitos humanos por um ensino tecnicista e conteudista? Vamos mesmo aceitar a teleaula, como o Telecurso das Organizações Globo? Por que aceitaríamos? Educação se dá por meio de relações.

Mesmo em um projeto de sociedade liberal a escola é tomada como equalizadora de oportunidades. Se todos recebessem a mesma educação teriam, em tese, as mesmas condições de disputar um lugar ao sol. Sabemos que as condições não são iguais e que as econômicas definem as aprendizagens, mas concordamos sobre o papel importante da escola como direito e melhoria das condições de vida. Sim, quanto mais acesso aos conhecimentos acumulados pela humanidade, maiores as condições de ter uma vida melhor. Se a escola pode ser essa “janela de oportunidades”, a casa não pode. Dessa forma, o ensino domiciliar, o ensino remoto que está sendo implantado em Minas Gerais e em Uberlândia é, por natureza inadequado, excludente e mentiroso.

A pandemia agrava as desigualdades de classe, raça, gênero e deficiências. A casa não é e não pode ser escola. De acordo com a PNAD Contínua – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2019), 15% das casas no Brasil não tem água e somente 39% das casas têm computador e internet. Milhões de pessoas não têm banheiro em casa e milhões dividem o mesmo dormitório. Como fazer ensino remoto dentro dessas casas?  Sem água, sem computador, sem internet, sem banheiro. São assim as casas das pessoas excluídas pelo sistema educacional. Aceitaremos passivamente essa exclusão, para dar uma aparência de normalidade, de que estamos fazendo alguma coisa? E as pessoas moradoras de rua? Conforme o CadÚnico, Cadastro Único da Assistência, em outubro de 2019, havia 134 mil cadastradas como em situação de rua.

São muitas questões que precisam ser pensadas e respondidas. Deveríamos aproveitar esse tempo de parada forçada na educação escolar para pensar alternativas para o retorno às escolas. Assim como teve o projeto de lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, resultado da articulação coesa e vitoriosa do pessoal das artes e da cultura de nosso país, precisamos de uma lei de Emergência Educacional. São necessários mais recursos para construir urgentemente novas escolas porque não poderemos ter salas lotadas. Vamos precisar de mais profissionais de educação para turmas menores. As escolas vão precisar de novos equipamentos e, até os mais básicos como pias, a serem instaladas em diversos locais,  papel higiênico, álcool em gel, máscaras, papel toalha para secar as mãos. Tudo isso precisa ser planejado se desejamos garantir o direito humano à educação para todas as crianças, jovens e adultos. Deveríamos gastar nossas energias nesse planejamento sério.

Algumas pessoas dirão: estudantes de escolas particulares estão tendo aulas, isso também não é desigual? É verdade, porém não será essa pandemia que resolverá as desigualdades históricas na escolarização da classe trabalhadora em nosso país. Ela só agrava, não é mesmo? E se os exames não forem realizados? Se a carga horária remota não for validade como carga horária presencial? Se as avaliações não forem consideradas para o processo de classificação por séries? E se… todos/as pararem? Ninguém vai ficar para trás. Passada a pandemia, devemos retomar  de onde paramos, ou melhor o primeiro passo é uma boa recapitulação do que já foi considerado como objetivo atingido e depois um amplo diagnóstico para apontar os próximos passos dos processos de aprendizagens e ensinagens. Isso significa a construção coletiva de um bom planejamento e em boas condições. 

Como podemos notar há saídas. Dependendo do projeto que defendemos. O nosso é o de garantia do direito das maiorias. 

 

*Docente do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia e Militante do PSOL Uberlândia.