Ontem, dia 6/06/2020, abriu-se o caminho para a concretização de algumas demandas que já vêm sido levantadas pelo conjunto dos coletivos e organizações de pessoas negras em Portugal, mas com um acrescento: a unidade. A manifestação de ontem espantou, certamente, pelo seu porte. Foram mais de 10 mil pessoas que se juntaram a nós para percorrer desde a Alameda até ao Terreiro do Paço. Foram muitos também os coletivos de jovens, estudantes, feministas, LGBTQIA+, climáticos, contra precariedade, pelo direito à habitação e antifascistas que compareceram, ao nosso lado, para nos apoiar e se solidarizar contra a violência institucional que recai de forma agressiva sobre os corpos negros todos os dias na forma de violência policial e não só, que nos trata como descartáveis, menos humanos e que mata. Foi esta a forma visível que adotou a unidade que a classe trabalhadora liderada pelos coletivos de negros e negras portugueses e imigrantes tomou.
Dizemos, muitas vezes, que a unidade faz a força, mas a ideia de unidade que temos trazido até aqui é danosa. Impõe a grupos com especificidades que deixem cair as suas pautas e exigências para que possamos caminhar juntos e isso é falacioso. A unidade da classe trabalhadora não pode ser concebida como extensão da idealização burguesa de sujeito universal e isso significa abandonar muita da caracterização feita pelos partidos e organizações de esquerda até ao momento, não podemos cair em falsas universalidades e por isso, opto aqui não por dizer o que a classe trabalhadora não é e foco no que ela é: ela é negra, mulher, trans, cigana, lésbica, asiática, sul americana, indígena e tantas outras infindáveis coisas. E, se assim somos, a unidade não pode ser feita a qualquer custo, mas importa fazê-la e o dia de ontem provou, na prática, que é esse o caminho.
Só que o caminho não deve nem pode terminar no Terreiro do Paço ou numa manifestação, por mais massiva que ela seja. Importa também concretizar numa agenda de reivindicações que possam ser suportadas e impostas por uma plataforma alargada de coletivos e ativistas negros, negras, ciganos, ciganas e imigrantes.
Ontem não saímos pra assustar, mas assustamos
À semelhança do resto do mundo, também em Portugal nos afeta a pandemia do COVID-19. À semelhança do resto do mundo, as populações racializadas como a negra, imigrante e cigana são as mais expostas aos riscos porque somos nós quem vive em barracas ou casas de um só cómodo. Somos nós que continuamos a sair todos os dias em transportes públicos sem que tenha havido nenhuma preocupação com a distância de segurança ou outras questões sanitárias. Somos nós que continuamos sem contratos nas empresas de entregas e a ser forçados a ter que entrar em contato com muitas pessoas ao dia para sobrevivermos. Sem possibilidade de recorrer a apoios do estado e, em muitos dos casos, a ter que subsistir da solidariedade dos nossos. Quem pode trabalhar sob qualquer circunstância, tem passe livre para ocupar as ruas e expor as suas necessidades.
Para todos e todas que hoje nos criticam por questões sanitárias, fazemos um apelo: juntem-se a nós nesse projeto de unidade para dar vida e força à nossa campanha pela recolha de dados étnico-raciais nos sensos para que possamos saber quais são as condições nas quais vivem as pessoas negras, ciganas e imigrantes em Portugal; de forma a nos ajudarem não só a combater essas questões de insalubridade, mas também de saber quais são as necessidades específicas das pessoas que ontem ocuparam as ruas.
Estejam connosco quando nos mobilizarmos para exigir ao estado que passe a propriedade pública qualquer casa que não esteja a ser utilizada há mais de 10 anos e que sejam atribuídas a famílias, não só negras nem ciganas nem imigrantes, que necessitam e que também o sejam os edifícios que já estão neste momento abandonados.
Venham connosco exigir que os livros de história sejam descolonizados e que já não seja ensinado nem às nossas nem às vossas crianças que os descobrimentos foram um avanço para a humanidade! Vamos explicar que não há orgulho em ter escravizado as pessoas negras para acabarmos de vez com a ideia de que os corpos negros são descartáveis, que importam menos e que podem viver sem condições. Vamos parar de legitimar as agressões e homicídios ilegitimáveis da polícia contra pessoas negras, ciganas e imigrantes.
O que pretendemos é ser cidadãos de plenos direitos. Com direito a moradia condigna, escolas livres da versão colonial da história, direito à nacionalidade, investimento do estado nas nossas produções culturais, direito ao trabalho com contrato, queremos direito ao lazer sem ser expulsos das discotecas e cafés, queremos saber como os nossos vivem. Não estamos a pedir.
Se não querem que ocupemos as ruas, ajudem-nos a construir uma realidade onde não seja necessário ocupar as ruas senão para festas e celebrações.
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