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O vírus da memória: adiamento dos feriados e a cortina de fumaça do isolamento social

Sônia Meire

Professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Militante da Resistência-PSOL, primeira-suplente do PSOL na Câmara dos Vereadores de Aracaju (2021-2024)

“Comemoramos” nesta sexta-feira, 22, os 200 anos de Emancipação Política de Sergipe. Parabéns, só que não. Nesta semana a Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese) aprovou Projeto de Lei encaminhado pelo governador de Sergipe, Belivaldo Chagas (PSD), que antecipou o feriado da “Emancipação Política de Sergipe”, comemorado no dia 08 de julho e que completa 200 anos neste ano, para esta sexta-feira, 22 de maio. Seguindo a mesma orientação, o prefeito de Aracaju, Edvaldo Nogueira (PDT) apresentou projeto similar na Câmara de Vereadores, aprovando o adiantamento do feriado do São João para esta segunda-feira, 25 de maio. Duas datas importantes para o povo sergipano e nordestino. 

O que parece uma preocupação com a proteção da população sergipana, já que a medida visa fortalecer o isolamento social e reduzir a transmissão do vírus, demonstra uma incapacidade dos governos em lidar com a questão da pandemia e sua relação com a economia do Estado.  Mesmo eventualmente bem intencionadas, estas medidas não garantem ações permanentes de isolamento social que tanto precisamos. 

Ainda que a medida diminua a circulação de pessoas na capital sergipana, não se pode dizer o mesmo dos municípios. Recebemos relatos de pessoas que têm aproveitado o feriado para circular entre os municípios, visitar parentes e amigos, não há fiscalização para uso de equipamentos de segurança por parte dos transeuntes nos transportes públicos, muito menos controle nas estradas.

A CULPA É DO POVO?

Se analisarmos as justificativas apresentadas pelos governos, observamos um discurso que coloca a culpa na população de forma indiscriminada pela baixa adesão ao isolamento. O governador afirma em entrevista que “estamos muito preocupados com a baixa adesão ao isolamento social por parte da população (…)” 

Ora, como pode a população aderir ao isolamento se diversos negócios estão flexibilizados e se, para haver adesão da população é necessário a garantia dos empregos com salários? Como aderir de forma significativa se o próprio presidente Bolsonaro desmoraliza e desautoriza ações de isolamento? Como a população vai deixar de circular se prefeitos de diversas cidades estão permitindo a abertura de todos os negócios? Como as mulheres (diaristas e domésticas, por exemplo), vão deixar de trabalhar se os empregadores não garantem seus salários? Isolamento social se garante com firmeza, com enfrentamento, não com feriados. 

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO

A alteração dos feriados não é algo novo no Brasil, em época de pandemia essa prática se torna mais sugestiva. No entanto, devemos lembrar também que os feriados existem em razão do que se cultua e se conserva na cultura de um povo, suas histórias e memórias.  Neste sentido, em tempos de tantas incertezas, de tanta destruição e luto, a história e a memória são importantes referências para reconstrução do futuro de um povo e da própria humanidade. É neste sentido que discutimos que a alteração de feriados e datas pode promover a perda do sentido da construção de elementos da cultura e, consequentemente, a construção do sujeito.  Se é verdade que a cultura do isolamento necessita ser entendida para diminuir o contágio, é verdade também que o não entendimento da gravidade do problema necessita de referências históricas e da memória que marcaram os sentidos da vida de uma estrutura social construída a partir das desigualdades, da exploração, da negação do humano, do racismo, do sexismo, do patriarcado, das relações autoritárias, onde segue o ditado: “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. 

Essa cultura é a mesma que esteve no processo das chamadas “independências” com dependência econômica e política, do autoritarismo e da negação da ciência, da história; dos fundamentalismos que afastam a possibilidade de análise racional sobre os problemas e que promove o caos para que os mais pobres, a classe trabalhadora, tenha mais medo de perder o emprego que de se contaminar e, eventualmente, perder a vida. 

Não podemos simplesmente mudar as datas históricas, o conjunto da cultura arquivada nos subsolos da memória

Por essa razão que não podemos simplesmente mudar as datas históricas, o conjunto da cultura arquivada nos subsolos da memória sem discutir os sentidos do que comemoramos, do que celebramos, do que negamos como nossa história. Mudar as datas é também deixar de discutir o rompimento e as transformações dessas referências, buscando as verdadeiras histórias dos nossos ancestrais, dos antepassados. 

Nós não queremos deixar essas histórias para trás, pois elas estão em nossa memória onde a cultura hegemônica burguesa tentou apagar e deixar para trás. Nós não queremos mais deixá-las invisíveis. Por isso, as datas alusivas aos fatos são construções históricas sociais determinadas em um tempo e espaço cujas representações, símbolos só fazem sentido se eles forem trazidos dentro de uma teia de relações com outras datas e acontecimentos que fornecem uma lógica processual e contextual da mesma. 

EMANCIPAÇÃO DE QUEM?

A proposta atual é de antecipação dos feriados e, consequentemente, da comemoração da Emancipação Política de Sergipe e do São João. Uma emancipação recheada de controvérsias, quando Sergipe “ganha” um título por colaborar com a corte portuguesa ao combater os revolucionários pernambucanos, segundo descrição de Felisbelo Freire, citado pela professora Terezinha Oliva em diversas palestras.  

As escolas estão fechadas, não podemos realizar atividades culturais alusivas às datas, mas poderíamos ter uma programação online para tratar dessa problemática, ter em todos os meios de comunicação um horário aberto para discutir tal emancipação, com a participação de historiadoras e historiadores, de estudiosos da questão, de profissionais da área da Comunicação, da Arte e da Literatura, de professoras e professores… Mas nada teremos!

ESQUECIMENTO E MORTE

A data é apenas uma referência de feriado e, mais uma vez, o Estado enquanto ente público perde uma grande oportunidade de realizar um processo educativo que possa contribuir, até mesmo, para entender tanta dificuldade para isolamento social. 

O caos que estamos sendo levados é de responsabilidade de um Estado alinhado com o que tem de pior do imperialismo econômico, é perverso porque coloca as pessoas em tamanha situação de vulnerabilidade que lhe apresenta o caos como a única saída. Só que a saída é a morte, por isso, afirma o seu maior representante – o presidente da república: muitos vão morrer! E daí?

Afinal, isso não será possível mesmo, pois no fundo, a questão é garantir o lucro dos empresários mais para frente, pois nada será fechado em dia e horário algum quando minimizar essa pandemia, e o lombo dos trabalhadores e trabalhadoras vai queimar. Na realidade, a preocupação não é salvar vidas, pois as vidas perdidas têm cor e classe social.

 Na ótica dos governos, para quê discutir a emancipação política e o feriado juninos em tempos de pandemia? Precisamos de feriados para que o comércio e a indústria respeitem a quarentena? O que farão na semana seguinte? Adiantarão o Dia da Independência? O Dia de Finados? O Natal? Temos feriados o suficiente para adiantar até o fim da pandemia? Cremos que não. 

 

*Educadora, professora aposentada da Universidade Federal de Sergipe e militante da Resistência-PSOL

 

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