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BRASIL

A dinâmica da crise e o lugar da esquerda

Douglas Santos Alves
Fila da Caixa Econômica em Caruaru
Prefeitura de Caruaru / fotospublicas.com

Fila da Caixa Econômica em Caruaru

A pandemia no Brasil está colocando o país no topo da lista dos casos mais trágicos em escala mundial. O colapso do sistema de saúde já começou em algumas cidades e estados. É uma questão de tempo para se alastrar ao ponto de não ser mais um problema distante. O desemprego está jogando contingentes imensos da população no desespero. Sabemos que a simples volta ao trabalho infelizmente não irá resolver o problema, uma vez que se trata de uma crise econômica mundial. Setores inteiros da economia não vão ter sequer sinais de recuperação este ano e no próximo. Ou seja, não haverá recontratação, o auxílio do governo não só é pequeno, como está vindo parcelado, é burocrático e lento para ser pago, e também gera aglomeração, contribuindo para o aumento do contágio. Vale lembrar que o afrouxamento da quarentena no feriado da páscoa está por trás do salto nos números desta semana.

As coisas estão bastante ruins e tendem a piorar, de maneira muito veloz.  Dentro desse cenário vemos uma crise política imensa que fez Moro, o avalista moral do governo, romper “chutando o balde”. Um setor de seu eleitorado está profundamente estremecido e muitos começam a romper com o governo. As últimas pesquisas mostram deslocamentos importantes. Além disso, os argumentos que sustentam a unidade e a identidade do bolsonarismo estão progressivamente enfraquecendo conforme a realidade vai desmentindo o mito. Bolsonaro quer desesperadamente aparelhar a PF para fins escusos.

O STF está aumentando os choques com esse governo e jogam água no moinho da crise entre os três poderes. Pedidos de impeachment estão sendo empilhados na mesa de Rodrigo Maia. Além disso, suas declarações não causam mais o mesmo efeito de março. Não é uma gripezinha e as pessoas começam a reconhecer isso. Até aqui vimos números, e confiante na impessoalidade dos números esse governo debocha e desrespeita dos que faleceram, mas nas próximas semanas os doentes e mortos terão nomes. Eles não serão velados, talvez tenham que ficar em frigoríficos até uma retroescavadeira terminar de abrir a vala onde os caixões serão depositados. E todo mundo terá algum amigo, vizinho, parente ou colega de trabalho que foi vítima da pandemia. Esse será o momento do grande choque.

Amplas camadas da base social deste governo irão romper com ele. Mais ainda com esse processo de auto corrosão que Bolsonaro realiza. Contudo, nada de esquematismo, tais rupturas podem ir para qualquer lado e provavelmente não irão à esquerda no momento inicial. O efeito trágico dessa crise levará multidões desesperadas a ações radicais. Essa não é uma afirmação abstrata, trata-se de pessoas sem emprego, sem mesmo um “bico” para ajudar, vendo os seus adoecerem, recebendo a cada dia a notícia da morte de algum conhecido, não conseguindo atendimento nos hospitais, muitas dessas pessoas passando fome, e essas tragédias não virão isoladas e nem vai se tratar de casos individualizados. Isso acontecerá numa escala numérica que permite questionar a eficiência dos aparelhos repressivos do Estado.

O consenso social tende a fragilizar. Um policial consegue prender um trabalhador ou jovem desempregado que roubou um alimento, e o discurso de que se tratava de bandido justifica a ação e gera consentimento social. Mas quando se tratar de milhares de pessoas realizando saques será difícil prender a todos e, mais ainda, convencer a população de que essas pessoas estão erradas e merecem ser punidas. A face real do Estado tende a se mostrar.

O debate travado nos círculos de esquerda e também de direita mudará radicalmente, os acontecimentos simplesmente vão se impor. Na verdade, já estão se impondo, e os fatos colocarão à prova as fakes.

Por fim, a esquerda… Ah, a esquerda. Infelizmente a esquerda segue fragmentada, sem inserção nas camadas sociais mais pobres e com um debate político raso. A esquerda não estará lá onde ocorrerá a explosão social. Ao menos, não no começo. Sua agenda de debate segue deslocada da realidade da maioria, e é importante dizer que o debate na realidade da maioria também está se deslocando em função da pandemia. O PT infelizmente continua apostando tudo na busca por uma ampla coalisão para 2022. Não sei se sequer teremos eleição em 2020. Demais partidos de esquerda continuam com ínfima penetração social.

O debate teórico é fraco, o debate programático gira em torno de fórmulas esquemáticas ou de pautas imediatistas. Os debates das pautas sobre opressão e identidades foi incorporado muitas vezes de modo acrítico, tanto que círculos que se dizem socialistas agitam conceitos, palavras de ordem e teorias que criticam ou mesmo negam o marxismo. Deve-se dizer que em certa medida a esquerda sentiu-se intimidada por segmentos que disputam processos de luta da maior importância, e disputam para uma saída que, no fundo, concilia com a ordem e mantém a continuidade das relações sociais. Abraçou-se pautas de natureza especifista e/ou particularista que, pela sua base teórico-epistemológica, ou simplesmente pela posição política reformista, recusam a alteração global das relações sociais que produzem aquilo que elas querem mudar, como o machismo ou a LGBTIfobia, por exemplo.

Recentemente uma onda de lutas e protestos de trabalhadores de plataformas digitais e entregas (UBER, IFood, Amazon, etc) tem se espalhado em escala internacional. Isso gera certo alento e também mostra a necessidade de compreender como a organização de classe vai acontecer daqui para frente, considerando que o trabalho formal tradicional (CLT) está fortemente ameaçado. Aliás, um debate que os segmentos sindicais ignoram. Em resumo, contradições colossais estão postas hoje no Brasil e no mundo. Fala-se que, no terreno econômico, essa crise equivale a de 1929, mas pouco se fala que a grande depressão durou anos.

Urge debater programa, mas tomando como referência a totalidade dos desafios dessa nova situação. Ao contrário de antes, os problemas agora se apresentam com mais força e alguns se politizam. O papel do Estado com relação ao mercado está em debate. A ampliação das políticas de proteção social já é um fato e cabe entrar na discussão com mais ousadia. Os direitos sociais mais elementares tornaram-se urgência. O sistema de saúde passa a ser compreendido por mais e mais pessoas como algo político. As empresas privadas e seu papel na economia deve ser discutido com quem foi demitido. As novas tecnologias e as formas de organização do trabalho e da resistência de trabalhadores são uma realidade. Mas também é preciso debater a dimensão subjetiva desse processo. O desespero, a fome, o medo causado pelo desemprego, a violência doméstica, enfim, a subjetividade social e de classe.

Novas questões entram em cena, incluindo novas urgências, e isso altera a hierarquia e desloca algumas pautas. Até a eclosão dessa crise, alguns assuntos eram para círculos mais restritos de militantes; certos pontos simplesmente não despertavam o menor interesse nas pessoas de fora do ativismo militante; existiam pautas que eram de tão difícil compreensão que se chegava a duvidar da sua viabilidade. Pois bem, o impossível torna-se necessário e pode vir a ser inevitável. Se a esquerda conseguir minimamente sair das picuinhas internas, das zonas de conforto burocráticas sindicais e parlamentares e também sair do estado de intimidação posto por pautas e agendas reformistas pseudo-radicais de luta contra opressão, talvez possa assumir uma posição mais favorável para dar a disputa.

É preciso apontar uma saída que ofereça alguma esperança para quem está em pânico, que dê certo consolo para quem se sente abandonado e derrotado, mostrar-se confiável e, o mais importante, apresentar um horizonte de país, de poder, de organização das relações sociais que faça as multidões que irão explodir nas próximas semanas se sentirem contempladas, incluídas, pertencentes e também protagonistas. É preciso gerar identidade. Voltar a ser esquerda.