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TEORIA

Lênin e o bolchevismo, um século depois

Gabriel Santos, de Maceió, AL

Vladimir Ilyich Ulyanov, ou Lênin, para os íntimos, foi advogado de formação, trabalhou sobre economia, filosofia, teoria política, administração, entre outras coisas. Durante imensa parte de sua vida política, viveu ou exilado ou no cárcere. Nascido em 1870 entrou para a história com suas obras, suas ideias e com nome que escolheu nas lutas revolucionárias contra o Czar.

É o principal dirigente da Revolução Russa de 1917 e do Estado Soviético que se formará até 1923, quando a classe trabalhadora chegou ao poder pela primeira vez. Sua morte em janeiro de 1924 foi resultado de uma hemorragia cerebral em decorrência de um atentado sofrido em anos anteriores do qual nunca se recuperou completamente. Era um momento em que o país soviético começava a se reerguer, após três anos de guerra civil, onde o Exército Vermelho enfrentou exércitos de quase duas dezenas de países invasores, além das forças internas contrárias ao Poder Soviético. O melhor da vanguarda do país havia sido dizimada no conflito, e a burocratização já era um problema notável, e contra isto, Lênin, imobilizado em sua cadeira, dedicou seus últimos esforços políticos e intelectuais.

O Lênin esquecido

Apesar de ter contribuído de forma colossal para o marxismo, as obras de Lênin têm sofrido um certo boicote no restrito círculo da intelectualidade em comparação a de outros autores. Nas universidades, por exemplo, se Marx já é escondido, com Lênin acontece ainda pior, como aponta o filósofo Slavoj Zizek. Muitos acadêmicos tentam apresentar um marxismo que seja aceitável para a academia, buscando fazer uma distinção da teoria marxista e a ação revolucionária, quando se discutem diversos autores. Porém, com Lênin, tal operação é impossível. Se este revolucionário russo se caracteriza por ser aquele que melhor aplicou a “práxis”, suas obras não permitem a divisão que outros autores, incluindo o próprio Marx, sofrem.

Outros marxistas, acusam o pensamento leniano de ser datado. Em uma crítica aos movimentos que adotaram o mote de “marxistas-leninistas”, afirmam que erros políticos feito por velhos bolcheviques após a morte de Lênin, são uma consequência do pensamento deste. Afirmam também, que suas ideias não abarcam questões essenciais para nossa época. Que elas estavam dotadas de um suposto centralismo estatal no controle de uma sociedade industrial que não passou na prova da história. Os pensadores marxianos que pensam desta forma buscam, apagando todo o breve século XX, voltar a um marxismo que seria autêntico, esquecendo Lênin e retornando a Marx.

O retorno ao bolchevismo

Por outro lado, nos partidos e movimentos que reivindicam o revolucionário russo, é comum se resumir a genialidade de Lênin a uma leitura engessada de “O que fazer?”. É comum também o chamado a “retornar ao bolchevismo”, ou “precisamos ser mais bolcheviques”, cada um entendendo estas orientações como bem entendem, pois afinal, com uma centena de textos e artigos escritos, existem citações de Lênin para todos os gostos. Assim o “retorno ao bolchevismo” muitas vezes se torna uma guerra de citações.

Retornar ao bolchevismo é, antes de tudo, um desejo. Como todo e qualquer desejo ele traz pontos positivos na busca de sua realização. No nosso caso, é que ele mantém lembranças e ensinamentos sobre fatos do passado que ainda são úteis. No lado oposto, como todo desejo, também traz lado negativo, ainda mais o pretenso retorno ao bolchevismo ser, no mundo real, um fato impraticável.

Desta forma, ao se buscar um desejo que não se realiza, aquele que busca tal coisa acaba caindo em duas situações. Ao correr atrás de um desejo que nunca alcança, o militante em questão gasta suas forças e energias em uma proposta irrealizável, que acaba por cansá-lo e na desmoralização, a derrota é o fim. A segunda situação possível ao colocar a meta de “retornar ao bolchevismo” tem o mesmo fim da primeira, mas ela é oposta a aquela. Neste caso, o militante (ou grupo) que se dá esta tarefa, acaba por afirmar que a mesma foi alcançada, que se conseguiu o tão almejado retorno e que finalmente a tarefa foi comprida. Assim, tal grupo que “retornou ao bolchevismo”, se ver como detentor supremo da máxima revolucionária, os herdeiros de Lênin, e assim aplicam uma política que por excelência seria isolacionista, sectária, autoproclamatória. O sujeito ou grupo que age assim acaba cometendo  uma ato de autoilusão. Sua ação nada mais é do que uma farsa, uma reedição trágica e ao mesmo tempo cômica. Ele acredita ser aquilo que não é, e assim seu fim, no terreno da luta de classes, também é a derrota.

Ao se focar no desejo pelo passado, ocorre que ignora-se o presente e toda a contradição atuante e movimentação que o faz vivo. Ao escolher de forma consciente como solução o retorno ao passado, acaba-se por dar para este uma aparência de que está vivo, e assim, a este é transferido a tarefa de responder o tempo presente.

O mantra do retorno ao bolchevismo é, muitas vezes, uma espécie de busca sagrada ao nirvana, como meio de solucionar as angústias causadas pela luta de classes. É de fato uma pressão que assombra em especial os mais jovens na luta de classes ou aqueles que diante da imensidão da dificuldade das pressões atuais buscam de forma mística nos acertos do passado a solução para os problemas.

Este desejo por reeditar o passado gera problemas concretos no tempo presente e, consequentemente, uma inoperância no futuro. O desejo de “retorno ao bolchevismo” como um desejo de voltar ao passado, faz com que erros políticos cometidos neste passado que se busca sejam apagados. Se reconstrói lembranças e narrativas de um passado que tanto queremos, apagando eventos traumáticos que nos afastam de nossas memórias ideais. Se realiza uma falsificação histórica para melhor caber em nossos anseios.

Desta forma, no campo da política, dois exemplos opostos podem ser apresentados:

O primeiro se dá quando ao buscar “retornar ao bolchevismo” é construído seu projeto político apenas com acertos. Uma história gloriosa do partido é apresentada. Com um Lênin infalível e os demais dirigentes intocáveis. A história da União Soviética é transformada no conto do Éden na Terra. Um lugar perfeito, que venceu os problemas internos, enfrentou o imperialismo, se tornou uma potência mundial e derrotou o nazi-fascismo. Este tipo de ação acaba por levar quem a realiza para um corrente política majoritária durante grande parte do século passado, ou é uma ação consciente de leitura desta mesma corrente, que recebe de seus críticos o nome de stalinismo e se auto-denomina marxista-leninista. Os erros e crimes cometidos pela burocracia soviética são então apagados, ou busca-se justificá-los ou escondê-los, pois afinal, o bolchevismo não pode errar.

O erro oposto quando se faz uma leitura de que “retorno ao bolchevismo” é necessário, é justamente quando se busca canonizar todo o período anterior a morte de Lênin. Apontando que desde a origem o bolchevismo como fração interna do POSDR em 1903, até a morte de seu principal dirigente em 1924, a história da organização fosse perfeita. Negando as contradições existentes durante estes 21 anos, os erros, acertos, e mudanças políticas.

O retorno ao bolchevismo, ou a repetição do mesmo, só se faz com a negação deste desejo e com a aceitação de que o este é um fato irrealizável. É preciso entender que o mundo hoje é diferente da Rússia do Império Czarista das primeiras décadas do século XX, e que os revolucionários para transformar este mundo, precisam de uma organização que se enquadre nele. É entender o que existiu de particular no bolchevismo, e o que tinha de universal em sua concepção e em seu regime. Pois a repetição de Lênin e do bolchevismo é inalcançável, justamente por serem outras condições históricas as que temos hoje. Mas podemos, a partir de Lênin e de sua obra, construir o nosso modelo. Não se trata de abandonar Lênin, muito pelo contrário, mas de através dos caminhos e possibilidades que o mesmo abriu conseguir seguir e caminhar.

Hoje, temos a vantagem de estarmos montados no ombro da história, e assim olhar pra trás com possibilidade de vermos os erros e acertos das políticas e ações de Lênin e dos bolcheviques, feito por estes no calor na hora.

Podemos dizer que a obra de Lênin se coloca para nós, revolucionários do século XXI, como um pilar de uma construção se apresenta para uma construção. O pilar não é a construção e nem pode ser, mas faz parte da mesma. Assim, a obra teórico-política de Lênin faz parte de todo o conjunto do marxismo que nós devemos usar no combate ao capitalismo, tendo inclusive das melhores armas. Porém, as obras de Lênin não podem ser tratadas e vistas como o objetivo a ser feito, precisamos construir nossa própria casa a partir dos que nos foi legado.

A invenção do leninismo

As idéias de Lênin são uma incorporação feita ao conjunto do marxismo. No decorrer do século passado elas receberam o título de leninismo. Praticamente todo revolucionário comunista se tornava um leninista, sendo crítico da experiência soviética ou defensor da mesma.

O termo que se tornaria quase que universal dentro do movimento comunista foi originalmente edificado e ligado de forma intrínseca ao Partido por Zinoviev no V Congresso da Internacional Comunista, marcado pela política de bolchevizar os Partidos Comunistas de todo o mundo nas “Teses sobre a bolchevização”.

Porém, no mês anterior ao congresso, foi Stalin que em um curso para estudantes da Universidade Comunista Sverdlov, tenta pela primeira vez, organizar as ideias de Lênin, sistematizá-las e defini-las na obra Fundamentos do Leninismo.

A linha teórico-política do Partido passou a ser denominada de leninismo, um grupo de doutrinas que apesar de vagas deveriam ser seguidas e aplicadas. O marxismo, uma ciência viva, passou a se enquadrar em repetições e fórmulas. A palavra de Lênin aos poucos se convertendo em um dogma. Seus textos perderam o que tinha de mais marxista (a análise concreta de uma situação concreta) e se tornaram quase que citações bíblicas. Lênin se tornava infalível, inquestionável, e usando seu nome, a linha política era aplicada pelo novo grupo dirigente do Partido. Este leninismo passou a ser utilizado no combate interno do Partido, e de todo aquele que se distanciasse da linha oficial aplicada pelo organismo dirigente. O “luxemburguismo” e o “trotskismo” foram as primeiras e principais vítimas, a serem apresentadas como antíteses do leninismo.

O leninismo como linha teórico-política oficial do Partido, também teve reflexos na organização interna do partido. A palavra dos organismos superiores passou a se tornar praticamente inquestionável, aqueles que divergiam eram combatidos como inimigos da revolução. O regime específico aplicado no período de guerra civil, se tornaria uma regra absoluta, e a liberdade de crítica de um Partido vivo, era substituída por um partido monolítico.

Este novo regime interno do partido bolchevique era o oposto ao de toda história da organização. O centralismo-democrático é a máxima expressão da teoria leniana de Partido. Ao longo dos anos a fração bolchevique cometeu erros e acertos políticos, teve diversas táticas e viradas políticas, porém uma de suas características que ultrapassam todo este período e que esteve presente em todas as disputas políticas internas e externas, sendo tema central de algumas delas, foi justamente o centralismo-democrático, que, completamente distorcido, se tornou durante os anos do “leninismo” uma caricatura de si mesmo.

Mas do que discutir a origem do termo em si, ou apontar suas contradições, queremos afirmar que o leninismo descrito por Stalin e Zinoviev nada têm em comum com as ideias de Lênin a não ser a letra fria das citações. O bolchevismo do Partido Bolchevique, não tem nada haver com o bolchevismo oficial aplicado sobre o nome de leninismo dos anos 20 e 30. O centralismo-democrático desenvolvido por Lênin é o oposto, do centralismo-burocrático apresentado pelo grupo dirigente da União Soviética.

O Partido Bolchevique e a arte do tempo

Todo militante ao se deparar com as tarefas do dia-a-dia, seja uma eleição de centro acadêmico, uma ocupação urbana, ou na formulação de uma tática aprende, ainda que de forma espontânea, que na política o tempo é fator fundamental. Saber o momento exato de tal palavra de ordem, ou momento exato de aplicar tal tática, ou de efetuar tal ação, são questões decisivas e muito mais complicadas do que parecem. Em Lênin, como desenvolve Bensaid, a noção do tempo se encontra intimamente ligada com o papel do Partido.

De todas as grandes obras de Lênin, a principal delas foi a construção do Partido Bolchevique, o instrumento que organizou a Revolução Russa. Na construção de sua ideia de Partido, Lênin combateu o espontaneismo, o economicismo e o movimentismo. Mostrou que qualquer tática pode ser utilizada, desde que não se percam ou tenham como finalidades elas mesmas. Cada uma delas deve esta ligada a uma estratégia mais geral que por sua vez, teria o Partido como elo entre estas duas e ao mesmo tempo objetivo final.

Lênin desenvolveu que toda luta política que ocorre é uma expressão da luta pelo Poder, e aquele que consegue organizar uma estratégia entre a luta específica e a luta pelo Poder, tem mais vantagens. Para ele, o centro era a conquista do Poder, e consequentemente a construção de uma estratégia para isto. Como também apontou que é através dos partidos que a disputa política se realiza. De tal modo que a luta política, a estratégia para conquista do Poder e a construção do Partido estão intimamente ligados.

O Partido precisa de uma delimitação diante da classe. Em outras palavras, para Lênin, o Partido precisa estabelecer fronteiras, regras, uma organização, que delimite e indique quem são seus membros e quem não são. Este problema, não é meramente formal ou administrativo, além de ter sido fonte de inesgotáveis polêmicas entre os revolucionários (Lênin apresenta suas idéias em “O que fazer?”, “Um passo a frente dois passos atrás” entre outros textos), ele traz em si a concepção que Lênin formula sobre o papel do Partido.

Para ele, o Partido não é uma forma de organização como os sindicatos, por exemplo. Existe uma distinção entre tarefas econômicas e políticas, e é no Partido que elas se encontram como multiplicidade de contradições. É no Partido que também se estabelece a relação entre as atividades do hoje e do amanhã, entre a tática e a estratégia, e assim se dá a continuidade e desenvolvimento da consciência política da classe, diante dos fluxos e refluxos da luta política.

O partido político não tem para Lênin a função somente pedagógica, de educar as massas. Nem é também um reflexo dos movimentos sociais, ou uma somatória das diversas lutas sociais que existem. Para Lênin o partido é tudo isto, mas é essencialmente um instrumento estratégico na disputa pelo Poder. Instrumento estratégico que dizer que ele se submete a planejamentos, projetos, análises. Disputa pelo Poder quer dizer batalhas, elaborações de políticas, conflitos, agir quando e diante da possível, etc.

A atuação política revolucionária sobre uma situação concreta se dá em Lênin através da imensidão do real, que é mercado pelo conjunto de contradições em um determinado período. A sua batalha de ideias, uma de suas características, como qualquer batalha era uma batalha política, portanto era uma batalha pela vitória. Lênin combinava a palavra de ordem para a ação e o programa do Partido, a estratégia e a tática, o horizonte e o palpável, o presente imediato e o futuro pré-idealizado.

Desta forma, na elaboração de política, na demarcação de batalhas, no momento do agir, na elaboração de planejamentos e na aplicação de projeto, um fator escondido permanece em todos eles: o tempo.

É através da demarcação temporal que a luta de classes avança e retrocede. Que políticas são testadas e novas situações surgem. A noção de tempo partido, chamada assim por Bensaid, tem na famosa frase de Lênin: “há décadas que nada acontece, mas há semanas que valem décadas”.

Lênin demonstra que a política tem sua própria temporalidade. Ela não segue o rito natural do tempo, nem a evolução natural das coisas, ou uma marcha triunfal da história. Ela é dialética, não é linear, tem seu próprio ritmo, sua trajetória é marcado por saltos, crises, retrocessos, avanços abruptos.

Entender o tempo das coisas é fundamental. Pois, não é tudo que pode ser mudado a qualquer momento, as coisas não funcionam de acordo com nosso desejo ou nossa vontade arbitrária. Existem fatores objetivos e subjetivos externos ao indivíduo e ao próprio Partido que contam na luta de classes.

O Partido não existe fora da luta de classes, ele é constituído de correlação de forças internas e também externas. Como instrumento estratégico, ele ultrapassa os limites visíveis do tático e da política do possível no campo do imediato, mas reflete estas e se forja através desta. Podemos dizer também que para Lênin o partido é o instrumento que dá continuidade entre os três tempos: passado, presente e futuro. Carregando em si consequências anteriores a ele próprio, e a tradição teórico-política que herdou. Enquanto atua no presente para o alcance de um horizonte futuro.

O revolucionário chinês Mao Tse-Tung, usando um provérbio chinês, escreve durante os anos 1930 que: “uma faísca pode incendiar toda a pradaria”. Em Lênin é impossível saber o momento exato que toda pradaria estará incendiada, ou quando a faísca dará origem ao fogo, mas é possível perceber indicativos de que isto pode acontecer. Sendo assim, é papel do partido está sempre na espera e na preparação para o imprevisível.

Aqui, mais uma vez, as idéias de Lênin são o oposto das idéias leninistas apresentada pelo regime soviético dos anos 20. Para os membros oficiais do Kremlin, o imprevisível era descartado. O tempo da política, em Lênin improvável, é aos olhos destes controlável e orientado por leis externas que se sucedem de forma automática, como os ponteiros do relógio.

Por fim, é válido relembrar Trotsky, que no início do século XX afirmava, “o século XIX não passou em vão”. Nós, revolucionários dos tempos atuais, precisamos afirmar que os acontecimentos do século XX não foram em vão.

Precisamos aprender com os erros e acertos, não ignorá-los ou empurrar para debaixo de um tapete da história. Precisamos recordar de Lênin e dos bolcheviques, elaborar nosso próprio caminho, para assim criarmos algo novo.

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Lenin