O aparecimento da pandemia do Covid-19 é, certamente, o episódio mais dramático da humanidade no século XXI, até agora (sendo o adendo talvez tão ou mais importante do que a afirmação primeira). E este não é um século qualquer. Afinal ele nasce sobre o signo da (im)possibilidade da existência humana na Terra. Que viu no seu alvorecer – na retumbância da crise dos tigres asiáticos – a queda de 4 presidentes argentinos (ali, nossa vizinha de porta) em apenas uma semana. Sem tom apocalíptico ou apologético, apenas no pessimismo da razão, construo este raciocínio.
Poucos anos depois de nascer o século assistiu em 2008 o capital especulativo derreter numa crise econômica sem precedente que, não fossem as lições (poucas) que os liberais absorveram de 1929, teria – não apenas no terreno das especulações mas sim das projeções- proporções ainda maiores do que daquela. Mas se o século nasceu tendo de enfrentar estes problemas, estes problemas não nasceram neste século. Ainda antes, lá no final dos anos 1960, o modelo de reprodução ampliada do capitalismo passará a apresentar contradições que, de tempos em tempos- e cada vez mais agudamente- tornarão as crises cíclicas do capital reincidente em períodos mais curtos. Ou, como propôs Agamben (1): um permanente estado de exceção.
No entanto, é importante que se perceba que ao longo de todo este processo houve um aprofundamento da implementação das premissas (neo-social-“ultraneo”) liberais. Ou seja, a ideologia do “livre-mercado” – sendo esta ideologia um fator determinante para o desencadeamento das crises – conseguiu se esquivar de ser responsabilizada pelas crises e, através de constantes metamorfoses, tornou-se ainda mais hegemônica. Tão hegemônica que, talvez, você que esteja lendo este texto acredite nela. Afinal, embora tenha se mostrado falha na “gestão de crises” engendradas pelo seu próprio desenvolvimento, o conjunto de premissas em que se assenta a sociedade capitalista tem tido um êxito espantoso. Neste ponto, infelizmente, esta pandemia é o argumento mais vigoroso contra a ideia do “Estado-mínimo”.
Entre aspas mesmo.
Afinal ele nunca foi “mínimo”. Se pegarmos o orçamento público federal brasileiro de 2019, veremos que 38,27% do orçamento federal executado se destinou ao pagamento dos juros e da amortização da dívida pública. Ou seja, aquilo que a União efetivamente pagou do que arrecadou foi injetado diretamente no sistema financeiro, de acordo com dados disponíveis na Auditoria Cidadã da Dívida. E, neste ponto, temos uma importante chave do grave problema. A maior parte do que é arrecadado pela União do Brasil tem como origem os impostos, contribuições ou tributos vindos do trabalho (do salário e renda do trabalhador), sendo o capital (lucros e dividendos), no Brasil, aliviados do mesmo peso taxativo a qual o trabalho é submetido. Em resumo: o pobre e a classe média brasileira pagam muitos mais impostos, proporcional e quantitativamente, do que os ricos. Além disso, o montante de sonegação de impostos praticados pelo grande capital no Brasil seria capaz de arrecadar ao erário público valores muito mais significativos do que a (contra)reforma da previdência, por exemplo. Isso sem falar na sonegação fiscal e na necessária auditoria da dívida pública. Fatorelli (2) nos alerta de que a auditoria da dívida do Equador apontou uma série de irregularidades e conseguiu reduzir significativamente o montante pago.
Ora, a operação ideológica promovida pelo conjunto de ideias liberais permite que o “Estado-mínimo” seja, em verdade, um mote para a desresponsabilização do Estado com as políticas sociais como educação, saúde, previdência, habitação, segurança pública, esporte, cultura, assistência social, etc. Enquanto o capital, na necessidade de se reproduzir, consome os tributos e impostos majoritariamente arrecadados da renda sobre o trabalho, aquelas áreas destinadas a atender àqueles que vivem desse mesmo trabalho agonizam com cortes orçamentários. Ou seja, como bem disseram Neves Et al. (2010) (3), o Estado é “mínimo” pro social e “máximo” para o capital.
E a necessidade de o capital se expandir não produz como efeito apenas a financeirização das políticas públicas, pelo mecanismo acima descrito e por outros. Como corolário deste processo teremos, obviamente, o sucateamento dos polos de pesquisa, centros de tecnologia, da educação, dos sistemas de saúde, da aposentadoria, etc (LEHER, 2018). (4)
Este mesmo processo de busca insaciável pelo lucro tem esgotado os recursos naturais do nosso planeta, promovido mudanças ambientais e climáticas nunca dantes vistos (Mészáros, 2003) (5). Tal degradação ao ambiente e, com isso e também, ao ser humano permite-nos afirmar, mesmo desejando estar errado, que cenários como a pandemia do COVID-19 serão cada vez mais frequentes nos anos vindouros.
Ora, as pandemias não são, de fato, uma novidade na história da humanidade. Não é novidade também o fato de que os historiadores denominem estas pandemias de acordo com o pensamento hegemônico daquelas épocas. Com isso, não é difícil entender o misto de xenofobia com intencionalidade quando denominam o COVID-19 de “vírus chinês”. Operam nos mesmos termos da “gripe espanhola”, da qual estudos recentes apontam não ter origem na Espanha (6). A bem da verdade, vírus não tem nacionalidade e quando as assumem, assumem uma posição intencional no xadrez internacional. No entanto, resta-me indubitavelmente a clareza que a mais adequada alcunha ao COVID-19- se for de bom tom apelidar vírus- é a de “vírus do (ultraneo)liberalismo” “vírus do capitalismo financeiro” ou qualquer outro nome que ressalte este nexo fundamental. E esta importante disputa semântica finca raízes no hoje.
Cabe disputá-la.
* Professor do curso superior de licenciatura em história do Instituto Federal Fluminense- Campus Macaé, mestre e doutor em Educação, militante do PSOL-Rio das Ostras e da Resistência.
Notas:
1) Agamben, Giorgio, 1942- Estado de exceção / Giorgio Agamben ; tradu~ao de Iraci D. Poleti. – Sao Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de sitio)
2) https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/contas-publicas/mundo/o-caso-das-irregularidades-da-divida-externa-do-equador.aspx
3) NEVES, L. W. A direita para o social e a esquerda para o capital : intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil/Lucia Maria Wanderley Neves (organizadora) ; Andre Silva Martins let al.]. – Sao Paulo: Xama,_ 2010.
4) LEHER, Roberto. Universidade e Heteronomia Cultural no capitalismo dependente: um estudo a partir de Florestan Fernandes. Rio de Janeiro : Consequencia, 2018.
5) MESZÁROS, I. O século XXI- Socialismo ou barbárie? São Paulo : Boitempo, 2003
6) Artigo disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/GRIPE%20ESPANHOLA.pdf
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