Sábado, 29 de fevereiro, Bayern de Munique e Hoffenheim jogavam pelo Campeonato Alemão na cidade de Sinsheim. O placar já estava 6 a 0 para o time bávaro, líder do campeonato e maior do país, quando aos 31 minutos do segundo tempo o juiz resolveu paralisar o jogo por conta de cânticos e gritos vindos da arquibancada onde estavam os torcedores de Munique. A partida ficou paralisada por 16 minutos, com as equipes indo inclusive para o vestiário, até que o jogo recomeçou. Nos minutos restantes os dois times resolveram apenas tocar a bola entre si, não houve mais futebol e os gritos e xingamentos vindos da torcida continuaram.
Domingo, 1º de março, União Berlin e Wolfsburg jogavam na capital, os mesmos gritos ouvidos no dia anterior em Sinsheim ecoavam pelo estádio do União, que estava repleto de faixas com ofensas. Novamente o jogo foi paralisado pelo árbitro, e novamente as equipes foram para o vestiário. Mais uma vez não teve futebol.
Os gritos em questão foram manifestações dos torcedores em protesto contra Dietmar Hopp, um dos homens mais ricos da Alemanha e com a fortuna estimada em 14,7 bilhões de dólares (mais de 65 bilhões de reais). Hopp é dono da empresa de software SAP, e investiu seu dinheiro comprando mais da metade de seu time de coração, o Hoffenheim. A medida foi criticada por torcedores de outros clubes que são contra a transformação das equipes em empresas, e ela fere uma lei alemã que proíbe que um mesmo dono tenha mais de 50% das ações de um time de futebol. Os protestos contra o bilionário aconteceram em diversos estádios pelo país, e em todos eles os árbitros agiram com pulso firme, paralisando os jogos. O Borussia Dortmund, primeiro clube que teve seus torcedores realizando atos de protestos contra Hopp, terá que pagar 50 mil euros de multa. O recado dado pela Federação Alemã de Futebol é que não serão aceitos insultos aos bilionários donos dos times.
Os protestos contra o bilionário aconteceram em diversos estádios pelo país, torcedores de clubes que muitas vezes são rivais se uniram em uma crítica a mercantilização do esporte, e em todos esses estádios os árbitros agiram com pulso firme, paralisando os jogos.
RACISMO
Em Portugal, no dia 16 de fevereiro, na cidade de Guimarães, o clube local recebeu o Porto pelo campeonato português. O jogo estava empatado em 1 a 1, quando no início do segundo tempo a bola chegou para o atacante Marega, o ex-jogador do Vitória deu um belo toque por cima do goleiro, não tendo piedade de seu ex-clube e colocando o Porto em vantagem. Na comemoração, Marega corre em direção a torcida local com os dedos do meio em riste, manda os torcedores se f. e bate em seu braço em demonstração de orgulho pela sua cor da pele, enquanto recebia uma chuva de cadeiras amarelas, que eram arrancadas das arquibancadas e jogadas em direção ao campo.
Moussa Marega, 28 anos, é negro, nascido na França, joga pela seleção da origem de seus pais, o Mali. Desde o aquecimento para a partida o atleta recebia canções e provações racistas, toda vez que tocava na bola recebia uma imensa vaia e tinha em sua direção sons de macacos e xingamentos racistas feito por vários torcedores. No momento em que marcou o gol, Marega teve uma justa reação em direção aos racistas que estavam na arquibancada, porém, foi punido por isso recebendo cartão amarelo por parte do árbitro, que entendeu a atitude do atacante como uma “provocação”. No reinício do jogo, os xingamentos racistas e sons imitando macaco se tornaram mais fortes, o jogador negro decidiu então abandonar a partida.
Daí em diante o que se viu foi um constrangimento cada vez mais típico no futebol profissional, um atleta negro se retirando de campo por conta de agressões e xingamentos racistas por parte da torcida, e o restante dos jogadores e equipe de arbitragem punindo o jogador insultado, tentando impedir ele de se retirar de campo, tratando o repúdio do atleta negro como descontrole emocional. As imagens de Marega saindo de campo debaixo de uma enorme vaia e gritos da torcida do Vitória, com seus companheiros de time o puxando pelo braço para voltar e tentando convencê-lo a mudar de ideia, representa bem que o futebol aceitou conviver com atitudes racistas sem mais problemas. Aqueles que se revoltam contra tais atos é que são apontados como errados, por atrapalharem o espetáculo.
Em seu instagram, Marega colocou uma foto confrontando a torcida racista e escreveu: “gostaria apenas de dizer a esses idiotas que vêm ao estádio fazer gritos racistas: vá se foder. E também agradeço ao árbitro por não me defender e por ter me dado um cartão amarelo por ter defendido minha cor de pele. Espero nunca mais encontrá-lo em um campo de futebol! você é uma vergonha!”.
O caso de Marega não foi o único. Nos últimos meses cada vez mais atletas negros têm sido alvos de racismo nos mais diversos países europeus, muitos ameaçam deixar o campo ou o fazem, e são imediatamente contido pelos colegas de equipe.
Por toda a Europa uma coisa é certa, o trio de arbitragem e as equipes parecem ser mais solidárias com um bilionário sendo xingado do que com um jogador negro sofrendo discriminação racial. O racismo parece fazer parte do jogo.
O dia que Taison foi maior que Messi
Outro caso de racismo no futebol que rodou o mundo aconteceu com o atacante brasileiro Taison. Em novembro do ano passado, Shakhtar Donetsk e Dínamo de Kiev se enfrentaram naquele que é o maior clássico da Ucrânia. Taison, que disputou a última Copa do Mundo, é um dos principais jogadores do Shakhtar, uma equipe repleta de atletas brasileiros. Durante o confronto contra o rival, ele e o também atacante brasileiro Dentinho sofreram insultos raciais em diversas vezes que tocavam na bola.
A resposta do jogador foi firme. Ao sofrer uma falta no segundo tempo, ele pega a bola e chuta em direção a torcida adversária, fazendo gestos obscenos em sua direção. O juiz tomou lado, e expulsou o atleta brasileiro, que novamente foi em direção a torcida adversária com os dedos do meio em riste, enquanto chorava e batia no braço para mostrar sua cor. Após Taison ir para o vestiário o jogo seguiu normalmente, como se nada tivesse acontecido.
Após o jogo, nas redes sociais, Taison desabafou, citou um trecho da música do Racionais MC´s – “Jesus Chorou” -, Martin Luther King e até Angela Davis: “em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Em um emocionante desabafo, o jogador apontou: “Jamais irei me calar diante de um ato tão desumano e desprezível. Minhas lágrimas foram de indignação, de repúdio e de impotência. Impotência por não poder fazer nada naquele momento. Mas somos ensinados desde muito cedo a sermos fortes e a lutar. Lutar pelos nossos direitos e por igualdade. O meu papel é lutar, bater no peito, erguer a cabeça e seguir lutando sempre!”.
O atleta recebeu apoio de diversos outros jogadores e personalidades. A barreira de denúncia ao racismo dentro do futebol era ultrapassada.
Taison, fez grande parte de sua carreira jogando no futebol ucraniano, no Brasil atuou pelo Internacional de Porto Alegre, um colunista gaúcho escreveu um artigo que foi motivo de piada na época e nos anos que se seguiram. No texto de dez anos atrás, que volta e meia retorna a circular nas redes sociais, o autor perguntava “quem será maior, Taison ou Messi, só o futuro dirá?”, e cravava com a certeza que a promessa do Beira-Rio seria melhor que o astro argentino que já era um dos grandes nomes do Barcelona. O tempo passou, e Taison, obviamente não se tornou melhor que o camisa dez do time catalão. Porém, com a denúncia contundente sobre o racismo no futebol, e sua resposta aos atos dos torcedores racistas, Taison entrou no ainda pequeno grupo de futebolistas que enfrentaram o preconceito racial e se tornaram um símbolo da luta contra a discriminação racial no esporte.
Itália, paraíso dos racistas nas arquibancadas
“Não existem italianos negros”, um torcedor gritou em direção de Mario Balotelli, atacante e primeiro negro convocado para a seleção principal da azzurra. Este foi somente um dos diversos casos de racismo que o jogador sofreu por parte de torcedores e da imprensa durante sua carreira, ao todo, se contabilizam mais de 60. Balotelli nesta temporada ameaçou deixar o gramado após gritos racistas virem em sua direção, mas foi impedido por jogadores do próprio time, o atacante chutou uma bola em direção a torcida rival, e foi criticado por dirigentes de seu clube, o Brescia.
Lukaku, atacante belga da Inter de Milão, é uma nova estrela nesta temporada do futebol na Itália, o jogador recém completou seis meses no país e já conta com diversos casos em que sofreu racismo. No primeiro deles, após uma partida contra o Cagliari, ele foi insultado durante toda partida pela torcida adversária, após ter protesto no fim do jogo em suas redes sociais, a própria torcida da Inter repreendeu o jogador e defendeu os torcedores rivais. Por meio de uma carta, a torcida organizada da Inter falou que foram xingamentos racistas, mas apenas formas de desestabilizar o atacante e incentivar os jogadores do time da casa.
Esta visão de tratar a discriminação racial como “brincadeira” é comum, e ocorreu quando o jornalista Luciano Passirani foi elogiar o mesmo Lukaku alguns jogos depois. Após o atacante da Inter marcar um gol, o jornalista falou ao vivo “atualmente não há ninguém como ele. Eu gosto bastante de seu futebol. A única maneira de pará-lo seria dando-lhe dez bananas para comer.”
Ano passado, Moise Kean, revelação do maior time do país, a Juventus, sofreu insultos racistas durante uma partida contra o Cagliari, após marcar um gol o jovem jogador de 19 anos, comemorou dançando, o que aumentou os xingamentos racistas. O capitão de sua equipe, o italiano Bonucci, disse que Kean tinha 50% de culpa pelas ofensas que recebia, por conta de suas provocações. Em uma mostra de como o debate de condenar as atitudes racistas são frágeis no país da bota, o que deixa mais à vontade os racistas para suas ações.
Na última rodada do campeonato italiano, um novo caso de racismo aconteceu, e na rodada que virá, possivelmente um novo cântico racista surgirá, como quase todo fim da semana, nos mais diversos estádios da Itália. Às vezes imitando som de macaco, outras horas jogando bananas, outras com os mais diversos xingamentos, os racistas utilizam diversas formas para insultar e atacar jogadores negros na Itália e se sentem confortáveis para isto.
A Calciatori Sotto Tiro (Futebolistas sob fogo cruzado) fez um raio x das ações de intimidação e xingamentos recebidos pelos atletas nos jogos de futebol pelo país, analisando jogos do futebol profissional (75% dos casos) e jogos de categorias inferiores (25%). O resultado da pesquisa mostra que 7% das ameaças e xingamentos recebidos pelos atletas são por conta de rebaixamentos, 31% após más resultados, 7% por confronto com a torcida adversária, 5% por transferência de um clube para outro, 14% por outros motivos. Na liderança dos motivos que fazem os jogadores serem ameaçadas ou xingados, está o racismo e a discriminação racial, com 36% dos casos.
Dentro das quatro linhas, o show nunca para
Atletas que sofrem com discriminação racial não tem a quem recorrer, faltam suportes por parte das equipes e das federações, para lidar com os recorrentes casos. A UEFA, federação europeia de futebol, faz vista grossa aos diversos casos de racismo que acontece, tendo medidas paliativas que não servem para nada. A entidade máxima do futebol europeu costuma punir casos envolvendo presença de materiais não permitidos na arquibancada, aplica multa a diversos clubes por diversos motivos, mas faz vista grossa e não pune efetivamente as torcidas racistas.
O fato de jogadores buscarem impedir que um companheiro de profissão se retire de campo por conta de insultos racistas, mostra como no esporte a ideia de que esses insultos não são nada demais acaba sendo majoritária. O que se deveria fazer era parar o jogo quando insultos como estes são feitos, e as equipes que torcidas se mostram recorrentes devem perder pontos como punição exemplar.
inadmissível que no esporte mais popular do planeta partidas sejam paralisadas por conta de justos xingamentos a bilionários, ou por protestos contra jogadores nazistas, como ocorreu na Espanha, mas absolutamente nada seja feito quando jogadores negros são alvos de ofensas raciais. Em muitos casos, ainda se punindo disciplinarmente o jogador negro agredido.
Cada vez mais cânticos e palavras racistas não vem apenas da parte atrás do gol dos estádios, local onde ficam as torcidas organizadas. Os cantos racistas surgem das tribunas, das cadeiras, dos locais onde estão as famílias, é um verdadeiro vírus que se espalha no futebol europeu. O crescimento da extrema-direita no velho continente e de suas ideias racistas e xenófobas tem eco dentro dos estádios de futebol. Lá os racistas se sentem confortável para destilar seu ódio e preconceito.
É preciso que as federações e atletas de maior expressão tomem atitudes drásticas. Se o ditado popular diz que o show nunca para, é hora de apontarmos que o show não continuar diante das ações dos racistas. O racismo não pode mais ser visto com normalidade dentro do futebol.
Comentários