No livro “Fuga da História”,[i] Losurdo compara o marxismo anti-stalinista ao cristianismo do século I que, na sua visão, cometeu o pecado da autofobia por rejeitar a Grande Revolta Judaica. Com um argumento teológico e anti-histórico, ele tenta encaixar naquela época o cristianismo dos fundamentalistas multimilionários de hoje. Sua comparação, é óbvio, não diz nada sobre o cristianismo primitivo, mas diz algo sobre ele mesmo.
Enfatizo que não quero desqualificar esse teórico marxista. Neste texto, critico apenas sua reinvenção da “autofobia”, esta sim usada para desqualificar posições contrárias.
Autofobia é a tendência de grupos perseguidos a assimilarem a visão de mundo dos perseguidores e passarem a odiar a si mesmos, sua própria origem. Para Losurdo, anti-stalinismo é autofobia, ou seja, afirmar que o regime stalinista foi uma ditadura horripilante é assumir o discurso anticomunista da Guerra Fria. Com essa ideia, não podemos reconhecer a realidade atestada por inúmeras evidências. Queira ou não, isso é fugir da história.
Evidentemente, o cristianismo primitivo, nos séculos I e II, foi se tornando cada vez mais heterogêneo. Muitas cristãs e até vertentes assimilaram ideologias dos romanos. Eram pessoas, não anjos. O erro de Losurdo é forçar a barra para encaixar sua caricatura anacrônica na seita judaico-cristã primitiva. Veja:
Originariamente parte integrante da comunidade judaica, [os cristãos] sentiram a necessidade de declarar que não tinham nada em comum com a revolução recém-subjugada. Continuaram a se apegar aos textos sagrados, sagrados também para os revolucionários derrotados, que foram acusados de tê-los desfigurado e traído.
É uma dialética que se pode seguir de perto a partir, principalmente, do Evangelho de São Marcos, escrito imediatamente após a destruição de Jerusalém. Uma catástrofe prevista por Jesus: “Não permanecerá pedra sobre pedra”. E a chegada de Jesus, o Messias, foi por sua vez profetizada por Isaías. A tragédia que se abateu sobre o povo judeu não deve ser principalmente imputada ao imperialismo romano: por um lado, já estava escrita na economia divina da salvação; de outro lado, foi resultado de um processo de degeneração interna da comunidade judaica. Os revolucionários cometeram o erro de interpretar a mensagem messiânica pelo viés mundano e político, e não pelo lado espiritualista e intimista: o horror e a catástrofe foram o resultado inevitável desta desnaturação e traição. Distanciando-se claramente da revolução nacional judaica, derrotada pelo imperialismo romano, os cristãos distanciaram-se também, com a mesma nitidez, da ação histórica e política enquanto tal.
Essa interpretação de Losurdo não tem caráter histórico. Não é baseada no contexto, na época e no texto do evangelho, mas numa ideia abstrata, preconcebida e atemporal. Isso é típico de uma interpretação teológica. Como veremos, ela não se encaixa na realidade.
Prometo que não farei nenhuma pregação cristã nem anticristã, nosso debate é histórico e laico e, ao contrário de Losurdo, estudei bastante sobre o tema. Quem quiser seguir viagem, sente-se em sua poltrona e afivele o cinto. Nossa viagem no tempo será para quase dois milênios atrás. Próxima parada: a Grande Revolta Judaica, 66 d.C., Jerusalém.
De volta à Grande Revolta Judaica
Nesse tempo, a opressão do Império Romano causa miséria, fome e morte. Há poucos ricos, quase todos são romanos ou aliados seus. O judaísmo está em crise. Dizem as escrituras que o Deus Iavé jamais abandonaria seu povo. Mas onde está a tal “terra que mana leite e mel” (Êxodo 33:3)? Surgem várias seitas, cada uma dá uma resposta.
A seita dos fariseus joga a culpa no povo e seus “muitos pecados”. Eles veem pecado em tudo! Ditam muitas regras! As cristãs, uma seita ainda bem marginal, dizem que os fariseus são hipócritas, sepulcros caiados, cães deitados na manjedoura[ii] e respondem: “Quem não tem pecado, que atire a primeira pedra”. Para elas, não existem regras, nem dez mandamentos, apenas um. Elas não têm vergonha de andar com pecadores, adúlteras, prostitutas, eunucos, pagãs, doentes!
Aqui, no Templo de Jerusalém, sacerdotes e mercadores são muito ricos. São da seita dos saduceus, uma elite socioeconômica e religiosa que fez acordos com os romanos. Uma parte dos lucros é dos romanos que, em troca, permitem que o Templo continue funcionando.
Esse esquema é bem conhecido e parece que as cristãs não gostam nada disso. Elas contam que Jesus chegou aqui irado, atacou os mercadores, derrubou as mesas, espalhou as moedas e gritou: “Está escrito: minha casa será casa de oração para todas as nações, mas vós a fizestes um covil de ladrões!” (Marcos 11:17). Todas as nações!
Como vemos, as cristãs têm aversão aos saduceus e aos fariseus. Eventualmente, isso será usado para justificar antissemitismo e várias barbáries contra povos judeus, mas transpô-lo a esta época, como faz Losurdo ao falar em “degeneração interna”, é injusto.
Nesse ano, 66, zelotas[iii] convocam o povo judeu e tomam a cidade de Jerusalém. Lendo o Evangelho de Marcos, citado por Losurdo, dá para ver que as cristãs pensam que essa rebelião vai dar ruim. Para Losurdo, isso é autofobia. Na minha opinião, é apenas sensatez. Veja que, já nessa época, o cristianismo se espalhou para outras nações, portanto as cristãs provavelmente têm bem mais consciência do tamanho e do poder do Império.
Chegando em 14 de abril de 70, o exército romano cerca Jerusalém. O cerco dura até 30 de agosto, quando invadem e destroem tudo, inclusive o Templo. Losurdo diz que “a comunidade judaico-cristã parece alegrar-se com a queda e a destruição de Jerusalém”. Oi? Nesta época, faz algum sentido que uma seita judaica esteja comemorando?
Isso é uma baita caricatura anacrônica!
Polêmica do “Evangelho de Marcos” com saduceus e zelotas
A maioria dos historiadores data o “Evangelho de Marcos”[iv] entre 66 e 70. E quem escreve geralmente quer comprar uma polêmica. Vamos ver o que diz esse texto.
Por conta de imprecisões históricas e geográficas, é improvável que tenha sido escrito na Galileia. A tese mais aceita é em Roma, mas há quem defenda ter sido na Antioquia (atual Antáquia, cidade da Turquia) ou na Síria do Sul.
Resumindo, o texto contra a história de um homem, Jesus, que era andarilho, mendigo, curandeiro, pregador, contador de parábolas e polemista. Sabia ler, argumentava bem e conhecia as escrituras, mas não era rico, como os saduceus, era um simples tekton de um vilarejo pobre chamado Nazaré.[v] Um escândalo! (Marcos 6:1-3).
Como mencionamos, na história, Jesus expulsou mercadores do Templo. Muitas pessoas comuns gostaram desse ato, já os sacerdotes odiaram e queriam sua morte. Desde então, faziam perguntas para incriminá-lo. Jesus notava a malícia e era esperto para dar respostas. Se Judas Iscariotes não o entregasse, provavelmente não conseguiriam levá-lo a Pilatos.
Pilatos apresentou dois criminosos: Jesus, acusado de se declarar “Rei dos Judeus”, e Barrabás, um homem que “estava na prisão com os rebeldes que haviam cometido assassinato durante uma rebelião” (Marcos 15:7). Pilatos permitiu que o povo escolhesse, por ocasião da páscoa, um dos dois para ser solto. O povo escolheu libertar Barrabás e condenar Jesus.
Aqui, os detalhes que Losurdo não leu! Veja:
“Vocês querem que eu lhes solte o rei dos judeus?”, perguntou Pilatos, sabendo que fora por inveja que os chefes dos sacerdotes lhe haviam entregado Jesus. Mas os chefes dos sacerdotes incitaram a multidão a pedir que Pilatos, ao contrário, soltasse Barrabás.
Marcos 15:9-11
Por acaso esse texto está tentando livrar a cara de Pilatos? Ou está mostrando que a acusação era duvidosa, uma trama dos chefes dos sacerdotes? Tão duvidosa que nem Pilatos consegue acreditar!
Outra coisa é o “Evangelho de Mateus”, escrito entre 80 e 90, com base em “Marcos” e em outras fontes, no qual essa narrativa é ligeiramente alterada. Em “Mateus”, Pilatos lava as mãos, diz ser inocente desse sangue e o povo responde “Que o sangue dele caia sobre nós e sobre nossos filhos” (Mateus 27:24-25). Uma narrativa historicamente absurda. Neste caso, existe autofobia, mas não esse anacrônico antissemitismo, como quer nos fazer crer Losurdo.
Por outro lado, esse “costume” de Pilatos libertar alguém na Páscoa não existia. Pilatos era um homem cruel, impiedoso. O nome “Barrabás” quer dizer “filho do pai” em aramaico, muito parecido com “bar nasha”, ou “filho do homem”,[vi] título que Jesus recebia.
Qualquer pessoa desta época entenderia a analogia. Jesus representava as cristãs, e Barrabás, as zelotas. O povo confiou nas zelotas, mas não nas cristãs, porque estava induzido pelas mentiras dos saduceus. O resultado foi uma tragédia: Jesus foi morto, o Templo foi destruído. Não é nítida a polêmica? Uma divergência religiosa, social e política. Ou seria uma acusação moralista?
O moralismo está nos olhos de Losurdo.
O cristianismo era amigável ao Império Romano?
Losurdo afirma que as cristãs afastaram-se “da ação histórica e política enquanto tal”. Pô, Gramsci, ajuda nóis aí!
O fato de uma multidão de homens que se julgavam civilizados fossem dominados por poucos homens considerados como menos civilizados, mas materialmente invencíveis, determina a relação cristianismo primitivo–gandhismo. A consciência da impotência material de uma grande massa contra um punhado de opressores leva a exaltação de valores puramente espirituais, etc., à passividade, à não-resistência, à não-cooperação.
Antonio Gramsci.[vii]
Essas linhas foram escritas mais de duas décadas antes da resistência gandhista finalmente conquistar a independência da Índia e do Paquistão, em 1947. Gramsci reconhecia, nesses dois movimentos, “uma formidável força de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e obstinada” com a qual “a vontade real se traveste em um ato de fé, numa certa racionalidade da história”.[viii] A concepção mecânica de Losurdo não reconhece essa rebeldia cristã, mas esta é a razão por que o cristianismo se espalhou pelas nações, adotando diferentes formas.
Essa heterogeneidade assusta muitas pessoas da atualidade. Estamos muito mais acostumadas ao Jesus como símbolo abstrato inequívoco. Jesus de Nazaré (a quem considero que existiu) era um homem da Galileia, do Oriente Médio, portanto tinha cabelos grossos, pele marrom, nariz largo, como um árabe, um turco, muitos muçulmanos. O Jesus Símbolo é europeu, branco, cabelos e olhos claros, nariz fino. Pomposo, um nobre, não um mendigo andarilho. Orgulhoso, não humilde. Ditador de regras, cricri, incomodado com o que as pessoas fazem com os próprios corpos. O Jesus Símbolo não é Jesus de Nazaré, é um autorretrato dos fundamentalistas multimilionários e de seu individualismo mesquinho.
Por outro lado, o que assustava naquela época era justamente o oposto. Jesus de Nazaré era conhecido como um messias milagroso, mas humano demais, concreto demais. Suas pregações e parábolas respondiam questões ligadas diretamente à vida das pessoas e às suas ideias. Questionava preconceitos, sensos comuns, colocava em xeque moralismos de outras seitas.
Considere, por exemplo, a Parábola do Joio e do Trigo. Numa plantação de trigo onde algum safado semeou joio, não é possível distinguir um do outro antes de amadurecer. Portanto, é preciso esperar, senão corremos o risco de arrancar trigo e deixar joio. Quando crescer, o joio será arrancado e atirado ao fogo da Geena — um vale próximo de Jerusalém que se tornou um depósito onde o lixo era queimado.
Está aí uma nítida polêmica com as zelotas, que obviamente não é por ele pensar que os romanos eram do bem. Deixa nítido que Jesus tinha aversão aos romanos e sua dominação, mas tinha consciência que ficar apontando dedo contra traidores não daria certo, pois acabariam arrancando o trigo com o joio. Uma lição que nem Losurdo, nem Stalin aprenderam.
Agora, se o cristianismo primitivo não expressava uma revolta, fica difícil explicar por que ele foi crime até o ano 313.
Vamos um pouco à frente no tempo, ano 111. Plínio, o Jovem, governador da Bitínia, está escrevendo uma carta ao imperador Trajano.[ix] Segundo o que escreve, fez vários interrogatórios e torturou “duas mulheres escravas que eram chamadas diaconisas” (sic). “Mas eu não descobri nada além de uma superstição exagerada e depravada”, escreve ele.
Como julgar se alguém é cristã? Plínio escreve: quem nega as acusações, ele ordena invocar os deuses, oferecer uma reza com incenso e vinho a uma imagem do imperador e amaldiçoar Cristo. “Nenhum cristão de verdade, segundo dizem, pode ser forçado a isso”.
“Quem não está comigo, está com o inimigo”
Por que, ao contrário das evidências, Losurdo insiste que as cristãs primitivas estão do lado dos romanos? De fato, isso reflete um raciocínio típico da Guerra Fria, quando se dizia que todas as pessoas tinham que tomar um dos dois lados. Ponto. Não se aceita mediações nem dialética.
Há mais uma ideia nitidamente stalinista adotada por Losurdo: a de que divergir contra alguém que realizou (ou tentou realizar) uma revolução é necessariamente uma traição. Anticomunismo. Autofobia.
- [i]O prefácio e o primeiro capítulo desse livro está disponível aqui: https://www.odiario.info/o-movimento-comunista-da-autofobia-ao-desenvolvimento-do-processo-de-aprendizagem/
- [ii]São duas metáforas usadas por Jesus de Nazaré. O sepulcro caiado é podre por dentro e bonito por fora. Cães deitados na manjedoura não deixam o gado comer a palha, da mesma forma que os fariseus, que conheciam as escrituras, não a aplicavam e não deixavam que o povo as conhecesse.
- [iii]Zelotas foi como o historiador Flávio Josefo (ou José Flávio no texto de Losurdo) denominava a seita judaica formada por rebeldes, que existia desde o começo do século e dirigiu a Grande Revolta.
- [iv]O “Evangelho de Marcos”, ou “Marcos”, é um texto originalmente sem autoria, como era comum na antiguidade. Entre estudiosos, é considerado o evangelho historicamente mais preciso, ou menos impreciso.
- [v]O termo grego “tekton” geralmente significa “carpinteiro”, mas pode ser traduzido como “construtor”. Esta tradução faz mais sentido com a Galileia, uma região árida. A tese histórica que considero mais provável é a de que Nazaré era um vilarejo próximo a Tiberíades, capital da Galileia, onde havia muitas obras, parte de um grande plano de Herodes Antipas de modernização à moda grega. Isso fundamentaria o contato deste nazareno com vários povos, culturas e textos.
- [vi]O termo “filho do homem” é usado mais de cem vezes na versão hebraica dos livros do Antigo Testamento, como “ben-’adam”. Em 32 vezes, é trazido no plural, “filhos dos homens”, e usado com sentido de “seres humanos”.
- [vii]Cadernos do Cárcere, n 6, § 78.
- [viii]Cadernos do Cárcere, n 11, § 12.
- [ix]Disponível em http://faculty.georgetown.edu/jod/texts/pliny.html
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