O capitalismo é um sistema econômico eminentemente expansionista. O crescimento é uma condição necessária do seu funcionamento e existência, à medida em que a lógica, desvendada por Marx no século XIX, é usar o dinheiro para ganhar mais e mais dinheiro, às custas da exploração da força de trabalho e da espoliação da natureza.
Uma contradição inevitável desse sistema é a acumulação de riqueza nas mãos de um punhado cada vez menor de capitalistas ao lado da exclusão de amplas massas da riqueza produzida a partir de seu próprio trabalho. Mas o que não era evidente há um século e meio é que além dessa contradição interna, o sistema capitalista rapidamente faria emergir, com toda força, uma outra, ainda mais incontornável: o seu antagonismo com o próprio “Sistema Terra”. (1)
Especialmente desde a década de 1950, as atividades humanas (e seus impactos correspondentes no meio-ambiente) cresceram exponencialmente e passaram a colocar sob pressão inédita o clima e a biosfera do planeta, configurando o que conhecemos hoje como “a grande aceleração”.
Especialmente desde a década de 1950, as atividades humanas (e seus impactos correspondentes no meio-ambiente) cresceram exponencialmente e passaram a colocar sob pressão inédita o clima e a biosfera do planeta, configurando o que conhecemos hoje como “a grande aceleração”. A quantidade de bens de consumo, de automóveis a telefones celulares e computadores pessoais cresceu enormemente, ao ponto de hoje haver mais de um bilhão de veículos automotivos circulando mundialmente, sendo provável que o número de telefones celulares atinja a casa dos cinco bilhões em 2019. (2)
Para se ter uma ideia do impacto que somente esses dois processos ocasionam, vale lembrar que cada automóvel tem em média quase 1 tonelada de aço e cada celular de meros 150 g possui mais de 50 elementos químicos, demandando a mineração de 70 kg de rocha para obter um único desses aparelhinhos (que rapidamente são descartados para a compra de um novo, por conta da baixa durabilidade, do desgaste prematuro e da imposição da substituição na chegada de novas tecnologias, ou seja, da chamada obsolescência programada). Para atender – de maneira lucrativa – ao aumento incessante da velocidade da roda de extração-produção-consumo-descarte, as corporações entram num verdadeiro regime de “Vale-tudo”. Da devastação ambiental e trabalho semi-escravo “normais” a crimes como os cometidos em Mariana e Brumadinho é um pulo.
Mantendo-se como exemplos somente esses dois símbolos da sociedade de consumo e do “american way of life” (o carro particular e o celular), acrescente-se a demanda energética envolvida na extração e transporte desses materiais, no processo industrial de fabricação e no transporte desses bens até o consumidor final, lembrando que a maior parte dessa demanda é suprida a partir da queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás) em usinas termelétricas. Sem mencionar o efeito do descarte, com a poluição associada à liberação de substâncias tóxicas, metais pesados, plástico, etc. É tudo absolutamente insustentável!
O Agro é morte
Ao mesmo tempo, avançou sobremaneira a agricultura intensiva, marcada pela monocultura, utilização intensiva de agrotóxicos e fertilizantes. Vale ressaltar que boa parte da produção agrícola nesses moldes visa a produção de alimentos não para serem consumidos por seres humanos, mas a produção de grãos para servirem de ração para animais confinados: bovinos, suínos, aves etc. (mais de 2/3 da produção de soja é destinada a este fim) (3). Além desta, é importante lembrar as monoculturas associadas à produção industrial de papel (caso do eucalipto), produtos de higiene pessoal (como os que utilizam óleo de palma) e bioenergia (como cana-de-açúcar).
Além da contaminação de ecossistemas e sistemas hidrográficos por agrotóxicos, esse modelo agrícola está associado à utilização de enormes quantidades de água para irrigação e à liberação em larga escala de nitrogênio e fósforo reativos no ambiente, sendo esses nutrientes responsáveis por graves desequilíbrios em lagos, na zona costeira etc. Claro, o avanço do agronegócio é também responsável por parcela significativa do desmatamento à medida em que ocupa as terras antes ocupadas por biomas como as florestas tropicais. No Brasil, o caso da Amazônia e especialmente do Cerrado são emblemáticos.
A sedução da “Grande Aceleração”
É evidente que há um aspecto sedutor em todo esse processo. A maioria trabalhadora, ainda que cada vez mais a precarização e o desemprego batam à porta, se sente convidada a participar do banquete. Adquirir os bens de consumo descartáveis do capitalismo se torna sonho, fetiche. Torna-se inclusive, “necessidade” (em geral, uma falsa necessidade, artificial e alimentada pela “indústria” da propaganda). Pior, enquanto as massas são seduzidas pelo império do consumo, o pensamento de esquerda se deixa levar pelas mesmas métricas do pensamento capitalista, louvando acriticamente o “crescimento econômico”, disputando o PIB etc. Mas somente é possível esse sequestro de consciência a partir de uma combinação de fatores objetivos relacionados à globalização.
Primeiro, o alongamento, até a escala planetária, das chamadas “cadeias produtivas”. A mineração para as matérias-primas e a extração de combustíveis fósseis para energia se dão de um lado do planeta, que pode ser a África ou a América Latina ou o Oriente Médio, enquanto a produção se dá do lado oposto, tendo se concentrado especificamente na China. Enquanto isso, centros consumidores como os países ricos ficam distantes da devastação da mineração e da poluição industrial. E essa lógica, de separar paraísos de consumo de um lado e zonas de sacrifício (4) de outro, é reproduzida na escala de países inteiros e até de cidades, configurando o chamado racismo ambiental. (5)
Segundo, o advento de um capital “virtual”, aparentemente sem sede e sem face, que ajuda a colocar o dinheiro distante dos impactos socioambientais de tudo o que ele financiar. Na lógica míope, tacanha e suicida do mercado de ações, as atividades mais “rentáveis” nas bolsas, e onde os bancos investem sistematicamente são, comumente aquelas em que esses impactos são tão profundos quanto invisíveis (ou melhor, escondidos, invisibilizados).
Capitalismo de desastre
O resumo é que o capitalismo do século XXI é o capitalismo do desastre ambiental. Poluição, uso de água em excesso para o agronegócio e a indústria pesada, emissões de gases de efeito estufa que desestabilizam o clima, destruição de florestas e redução da biodiversidade, comprometimento da camada de ozônio da estratosfera e até uma mudança potencialmente catastrófica no nível de acidez dos oceanos… A característica fundamental da Grande Aceleração é colocar o Sistema Terra para além dos seus limites. (6) É uma declaração de guerra à natureza.
Mas por isso mesmo, por ser uma declaração de guerra ao Sistema Terra, a crise singular do capitalismo, que se revela hoje é, dentre outras características, uma crise da impossibilidade de continuar “exportando” os impactos socioambientais destrutivos da produção capitalista para outros territórios. Mudou a escala. (7) Não se trata mais apenas de ameaçar um ou outro habitat em separado (o que já seria no mínimo questionável) ou de (criminosamente) colocar indústrias com emissões tóxicas longe de onde moram os mais ricos. Os riscos agora são globais, planetários.
Por outro lado, declarar guerra à Terra implica que ela, ao sofrer mudanças, deixa de ser um “palco”, para ser atriz, protagonista.
Por outro lado, declarar guerra à Terra implica que ela, ao sofrer mudanças, deixa de ser um “palco”, para ser atriz, protagonista. Passa a impor suas condições e regras – físicas, químicas, geológicas – à existência humana e, portanto, à sua forma que a humanidade se organiza territorial, econômica e politicamente. Naquilo que chamam de “Intrusão de Gaia”, coloca, de forma crua, a incompatibilidade entre um sistema econômico que almeja o crescimento e acumulação ilimitados (o capitalismo) e um sistema físico limitado (o planeta), que funciona à base de ciclos (da água, do carbono, do nitrogênio etc) e fluxos (de matéria energia).
Nos demais artigos desta série, abordaremos as questões relacionadas especificamente às duas “fronteiras planetárias” consideradas estruturantes: o clima e a biosfera e mostraremos que a continuidade desse sistema de morte está colocando objetivamente em risco a existência não apenas de inúmeras formas de vida que compartilham conosco este planeta, mas também a própria civilização humana.
*Alexandre A. Costa é Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará, PhD em Ciências Atmosféricas, colaborador do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, Assessor (voluntário) do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social e autor do blog “O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei” (http://oquevocefariasesoubesse.blogspot.com/) e militante do Subverta/PSOL.
NOTAS
1 – Termo usado para denominarmos o planeta com os subsistemas que o compõem (atmosfera, criosfera e em particular a biosfera, dentre outros) e as complexas relações entre estes.
2 – Vide https://www.statista.com/statistics/274774/forecast-of-mobile-phone-users-worldwide/
3 – Vide https://globalforestatlas.yale.edu/land-use/industrial-agriculture/soy-agriculture
4 – Segundo Viégas, “a expressão ‘zonas de sacrifício’ é utilizada pelos movimentos de justiça ambiental para designar localidades em que observa-se uma superposição de empreendimentos e instalações responsáveis por danos e riscos ambientais. Ela tende a ser aplicada a áreas de moradia de populações de baixa renda, onde o valor da terra relativamente mais baixo e o menor acesso dos moradores aos processo decisórios favorece escolhas de localização que concentram, nestas áreas, instalações perigosas” (https://www.faneesp.edu.br/site/documentos/desigualdade_ambiental_zonas_sacrificio.pdf).
5 – Como racismo, colonialismo e capitalismo caminham juntos, é em geral sobre comunidades pobres, negras e/ou indígenas que recaem os impactos da implantação de grandes empreendimentos capitalistas.
6 – Do ponto de vista científico, é a ultrapassagem das chamadas “fronteiras planetárias”, um conjunto de 9 parâmetros enumerados por um grupo de cientistas liderado por Joham Rockström em publicação na revista Nature em 2009: https://www.nature.com/articles/461472a.
7 – Cientistas da natureza já chegam a um consenso de que ingressamos em outra subdivisão geológica (denominada Antropoceno), em que as ações humanas competem ou até suplantam, em escala, os processos naturais.
8 – Termo usado por Isabelle Stengers, vide, por exemplo, http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/584423-consideracoes-de-uma-filosofa-da-ciencia-sobre-o-fim-do-mundo-no-tempo-das-catastrofes-de-isabelle-stengers
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