Saiu da sala. Lá fora, na plataforma, um oficial aproximou-se e bateu continência. Lenin, surpreso, retribuiu a continência. O oficial deu a ordem, e um destacamento de marinheiros com baionetas ficou em posição de sentido. Holofotes iluminavam o local, e bandas tocavam a “Marselhesa”. Uma grande aclamação brotou de uma multidão que se formava ao redor da plataforma. “O que é isso?”, perguntou Lenin, dando um passo atrás. Disseram-lhe que eram as boas-vindas dos trabalhadores e marinheiros revolucionários: haviam gritado a palavra “Lenin”. Os marinheiros apresentaram armas, e seu comandante apresentou-se a Lenin. Cochicharam-lhe que queriam ouvi-lo falar. Lenin deu alguns passos e tirou o chapéu-coco. Começou: “Camaradas marinheiros, eu vou saúdo sem saber ainda se vocês têm acreditado ou não em todas as promessas do Governo Provisório. Porém estou certo de que, quando eles lhes falam com palavras açucaradas, quando prometem mundos e fundos, estão enganando a vocês e a todo o povo russo. O povo precisa de paz; o povo precisa de pão; o povo precisa de terra. E eles lhes dão guerra, fome, nada de pão – deixam os proprietários continuarem controlando a terra. (…). Precisamos lutar pela revolução social, lutar até o fim, até a vitória completa do proletariado. Viva a revolução social mundial!”.
Edmund Wilson
O dia 22 de abril marcou o aniversário de nascimento daquele que foi uma das mentes mais brilhantes e mais importantes do século XX. O russo Vladimir Ilyich Ulyanov, ou simplesmente Lenin. Como era de se esperar, em todo aniversário desta magnitude, surgiram textos e mais textos sobre o aniversariante, sua vida, sua obra, sua importância. Surgem os retratos nostálgicos do realismo soviético. Poemas e canções antigas em sua homenagem são lembrados. São utilizados desde o poeta da revolução Mayakovsky, até o chileno Neruda e sua idolatria e quase canonização da figura do dirigente, como era comum na esquerda pós-segunda guerra.
De porte pequeno e de oratória forte. Apaixonado por gatos na mesma proporção que gostava de criar polêmicas duras com outros teóricos e com aqueles que divergiam de sua posição. É cada vez mais necessário relembrar esse velho marxista russo. E isso se dá ao fato de cada vez mais seu nome e seu ensinamento serem esquecidos. O tempo é cruel e a cada nova geração de ativistas que surge tem menos referência no que foi a longínqua década de 1910 na Rússia czarista e no que foi os primeiros anos do primeiro país do mundo a construir um poder para os trabalhadores. O nome de Lenin não surte a mesma admiração que causava décadas atrás, pelo contrário, causa estranheza. Assim como as discussões acaloradas que envolvem a obra desse revolucionário russo. Os tempos são outros.
O fato é que Lenin foi um dos maiores, se não o maior marxista que existiu. Nas palavras de Florestan Fernandes, foi Lenine (como era dolorosamente traduzido o nome do russo na época do sociólogo) a melhor representação da práxis, da junção entre teoria e prática. Ele foi o primeiro a se atrever. Realmente o primeiro quando apresentou as Teses de Abril para todo o comitê central do partido bolchevique. E ficou, como muitas vezes em sua vida, em posição de minoria.
Na história e entre os marxistas o debate sobre o papel do indivíduo nos processos históricos e a força que o sujeito tem para modificar os mesmos ainda não foi superado. É uma discussão em aberta. É comum a pergunta de o que teria acontecido caso Lenin não tivesse atravessado a Europa em um trem e chegado a Petersburgo em 16 de abril de 1917 e apresentado suas famosas Teses de Abril. Se por acaso o governo alemão na época tivesse proibido o dirigente bolchevique de ter cruzado o país naquela viagem que entraria para a história e seria no futuro utilizada pelos adversários dos bolcheviques. E se Lenin fosse preso pelos soldados alemães… E Se…
A história nunca vai responder essas perguntas. Ficam aos que gostam de criar e desenvolver teorias esta tarefa. Será que o partido bolchevique iria desenvolver uma política independente incentivar as manifestações de abril pelo fim da guerra? Ou será que a direção do partido que estava na Rússia iria levar o partido a uma aproximação com a ala internacionalistas dos mencheviques e o partido poderia até entrar no governo? São perguntas e questionamentos que ficam no ar. Eu pessoalmente acho que sem o gênio de Lenin a maior Revolução do Século XX não teria acontecido e todos os 102 anos que transcorreram desde Outubro até os dias atuais seriam diferentes. Aquela pequena viagem de trem mudou o rumo da história mundial. Sem ela a história seria outra. Porém, isso não vem ao caso. Criar hipóteses não é o centro deste texto. Nosso alvo é mostrar como a chegada de Lenin na Estação Finlândia, e a publicação das Teses de Abril, mostram um caráter específico do dirigente russo e do Leninismo.
O caminho rumo a Petrogrado
Dia 16 de abril Lenin (usaremos no texto o calendário juliano como referência) chega na Estação Finlândia. O principal dirigente dos bolcheviques passou anos no exílio, e não viu de perto o crescimento gigantesco do partido após a Revolução de Fevereiro e chegava a casa das milhares de pessoas, apesar de ser ainda minoritário comparado aos mencheviques e em especial aos SR´s. Apesar de quase 12 anos fora do país, Lenin tinha o respeito e reconhecimento do partido e dos trabalhadores influenciados pelos bolcheviques.
Em uma dessas lendas urbanas que ficam no imaginário popular. Reza a lenda que o trem que trouxe o dirigente russo de Zurique para Petrogrado era um trem blindado alemão. A historiadora inglesa Catherine Merridale, em seu livro Lenin on the train, trata de construir outra narrativa.
Em plena primeira guerra mundial, a viagem de trem mais importante da história iria ocorrer em uma manhã como todas as outras na neutra e fria Suíça. A neve tomava conta e esbranqueava as ruas e a paisagem. Era 9 de abril, uma dia de Páscoa, quando Lenin e outros 32 membros do partido bolchevique entraram no trem de Zurique para Singen, na fronteira germana-suíça. Eles se despediam da vida de exilados.
Desde a queda do czarismo Lenin e os outros bolcheviques queriam retornar a Rússia, porém o problema era como fazer isso. Em plena Primeira Guerra sair da Suíça cruzar mais de 4 mil quilômetros e chegar em território russo não seria fácil. Grã-Bretanha e França se negaram a ajudar os bolcheviques em seu plano de regresso. Os países da Entente sabia dos posicionamentos de Lenin contrário a guerra e eles queriam mantê-lo afastado da russia para o país continuar no conflito.
A única forma de chegar Rússia era passando por meio da Alemanha, e isso significava negociar com o principal inimigo russo até então. O pedido foi feito pelo socialista suiço Platten. Por sua vez o Alto Comando Alemão e o Ministério de Relações Exteriores tinham começado naquele mesmo ano de 1917 a aplicar uma política de desestabilizar internamente os países adversários. Foram patrocinados amotinados militares na França, os nacionalistas irlandeses foram armados, e até uma rebelião popular na Índia foi cogitado ser financiada. Dessa forma, viam em Lenin uma forma de desestabilizar as forças russas. Assim, as autoridades alemãs conseguiram um transporte seguro para os bolcheviques atravessarem o país, e em troca receberiam prisioneiros de guerra alemães.. Lenin exigia por sua vez que o trem fosse considerada extraterritorial, e isolada do mundo ao redor, sem contato com a população alemã. Os franceses ao saber da volta de Lenin ao seu país de origem cogitaram abrir fogo na floresta ártica na Suécia contra o trem, porém, não levaram a fim esta hipótese. O Estado Alemão acreditavam que estavam dando um passo para a vitória, mal sabiam que estavam permitindo o retorno de um dos principais nomes que combateu a política imperialista em todo o mundo.
Do destino inicial até Petrogrado, a viagem durou uma semana. Na passagem para a Alemanha o trem ficou parado por 20 longas horas, onde o governo alemão mais uma vez se reuniu para ver se realmente iria permitir a viagem. Liberados, os bolcheviques seguem pela Suécia e pela Finlândia, até chegar à Rússia. Após chegar em Singen, um outro comboio levou a delegação de exilados para Sassnitz, na costa alemã do mar Báltico. No trem alemão, um fato curioso, um imenso risco de giz no chão marcava as regiões separando as que seriam destinadas aos 33 bolcheviques russos, e aquelas que os soldados alemães poderiam usufruir.
Chegado na fronteira com a Suécia, uma balsa foi usada para cruzar a fronteira, mas antes, foi preciso convencer as autoridades suecas que ele não era um espião alemão. Chegando em Trelleborg, Lenin e os bolcheviques seguiram rumo a Haparanda, uma das melhores cidades para acompanhar dois fenômenos naturais que acontecem no norte do planeta, as luzes noturnas e o sol da meia noite. De lá os revolucionários foram para a última parada em solo sueco em Karungi, no extremo Golfo de Bótnia, região de fronteira com aquele que era na época o grão-Ducada da Finlândia, este país do Círculo Polar na época fazia parte do Império Russo. O rio que faz a fronteira fino-sueca estava congelado, e de trenó, Lenin e os 32 chegam em Tornio, onde pegam um trem rumo a Petrogrado e direto para história.
A chegada e o terremoto na Estação Finlândia
Centenas de pessoas foram receber os bolcheviques e em especial receber Lenin. No instante que a porta do vagão abriu a multidão avança apreensiva, aguardando a visão daquele homem baixo, franzino, careca e dono de uma barbicha que lhe passou a ser tão característica. Não se tem registros oficiais sobre o discurso de Lenin no dia. Uma comissão especial do soviet da cidade presidida por Cheidze dá as boas vindas oficiais ao dirigente. Não se sabe ao certo quais foram suas palavras. Mas sabemos que foram firmes e duras, como em toda sua trajetória, antes e depois da chegada na Estação Finlândia.
Sabemos que Lenin discursou e o impacto de suas palavras deixaram atônitos muitos dos que foram escutá-lo. Eram palavras e visões políticas totalmente novas e que iam de encontro a política que até então a direção bolchevique vinha aplicando. Os dirigentes do partido devem ter ficados transtornados. As palavras de Lenin devem ter sido uma prévia da leitura que ele mesmo faria das Teses de Abril no dia seguinte a sua chegada, no palácio de Táuride, onde critica a política belicista do governo provisório, pedindo fim a guerra, a retirada do apoio dos bolcheviques ao governo, tecendo fortes críticas aos mencheviques, aos SR´s e a própria direção de seu partido.
Um mês antes, Lenin era um imigrante político desconhecido pelo grande público de Zurique, onde se informava dos eventos somente através da imprensa suíça. O dirigente bolchevique era afastado conscientemente do resto do partido. Ao ter acesso a exemplares do jornal bolchevique, o Pravda, Lenin se enfureceu. Menos da metade de suas contribuições e orientações haviam sido publicadas, e elas sofriam modificações por parte da direção que estava na Rússia. Lenin havia escrito quatro textos ao Pravda, que ficariam conhecido mais tardes, como Cartas de Longe, e destes apenas um foi publicado pelo órgão de imprensa do Partido. Os cortes nos textos de Lenin eram deliberados para distorcer suas ideias, e esconder que o dirigente era contra a continuação da guerra, contra a aliança e fusão com os mencheviques e contra o apoio ao Governo Provisório.
Existem algumas representações sobre a chegada de Lenin na Estação Finlândia, assim como de sua estadia no vagão. A pintura mais famosa sobre o fato é usada também como capa do livro de Merridale. O retrato soviético é belo. Lenin saudando a multidão que o esperava, a porta do trem aberta e a saída triunfal do dirigente russo. Apesar de toda beleza da notória pintura, ela comete uma atrocidade história. Uma verdadeira falsificação do passado como era tão comum na época soviética.
A pintura mostra atrás de Lenin uma figura bigodada e sorridente. Era Josef Stalin. A retratação de Stalin ali, atrás de Lenin, não foi por acaso. Se buscou, em especial nos primeiros anos que Stalin comandou a União Soviética, construir uma imagem de que o georgiano sempre esteve ao lado de Lenin, como seu fiel escudeiro. Dessa forma fotografias foram modificadas para ou incluir Stalin ou retirar seus desafetos, documentos oficiais foram falsificados ou escondidos, e obras e mais obras de arte foram feitas para atingir o imaginário popular.
No mundo real, quando Lenin chega a Petrogrado, Stalin já estava na cidade. Ele havia enfrentado um exílio interno na Sibéria, nunca esteve com Lenin no exterior, e saindo do exílio chegou na cidade com Muranov e Kamenev. Foram estes, de acordo com Pierre Brué, os responsáveis organizativamente pelo Partido pós-fevereiro e até a chegada de Lenin.
Não se tem registros sobre a ida de Stalin ou não para a Estação Finlândia. Mas dirigentes como Kamenev e Federo Raskolnikov estavam no local. Dos dirigentes bolcheviques que vieram com Lenin no trem se destacam Krupskaya, Zinoviev e Sokolnikov. Com exceção da esposa de Lenin, todos os outros quatro foram brutalmente assassinados anos mais tardes por ordem de Stalin.
Stalin passou a ser o editor chefe do Pravda, e junto com Kamenev foi um dos responsáveis por censurar as opiniões de Lenin. Stalin conseguiu convencer Kamenev de que os Soviets deveriam ter como centro a sustentação do governo provisório na medida que este segue “seu caminho de satisfação das reivindicações operárias” e que seria o momento de “consolidar as conquistas democrático-burguesas”. Kamenev por sua vez tinha para a guerra uma política defensista, dizendo que era necessário mantê-la para impedir que as potenciem imperialistas invadissem a Rússia e acabassem as conquistas e liberdades da Revolução de Fevereiro.
Ambos, dois dias antes da chegada de Lenin em Petrogrado defenderam e conduziram a aprovação de conversas para a reunificação com os mencheviques, proposta feita inicialmente pelo menchevique Tsereteli.
Houve vozes de oposição a estas políticas dentro do Partido. Entre elas se destacam Shliapníkon, e Kolontai, esta, apresentou a tese de que os soviets eram na verdade a gênese do poder revolucionário.
Um dos grandes dirigentes da Revolução Russa de Outubro ainda não se fazia presente na cena diária dos processos russos. Qualquer leitor mais atento pode perceber que falamos nomes de grandes dirigentes revolucionários, porém, ainda não tínhamos falados de Leon Trotsky. O fundador do Exército Vermelho e primeiro presidente do soviet de Petrogrado estava no momento da chegada de Lenin preso em Halifax, na Nova Escócia. Ele, que estava no exílio em Nova York, partiu de barco rumo a Rússia revolucionária, porém, autoridades britânicas o interceptaram no meio da viagem e o mantiveram junto de prisioneiros de guerra alemães. Trotsky, que não era do Partido Bolchevique na época, só viria a chegar em terras russas um mês após Lenin.
Voltando aos resultados da chegada de Lenin, ela causou um verdadeiro terremoto no Partido Bolchevique. As Teses de Abril buscavam relocalizar toda orientação anterior, e isso não se daria sem atrito. Lenin detinha de um poder político muito grande. Sua palavra era suficiente muitas vezes para fazer aqueles que estavam indecisos mudarem de posição, ou com que aqueles que se orientavam por meio do seguidismo aos grandes dirigentes, como no caso de Stalin.
Mesmo assim de início Lenin ficou isolado. As palavras de Krupskaia, dirigente do partido e sua esposa, mostram bem o desespero que tomou conta dos bolcheviques, “temo que Lenin tenha enlouquecido”, falou. Esta foi a posição de Bogdanov que afirmou que as Teses eram “delírio de um louco”. Kamenev escreveu para o Pravda, afirmando que as Teses eram de “opinião pessoal” de Lenin. E que o grupo dirigente dos bolcheviques consideram “seu esquema geral como inaceitável”.
Dois oito que com Lenin foram eleitos para o Comitê Central do partido, Kamenev, Noguim Miliutin e Fedorov irão se opor até o fim das discussões as Teses. Com o passar das semanas Zinoviev e Sverdlov, assim como Smilga declaram apoio a Lenin. Stalin havia se silenciado e retirado suas posições anteriores, omitindo-se de expressar qualquer movimentação, até momentos antes da Conferência Nacional do Partido, quando afirmou está com Lenin.
O francês Daniel Bensaid em um de seus textos sobre leninismo chegou a definir a política de Lenin como a do “tempo-partido”. É uma noção interessante. O revolucionário russo na medida em que observa a possibilidade revolucionária aberta em fevereiro ao liberar o poder das massas de trabalhadores, e ao mesmo tempo que esta oportunidade fecha a avenida para um movimento revolucionário da burguesia, sabe que é o momento de aproveitar. Caso contrário o tempo dará conta de afastá-la, por anos e talvez décadas. Cabe aos revolucionários fazer aquilo que é simples no papel, mas extremamente complicado, elaborar a política certa no tempo certo.
Enquanto o restante do partido se encontrava preso às análises atrasadas, inclusive defendidas por Lenin anos anteriores. A grandeza de Lenin foi justamente o fato dele ter ousado. Ter se atrevido, contra tudo e contra todos. Soube perceber que o novo sempre vem e é preciso está preparado. Em vez de esperar que as condições ideais para a ação dos trabalhadores e do Partido, como defendiam os mencheviques, os sociais-democratas alemães, a “velha guarda bolchevique” de Kamenev, Rikov, entre outros, Lenin resolveu arriscar. Mesmo isolado.
Dentre tantas lições que podemos tirar da vida de Lenin que foi um exemplo pedagógico para todos, assim como de seus livros e teorias que seguem extremamente importantes. A arriscada viagem de Lenin através de quatro países até chegar em Petrogrado e sua batalha interna na defesa de suas ideias. Mostram um Lenin que não teve medo de vencer. Fez o possível e o impossível para isso.
Como Lenin não podemos ter medo da vitória, e isso também significa a equação oposta, não podemos ter medo da derrota. Devemos seguir e arriscar. Afinal, ninguém pode ser Lenin, mas todos podemos lenistas.
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