Pular para o conteúdo
Especiais
array(1) { [0]=> object(WP_Term)#20929 (10) { ["term_id"]=> int(4411) ["name"]=> string(29) "100 dias de governo Bolsonaro" ["slug"]=> string(29) "100-dias-de-governo-bolsonaro" ["term_group"]=> int(0) ["term_taxonomy_id"]=> int(4411) ["taxonomy"]=> string(9) "especiais" ["description"]=> string(0) "" ["parent"]=> int(0) ["count"]=> int(20) ["filter"]=> string(3) "raw" } }

Bolsonaro quer acabar com as cotas raciais e retomar o Apartheid da educação

Jean Montezuma, de Salvador, BA

“Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida […] se for ver a história realmente, os portugueses nem pisavam na África, eram os próprios negros que entregavam os escravos”. – Jair Bolsonaro, em entrevista ao programa Roda Viva.

“A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde for possível, aos seus direitos e privilégios”  – Sérgio Buarque de Holanda.

“No Brasil existe um tipo de apartheid: não é feio ser racista, é feio dizer que você é racista”. –  Milton Santos

Ao longo de sua campanha eleitoral, o então deputado Jair Bolsonaro nunca escondeu o seu posicionamento político contrário às cotas raciais. Toda vez em que abordava o assunto nos brindava com uma infeliz combinação de preconceito, do racismo mais escancarado e, não menos importante, um total desconhecimento sobre. Pois bem, o projeto de lei da deputada federal baiana Dayane Pimentel (PSL), do mesmo partido que Bolsonaro, vem atender aos desejos do agora presidente da República que hoje completa 100 dias de (des)governo.

O alvo da deputada é a lei 12.711, sancionada em agosto de 2012 e popularmente conhecida como a lei de cotas. Essa legislação garante a reserva de 50% das vagas das Universidades e Institutos federais para alunos oriundos do ensino médio público. Determina também que se leve em conta para o preenchimento dessas vagas o percentual de negros e indígenas correspondente a cada Estado, sempre de acordo com o último censo do IBGE.

A aprovação da lei de cotas foi, antes de tudo, uma enorme vitória do movimento negro brasileiro. É um valioso reconhecimento por parte do Estado Brasileiro de que os mais de 350 anos de escravidão deixaram marcas profundas, e que ainda hoje temos uma sociedade que é atravessada por desigualdades raciais e injustiças sociais.

Foto: Joana Berwanger/Sul21

No entanto, para Bolsonaro e Dayane, é justo o oposto. Seria a lei de cotas, segundo Dayane, responsável por “criar artificialmente divisões entre os brasileiros”. Vejamos o que argumenta a deputada em seu projeto de lei:

“Se os brasileiros devem ser tratados com igualdade jurídica, pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita não deveriam ser destinatários de políticas públicas que criam, artificialmente, divisões entre brasileiros, com potencialidade de criar indevidamente conflitos sociais desnecessários”

Não é a primeira vez que nos deparamos com tal argumentação. Em 2012, o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade pela constitucionalidade das cotas raciais, rejeitando por consequência uma ação ajuizada contra as cotas pelo DEM, partido do atual presidente da Câmara Rodrigo Maia. O DEM argumentava que as cotas representavam um abalo ao princípio da igualdade, além de estimular o “crescimento de um conflito racial”.

No último final de semana, uma familía negra teve seu automóvel fuzilado, por mais de 80 tiros, disparados por soldados do exército em plena luz do dia no Rio de Janeiro. Em 2015, na mesma cidade, foi a PM quem disparou 111 tiros contra cinco jovens negros que estavam num automóvel. E não se tratam de casos isolados. Segundo Atlas da violência, em 2016 um total de 62.517 mil pessoas foram assassinadas. Desses, um total de 71% são negros e negras. Só nos últimos dez anos, a taxa de homicídios entre os negros cresceu 23%, enquanto para os não negros diminuiu 6,8%. De acordo com o IBGE, os negros representam 63,7% dos desempregados. Já os negros empregados têm uma renda média salarial de R$1.526, enquanto os brancos R$2.697. Segundo IPEA, os negros correspondem a apenas 30% dos servidores públicos, e em carreiras como Diplomacia apenas 5,9%. Considerando os 10% da população com maiores rendimentos, oito em cada dez são brancos. Na outra ponta, considerando os 10% da população com menores rendimentos, oito em cada dez são negros.

Pensa comigo, parece razoável para você dizer que são as cotas as responsáveis por criar “artificialmente divisões” e estimular um conflito racial? O Brasil foi o último país a abolir oficialmente a escravidão. Tal medida, porém, não veio acompanhada de quaisquer ações de cunho reparatório. Se nos Estados Unidos a negação do acesso à terra, ao voto e à educação foram expressas em lei, aqui no Brasil tudo isso também foi negado, mas a dissimulação das elites brasileiras é tamanha que tais vetos, embora reais, não estão expressos em nenhuma legislação ou texto constitucional. O apartheid aqui é disfarçado. Ou melhor, mal disfarçado, todos os dias.

A ação movida pelo DEM, as declarações racistas de Bolsonaro, e o projeto da deputada Dayane Pimentel, cada qual ao seu modo, reproduzem em níveis diferentes o mito da democracia racial. A negação do racismo é parte importante da propaganda ideológica diária promovida pela elite econômica brasileira. Contudo, tal cortina de fumaça não consegue resistir quando exposta aos ventos da realidade.

Em 2005, apenas 5,5% dos negros em idade universitária estavam no ensino superior. Após dez anos, esse número mais que dobrou, chegando a 12,8%. Mesmo assim, ainda é, de longe, inferior aos brancos em idade universitária, que têm um percentual de 26,5%. Na pós-graduação o número de negros também aumentou, passando de 48,5 mil em 2001, para 112 mil em 2013. Mesmo assim, segundo o IBGE, negros e negras, que são a maioria da população (52,9%), representam apenas 28,9% dos pós-graduandos e 34% dos graduandos. Levantamento feito pelo portal G1, com base em dados do INEP, apontou ainda que, em 2017, apenas 16% dos docentes do ensino superior são negros.

Todos esses dados ajudam a ilustrar o quanto ainda estamos longe de superar a profunda desigualdade racial na qual o acesso à educação está imerso no Brasil. Porém, os dados demonstram também o quanto a política de cotas tem cumprido um papel muito progressivo. A elite econômica e racista do Brasil, herdeira dos senhores de engenho, nunca aceitou as cotas. Assim como também tem horror à conquista e ampliação de quaisquer direitos sociais. Ver seus filhos tendo que conviver com negros nas salas de aula das Universidades é uma afronta aos seus privilégios. Ao se voltar contra o sistema de cotas, Bolsonaro mostra que seu governo não veio de modo algum para “mudar tudo isso que tá aí”. Pelo contrário, atacar as cotas é uma tentativa desesperada, apoiada por uma classe média ressentida, de fazer voltar para trás a roda da História.

Marcado como:
cotas raciais