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OPRESSÕES

O legado de Martin Luther King

Por: Lee Sustar*, dos Estados Unidos. Tradução: Gabriel Dayoub.

Quase todo político do Partido Democrata, negro ou branco, reivindica o legado de Martin Luther King Jr.

É convenientemente esquecido que, nos anos finais de sua vida, antes de seu assassinato, em 1968, King rompeu com o presidente Lyndon Johnson, do Partido Democrata, por sua oposição à Guerra do Vietnam e pela falta de iniciativa do governo central para garantir a eficácia dos direitos civis nos estados do Sul dos Estados Unidos. Isso é algo que a maior parte dos democratas de projeção nacional não estaria disposta a fazer nos dias atuais.

As reformas defendidas por King durante a maior parte de sua vida eram moderadas, se comparadas com as demandas dos nacionalistas negros mais radicais. Ainda assim, elas foram condenadas pelo mesmo Partido Democrata que tem tentado desde então transformar Martin Luther King em um herói e um símbolo da acomodação do povo negro ao sistema.

Para compreender o desenvolvimento de King para a esquerda é necessário observar a natureza de sua organização, a Conferência de Lideranças Cristãs do Sul (Southern Christian Leadership Conference – SCLC), e as lutas de classes por trás do movimento por direitos civis.

Quando King emergiu como o líder do boicote dos ônibus da cidade de Montgomery, no estado do Alabama, em 1955-56, ele estava à frente de um movimento cujo exemplo seria seguido por dezenas de outras cidades do sul nos anos seguintes. A organização que ele ajudou a fundar, a Conferência de Lideranças Cristãs do Sul (Southern Christian Leadership Conference – SCLC), abriu uma série de escritórios locais, mas era, essencialmente, um grupo de organizadores profissionais que se movia de cidade em cidade para participar de lutas iniciadas por estudantes, trabalhadores e fazendeiros negros.

O objetivo da SCLC não era ajudar esses ativistas a se desenvolverem de forma independente, mas dirigir as lutas para um conflito “não-violento” com supremacistas brancos e policiais brutais que se apoiavam nas leis segregacionistas, conhecidas como leis Jim Crow. De acordo com líderes do SCLC, como Hosea Williams e Wyatt T. Walker, o governo federal seria forçado a intervir em apoio aos ativistas para impedir a carnificina.

No começo, a estratégia parecia funcionar. Uma decisão da Suprema Corte deu apoio ao boicote de ônibus em Montgomery. O presidente John F. Kennedy apresentou um projeto de lei de garantia de direitos civis, depois que policiais da cidade de Brimigham, no Alabama, atacaram diversas marchas organizadas pela SCLC, em 1963. O projeto tornou-se lei no ano seguinte. Confrontos sangrentos em St. Augustine, na Filadelfia, e Selma, no Alabama, forçaram o sucessor de Kennedy, Lyndon Jhonson, a apresentar ao Congresso a Lei dos Direitos de Voto (Voting Rights Act), em 1965.

John Kennedy e Lyndon Johnson apoiaram o movimento por direitos civis apenas quando acreditaram que era necessário afastar uma rebelião negra mais militante. Eles não tinham vontade alguma de retirar poder de seus companheiros de partido sulistas. King e os protestos do SCLC podiam ser tolerados enquanto permanecessem “não-violentos”, se limitassem a lutar contra a segregação no sul e não ameaçassem o a discriminação econômica racista presente no coração do capitalismo americano desde sua origem.

Mas em meados de 1965, a credibilidade de King entre os ativistas do sul estava diminuindo. O hábito do SCLC de chegar no meio de uma luta, aproveitar-se da cobertura da mídia e negociar com o sistema irritava tanto militantes negros locais quanto o cada vez mais radical Comitê Não-Violento de Coordenação de Estudantes (Student Non-Violent Coordinating Commitee – SNCC), que estava tentando ajudar os negros dos estados sulistas a criarem suas próprias lideranças.

Enquanto isso, o nacionalista negro Malcolm X argumentava corretamente que a estratégia “não-violenta” de Martin Luther King e da SCLC expunha a população negra aos ataques da polícia e de bandos racistas.

As críticas a King alcançaram seu ápice em Selma, no Alabama, em 1965, quando a polícia atirou bombas de gás lacrimogêneo e agrediu fisicamente ativistas que estavam iniciando uma marcha em direção à capital do estado, em Montgomery. A polícia não bloqueou a passagem da segunda marcha organizada. No entanto, King desistiu do protesto e preferiu levar os manifestantes de volta a Selma a desafiar uma decisão judicial. Esse recuo, somado à negociação de pequenas concessões com políticos locais, foi denunciado como uma “traição” pelos militantes radicais.

As divergências ficaram evidentes um ano depois, depois de James Meredith, o primeiro estudante negro da Universidade do Mississipi, ter sido assassinado durante sua marcha de protesto pelo estado. King e o líder do SNCC, Stokley Carmichael (depois conhecido como Kwame Ture) estavam entre os líderes do movimento por direitos civis que se juntaram às centenas de ativistas para completar a marcha de Meredith, no verão de 1966.

Atacados por bandos racistas e por policiais durante todo o caminho, manifestantes irados juntavam-se ao chamado improvisado de Carmichael pelo “Black Power” (Poder Negro) e ouviam atentamente suas ideias nacionalistas. King recusava-se a fazer coro com os líderes mais conservadores que atacavam o slogan “Black Power” como racista. Por outro lado, ele se relutava em apoiá-lo, na medida em que implicava a ação violenta e afastaria o potencial apoio de brancos à causa.

“Nós temos que transformar nosso movimento em um poder positivo e criativo”, dizia quando perguntavam sua opinião sobre Carmichael. Entre militantes negros, King era visto como um traidor. Mas, para os liberais democratas, preocupados com a influência do nacionalismo negro e com a disseminação de rebeliões em cidades do norte, a posição de King soava como um apoio ao Black Power.

King reconhecia que estava tentando fazer a ponte entre dois mundos cada vez mais distantes. “O governo tem que me dar algumas vitórias se quer que em mantenha as pessoas não-violentas”, ele dizia. Na verdade, King em breve reconheceria os democratas dos estados do norte como inimigos diretos. Desde a Lei dos Direitos de Voto (Voting Rights Act) de 1965, ele e a SCLC voltaram suas atenções cada vez mais ao movimento negro radicalizado dos estados do norte.

A ruptura final com o presidente Lyndon Johnson se deu em abril de 1967, quando King defendeu o fim da guerra “colonial” no Vietnam.

Enquanto um número considerável de senadores democratas já tinha se manifestado contra a guerra, permanecia nos líderes do movimento pelos direitos civis o apoio ao governo. Jornais liberais como o New York Times e o Washington Post, até então simpáticos a Martin Luther King, atacaram suas manifestações contra a guerra.

Como vingança, Lyndon Johnson permitiu o aumento da vigilância e repressão do FBI a King e outros líderes da SCLC. O presidente ficou irado quando descobriu os planos de King para liderar uma “Marcha do Povo Pobre” em Washington.

Johnson e os democratas tinham confiado nas táticas não-violentas de Martin Luther King e seu apoio ao partido como um importante contraponto à crescente radicalização do movimento Black Power. Quando ele denunciou a guerra em 1967, o Partido Democrata passou a encará-lo como um traidor.

Ainda assim, a ruptura de com os democratas não angariou a King o apoio do movimento negro nos estado do Norte, onde rebeliões estavam varrendo as maiores cidades do país. A política dos nacionalistas negros mais radicais – particularmente sua reivindicação da auto-defesa diante da violência racista – parecia dialogar mais com as lutas nessas circunstâncias.

Atacado tanto à esquerda quanto à direita, King foi forçado a repensar sua carreira e a organização que liderava. “Nós precisamos reconhecer que havia uma limitação nas nossas conquistas no sul”, afirmou em uma reunião da direção do SCLC, em 1967. A organização deveria reivindicar “uma redistribuição radical de riqueza e poder”. Em várias ocasiões, King disse aos seus apoiadores que os Estados Unidos precisavam de um “socialismo democrático” que garantisse trabalho e salários justos para todos.

Outros líderes da SCLC, como Andrew Young, Jesse Jackson e Ralph Abernathy, eram contrários aos planos da Marcha do Povo Pobre. Os escritórios da SCLC no sul foram negligenciados durante a tentativa de organização de atos contra a segregação urbana racista em Chicago. Os escritórios do norte estavam ainda mais fracos.

Além disso, a ideia da marcha colidia com a orientação para o “capitalismo negro” da Operation Breadbasket da SCLC, dirigida por Jackson. “Se você está tão interessado em fazer sua própria campanha que não consegue executar o que a própria organização está estruturada para fazer, vá em frente”, disse King em resposta às críticas de Jackson à marcha. “Se você quer cavar seu próprio nicho na sociedade, vá em frente. Mas, pelo amor de Deus, saia do meu pé!”

Ainda assim, os democratas viam a Campanha do Povo Pobre (Poor People’s Campaign) de King como uma traição – enquanto a direita declarava que estava provado que King era um “comunista”, como sempre haviam declarado. Esses elementos, encorajados pela campanha presidencial do abertamente segregacionista George Wallace, ameaçavam publicamente a vida de Martin Luther King.

Encarando a hostilidade do governo Lyndon Johnson, críticas à direita e à esquerda do movimento negro e uma organização dividida, King estava mais isolado politicamente do que nunca quando foi assassinado em Memphis, em 4 de abril de 1968, menos de três semanas antes do início da Campanha do Povo Pobre (Poor People’s Campaign). King viajou a Memphis para apoiar uma greve de trabalhadores negros do saneamento. Ele foi o único líder do movimento por direitos civis a fazer isso.

Pouco depois de sua morte, a grande imprensa começou a conversão de King em um santo inofensivo.

Para fazê-lo, no entanto, eles tiveram de enterrar o verdadeiro legado de Martin Luther King: tanto o líder das primeiras e mais importantes lutas do movimento por direitos civis que se recusou a aceitar os apelos por paciência e moderação de seus aliados democratas, quanto o dirigente negro radical do fim da década de 1960, cuja visão do que era necessário para mudar a sociedade tinha se ampliado e avançado.

 

*Publicado originalmente no site Socialist Worker, publicação da International Socialist Organization (ISO), em 14 de dezembro de 2014. Disponível em: https://socialistworker.org/2012/12/14/legacy-of-martin-luther-king