Nesta segunda-feira, dia 04, o agora ministro Sérgio Moro reuniu imprensa, governadores e membros do governo para apresentar o seu pacote “Anticrime” e contra a corrupção. Longe de apontar e discutir questões que tocam as causas do crescimento da violência, o pacote de medidas do ministro da Justiça e da Segurança Pública é uma afirmação de seu compromisso com a lógica autoritária do seu chefe, Jair Bolsonaro. Ao contrário do que costumava dizer o presidente durante a campanha eleitoral, se aprovado, o projeto de Moro não vai “mudar tudo o que está aí”. Na verdade, irá agravar a lógica perversa de criminalização da pobreza, encarceramento em massa e genocídio da juventude negra. Haverá mais sangue derramado nas periferias, e mais corpos negros abarrotando um sistema prisional que já se arrasta à beira do colapso.
Imagine o estádio da Fonte Nova ou a Arena Corinthians. Imaginou? Pois bem, isoladamente esses dois grandes estádios não comportariam o número total de vítimas de mortes violentas em 2016. Ao todo 62.517 mil pessoas foram assassinadas. Segundo os dados do Atlas da Violência divulgados em 2018, 70% dessas mortes foram por meio de armas de fogo. No intervalo de uma década, de 2006 a 2016, 553 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. São números espantosos, ainda mais quando comparados, por exemplo, aos da Síria (500 mil) que nesse mesmo período esteve mergulhada numa sangrenta guerra civil.
Agora imagine o estádio do Maracanã. A população carcerária do Brasil, que segundo o INFOPEN (Levantamento de Informações Penitenciárias) é de 726 mil presos, seria capaz de lotar dez Maracanãs. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas da China (1,6 milhão) e Estados Unidos (2,1 milhões). Também salta aos olhos o ritmo galopante do crescimento da população carcerária. Em 2006 possuíamos 401 mil presos. A lei de drogas, aprovada em 2006, contribuiu de maneira qualitativa para esse salto. Segundo a Pastoral Carcerária, cerca de 30% da população carcerária brasileira é resultante dessa lei.
Os dados chocam. O Brasil já está entre os países onde mais se mata e prende no mundo. No entanto, há uma ideologia pra lá de falsa que penetrou nos corações e mentes de milhões de brasileiros. Uma visão distorcida da realidade que classifica o Brasil como o “país da impunidade” e onde “ninguém nunca vai preso”. Uma ideologia que ajuda a disseminar a certeza cega que defende liberação do porte de armas para aumentar a segurança. A crise social e política na qual o país está mergulhado só contribuiu para alimentar essa ideologia. A extrema direita, com Bolsonaro à frente, foi com quem melhor manipulou esse estado de ânimo contagiado pelo medo, desalento e desesperança.
O projeto de Moro cavalga esse medo e se apoia numa opinião pública disposta a aceitar medidas carregadas de viés autoritário. Num país onde 40% da população carcerária já é formada por presos provisórios, o ministro Moro apresenta um projeto que visa transformar isso na regra. O resultado prático será um impulso ainda mais avassalador no fenômeno do encarceramento em massa. Vale registrar que os presídios brasileiros já possuem uma taxa de ocupação de 197% (segundo INFOPEN), ou seja, praticamente o dobro da sua capacidade.
Na outra ponta, outro aspecto gravíssimo do projeto de Moro pode contribuir para flexibilizar, atenuar e até mesmo isentar de investigação e punição os casos de mortes decorrentes da ação policial. Segundo o ministro, essa medida traria mais segurança jurídica para os policiais no exercício de sua função. Nada mais falso. Isso já está regulado no Código Penal. Na verdade, o Estado brasileiro já é por demais permissivo, pra dizer o mínimo, quando o assunto é violência policial. Exemplo disso é o fato de que a maioria absoluta dos inquéritos referentes a mortes em operações policiais tem como destino o arquivamento.
Durante anos, com o movimento negro à frente, se lutou contra o dispositivo do “auto de resistência” criado ainda durante a Ditadura militar. Na prática esse dispositivo virou um amparo legal para banalização da prática de extermínio. Em 2016 as Policias federal e civil mudaram a definição para “lesão corporal decorrente de oposição a ação policial” ou “homicídio decorrente de oposição a ação policial”. O que na prática não mudou seu conteúdo. Concretamente a lei Anticrime de Sérgio Moro será um gatilho para o aumento da já elevadíssima taxa de letalidade das policiais no Brasil.
Diante de um projeto que nasce imerso numa lógica autoritária e assassina, pensado e desenvolvido por um indivíduo que atuou deliberadamente em favor do golpe contra Dilma e da prisão ilegal e política de Lula, a posição do governador Rui Costa (PT) é um escândalo. Em entrevista a revista Veja, o governador da Bahia afirmou: “No geral, o pacote tem o nosso apoio. Tem maior rigidez no combate ao crime organizado, embora não tenha dado tempo de ler todas as vírgulas. Nós precisamos olhar, com carinho, as vírgulas e os artigos, para que o rigor não signifique retirar qualquer valor de cidadania e direito de defesa das pessoas”. Já ao Correio da Bahia se posicionou da seguinte maneira: “preciso ler o projeto, até porque ele apresentou lá os principais pontos, mas conceitualmente eu manifestei meu apoio.”
Primeiramente, frente a um tema tão sério, seria de bom tom o governador ler o projeto antes, com todas as suas vírgulas e artigos, antes de sair por aí manifestando seu apoio “conceitual” ao mesmo. Em segundo lugar, e isso é muito mais grave, a sinalização positiva de Rui Costa ao projeto de Moro deixa transparecer certa identificação do governador baiano com essa lógica autoritária de conceber a questão da segurança pública. Em 2015, no seu primeiro ano no governo da Bahia, 299 pessoas foram mortas em decorrência de ações da PM baiana. Foi nesse mesmo ano que ocorreu a terrível Chacina do Cabula, na qual policiais executaram 12 jovens na Vila Moisés. Na época Rui Costa comparou aqueles policiais a artilheiros na cara do gol. Caso aprovado, o novo projeto de Moro deixará esses artilheiros ainda mais à vontade.
Por fim, na mesma entrevista ao Correio da Bahia, Rui Costa afirmou que: “ninguém espera que o governador se omita ou seja oposição pela oposição”. Ao que parece, o governador petista da Bahia parece nada ter aprendido com as lições do golpe, e menos ainda com o último processo eleitoral. Frente ao governo Bolsonaro não se é “oposição pela oposição”. Quando o inimigo é o fascismo, se é oposição porque estão em jogo até mesmo os direitos democráticos mais elementares, entre eles a nossa vida. A essa altura do campeonato Rui Costa ainda não encontrou motivos que justifiquem ser oposição ao projeto político de Bolsonaro? Com esse tipo de discurso, Rui Costa presta um enorme desserviço para aqueles e aquelas que esperam, como mínimo, que as lideranças e organizações de esquerda se engajem na construção da ampla e necessária resistência contra a ameaça representada por Bolsonaro, Moro e sua horda.
Raso, superficial e reacionário no terreno jurídico. O projeto de Sérgio Moro encontra sua fortaleza no avanço conservador que permitiu a chegada de Bolsonaro ao poder. Tal contexto político sinaliza que a oposição a lei Anticrime correrá em desvantagem. No entanto, se trata de uma batalha urgente e necessária. Para travá-la precisaremos de uma ampla rede de unidade com o movimento negro, os policiais anti-fascistas, o conjuntos dos movimentos sociais e os partidos e organizações de esquerda. Ao contrário da infeliz declaração do petista Rui Costa, não se trata de ser oposição pela oposição. Trata-se de tomar posição, de escolher um lado, o lado da luta contra o racismo institucional, a criminalização da pobreza, o encarceramento em massa e o genocídio da juventude negra.
Foto: Manu Dias/GOVBA/Divulgação
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