O arquivamento do Projeto de Lei nº 7.180/2014, batizado de Escola Sem Partido por seus criadores, foi uma ótima notícia, em meio a série de retrocessos anunciados diariamente pelo futuro governo. A Comissão Especial encerrou o ano sem conseguir aprovar o relatório favorável ao projeto, após 13 sessões marcadas por debates acalorados, gritos e xingamentos. Foi uma grande vitória de educadores e estudantes que lotaram as sessões da Comissão e de parlamentares do PSOL, PT e PCdoB, que atuaram de forma incansável obstruindo a votação, em combate com pastores, delegados e figuras como Eduardo Bolsonaro, Rogério Marinho e Marco Feliciano.
Os defensores do projeto tinham a maioria dos votos da Comissão, com folga. Mas não fizeram uso desta vantagem. Além da ausência nas reuniões, lideranças do movimento Escola Sem Partido chegaram a cogitar a retirada de parte do conteúdo e Olavo de Carvalho, guru do novo governo, gravou um vídeo contra o projeto.
A vitória na Comissão deve ser comemorada por todos os educadores do País, em especial os que já vêm sendo perseguidos, em sua liberdade de cátedra. O projeto é arquivado e volta a fase inicial.
Mas isso não significa que a luta acabou. Ao contrário. O Congresso eleito terá maioria de deputados ligados a posições conservadores. Além dos 52 deputados do PSL de Bolsonaro e outros partidos, a Câmara contará com o aumento das bancadas “do Boi, da Bala e da Bíblia”, que vão retomar este projeto e os outros cinco textos que tratam do mesmo tema. Certamente esse tema será uma prioridade destes parlamentares no primeiro semestre de 2019. A guerra está apenas começando.
Uma pauta que alimenta o ódio
O arquivamento, por outro lado, permite que este tema permaneça por mais tempo em debate sob o novo governo, como parte da “pauta ideológica” que garantiu sua votação. Esse pacote “ideológico” é a forma que o futuro governo encontrou para alimentar uma parte de sua base de apoio que se move pelo discurso de ódio. Esse eleitorado necessita de “inimigos internos”, papel que já é atribuído não só aos professores “doutrinadores”, mas a toda a esquerda, a sem-tetos, indígenas, mulheres, LGBTs, sindicalistas, ativistas de direitos humanos, mídia, etc.
Manter uma grande visibilidade nesta guerra ideológica e moral será útil para desviar a atenção sobre as denúncias de corrupção, como as que começam a surgir contra a campanha do PSL. A ponto de Bolsonaro, no dia 21 de novembro, afirmar: “muito mais grave que a corrupção é a questão ideológica. Vocês sabem muito bem disso”. E servirá ainda para reduzir o desgaste com em torno de pautas impopulares, como a reforma da Previdência, redução do salário mínimo e ataques aos direitos.
Lei da mordaça pretende acabar com a resistência
O PL 7.180 não é uma cortina de fumaça. A campanha pretende instaurar um regime de medo e coerção contra milhões de professores em todo o país, substituindo o livre debate de ideias e o pensamento crítico pelo pensamento único. É uma tentativa de calar universidades e escolas, que são, historicamente, espaços de resistência, como recentemente, nas manifestações antifascistas. Em resumo, pretende enfraquecer a resistência imediata.
Mas há também objetivos estratégicos, de longo prazo. A extrema direita sabe que impedir o livre pensamento é impossível, ainda mais através de uma lei. Sabe que só terá sucesso se travar e vencer uma luta ideológica para conseguir apoio a suas ideias em todos os espaços. Por isso as críticas de figuras como Olavo de Carvalho e iniciativas como do MBL, que busca formar “uma geração” de jovens de direita, perseguindo os professores em sala de aula.
Há ainda mudanças mais profundas, como a mudança na base curricular do ensino médio, anunciada na semana passada. O novo formato prevê que apenas Português e Matemática sejam obrigatórias, com 60% das aulas. Os governos escolheriam o conteúdo que preencheria o tempo restante, de acordo com a oferta de professores. Desta forma, um aluno poderia passar os anos do ensino médio sem ter acesso a história, geografia e filosofia, ou de artes e biologia, por exemplo.
A mudança irá formar gerações de jovens acríticos, sem conhecimento mínimo sobre a história do país, como o período da ditadura ou a escravidão, e sem capacidade de estabelecer um pensamento crítico. Combinada com um silenciamento dos professores, o resultado será uma massa de futuros trabalhadores ainda mais facilmente manipulável, tanto para absorver ideias como a do Criacionismo ou para apoiar propostas absurdas, como a de que as mulheres vítimas de estupro devem ser obrigadas a ter o filho e ainda conviver com o estuprador.
Fortalecer as frentes contra a mordaça e a Frente Única pelas liberdades e direitos
A vitória do arquivamento do processo é um exemplo para todos os que estão temerosos com o que vem pela frente. Mostra que, apesar da grande derrota com a eleição de Bolsonaro, é possível resistir e, mais ainda, é possível vencer. E ainda que, para isso, é necessário atuar em unidade, como fizeram os educadores, construindo frentes de luta contra o projeto, e os parlamentares da oposição.
O arquivamento foi resultado de uma ampla unidade, formada em uma verdadeira frente única contra o projeto, construída pelos educadores e suas entidades. A presença constante nas sessões da Comissão, definindo as estratégias com os parlamentares, e a campanha contra o projeto. Esse movimento se refletiu ainda em frentes nas universidades, nas escolas, em centenas de atividades e debates e conversas com pais e alunos. E dezenas de cartilhas e iniciativas de acolhimento, orientando como agir em caso de perseguição.
Ninguém consegue ensinar com medo. A unidade dos educadores mostrou o caminho para afastar o medo. É preciso fortalecer as frentes contra a Lei da Mordaça, em uma frente única dos educadores e estudantes e dos setores oprimidos, como mulheres, LGBTs e negros e negras, alvos do projeto.
Junto a isso, devemos lutar para que esta unidade sirva de exemplo e seja parte de uma frente única nacional contra o novo governo e seus retrocessos. Uma frente que lute contra os graves ataques e perseguições da “pauta ideológica” e que as combine com a luta econômica contra a reforma da Previdência, liberdades e direitos. Esse é o caminho para que esta vitória seja a primeira de muitas.
Foto Lula Marques/Fotos Públicas
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