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EDITORIAL

Defesa ou prisão de Lula? O falso dilema da esquerda socialista

Por Henrique Canary

O indiciamento de Lula no processo da Lava Jato gerou um interessante debate dentro da esquerda socialista. Naturalmente, não incluímos nesse conceito as correntes petistas, cuja defesa acrítica de Lula é a única resposta que conseguem formular ao ataque proferido pelos procuradores de Curitiba. Estes setores se reuniram em frente ao Novotel em São Paulo no dia da entrevista coletiva de Lula, cantaram e se emocionaram ao som das canções da campanha de 1989, como se nada tivesse acontecido com Lula, o PT e o país nos últimos 27 anos. O debate com estes setores é necessário, mas se encontra em outro terreno. Trata-se de discutir aí o verdadeiro significado dos governos petistas e a necessidade de não repeti-los. Este debate já está sendo feito, e deve continuar. Mas não neste artigo.

O debate mais interessante da atual conjuntura se dá entre aqueles que sempre se colocaram na oposição de esquerda ao governo petista, e que agora, diante de novos fatos, discutem o que fazer. Desde o impeachment de Dilma, o campo da oposição de esquerda havia se polarizado, a partir de posições diametralmente opostas.

De um lado, a tendência a confundir a justa e necessária luta contra o golpe com a defesa política do governo petista. De outro, a tendência a confundir a justa e necessária luta contra o governo com o apoio à manobra reacionária do impeachment.

Já um terceiro setor da esquerda, no qual eu me incluo, buscava evitar esse falso dilema. Este setor dizia que, por um lado, não apoiava nem jamais apoiaria politicamente o governo petista. Por outro, se colocava radicalmente contrário a que a direita reacionária acertasse as contas com o PT por meio de um golpe parlamentar. Esta parte da esquerda socialista dizia ainda que somente a classe trabalhadora e o movimento de massas tinham legitimidade para esse acerto de contas com o PT. E por isso se opunha ao impeachment. Olhando agora para o passado, continuo acreditando que esta terceira posição era a mais correta.

Agora, o indiciamento de Lula aparece como um novo capítulo desta intrincada novela. Vamos então ao debate.

O que é a Lava Jato?

Como já afirmamos diversas vezes no Esquerda Online, a operação Lava Jato é uma operação político-policial do Estado brasileiro, ou seja, não é uma simples investigação sobre a corrupção no Brasil. Esta operação, além de atuar de forma seletiva, é totalmente política. Ela visa incidir na crise política nacional com uma linha ideológica muito bem definida: o problema do país seria a corrupção, e o grande culpado pela corrupção seria o PT. Assim, a classe dominante eliminou dois problemas de uma só vez: ocultou que o ajuste fiscal é o verdadeiro culpado pela piora das condições de vida da população e apresentou o fracasso do PT como se fosse o fracasso de toda a esquerda.

Houve pelo menos dois momentos em que ficou evidente o uso político da Lava Jato e sua articulação estreita com a grande mídia. O primeiro foi na divulgação do áudio da conversa entre Dilma e Lula. O objetivo era impedir a posse de Lula como ministro e garantir a continuidade do processo do impeachment. O segundo, mais grave que o primeiro, foi o indiciamento de Lula nesta semana. Sem provas contundentes, o objetivo dos procuradores de Curitiba era criar um factóide que ocupasse a cena política nacional, deixando em segundo plano o movimento pelo Fora Temer, que tinha mobilizado dezenas de milhares de pessoas na semana anterior.

A corrupção é um problema real no Brasil. Mas a Lava Jato nunca pretendeu punir os responsáveis por este mal. Ela sempre foi uma operação política de criminalização do PT e desmoralização da esquerda em geral. Por isso, fomos contra a Lava Jato em todas as suas fases. Em nossa opinião, a disputa política tem que ser resolvida no terreno político. A esquerda socialista tem todo o interesse em enfrentar o PT política e eleitoralmente, agora e em 2018. São os trabalhadores e o povo que devem dar o veredito final sobre os 13 anos de governos petistas, não o juiz da República do Power Point.

Defesa política de Lula?

O indiciamento de Lula pela Lava Jato suscitou um debate sobre a necessidade ou não de sua “defesa” pela esquerda socialista. Para nós é evidente que não se pode fazer nenhuma defesa política de Lula e do PT. Ser contra esse indiciamento seletivo nada tem a ver com defender os 13 anos de governo do PT. Da mesma forma, ser contra o impeachment da Dilma não significava defender politicamente o seu mandato.

Não defendemos Lula pelo simples fato de que ele é indefensável. Tanto politicamente, por tudo o que fez ao longo de seus dois mandatos, quanto do ponto de vista das macabras relações que estabeleceu com os setores mais bizarros do empresariado brasileiro: as empreiteiras e o agronegócio. Nesse sentido, a esquerda socialista não deve pôr a mão no fogo por Lula.

O próprio discurso de Lula durante a entrevista coletiva demonstra que o que ele busca não é exatamente “defender-se”. Lula poderia ter chamado os trabalhadores e o povo a defendê-lo. Mas não o fez. Ao invés disso, preferiu lembrar todos os serviços que prestou à burguesia nacional e internacional. O público-alvo do discurso de Lula não foi o povo em geral, nem os trabalhadores petistas, nem a esquerda socialista. Foi a alta burguesia. O que ele disse, em síntese, foi: “eu pacifiquei os conflitos sociais no país; não trilhei o caminho do socialismo e nem mesmo dos governos nacionalistas à la Chavez; vocês nunca lucraram tanto quanto no meu governo; e agora vão fazer isso comigo?”. Lula é um negociador. O que ele busca é um acordo. Não com os trabalhadores. Mas com os de cima, com a corja que o está perseguindo. Lula quer repetir seu erro. A esquerda socialista não deve segui-lo em direção a esse novo abismo.

Lula na cadeia?

Lula deve então ser preso? Não. Sempre fomos oposição a Lula, mas dessa ideia não deriva, de forma alguma, a proposta de que ele seja preso. Por que? Porque a única força social com legitimidade para julgar Lula é o povo trabalhador brasileiro. E este futuro julgamento deve ser político, não criminal. O principal crime de Lula foi político, foi contra os sonhos e as esperanças de toda uma geração de lutadores que derrubaram a ditadura, construíram o PT e levaram Lula à presidência. O crime de Lula foi ter governado com o que há de pior na política brasileira. Seja o que for que tenha feito nos bastidores, o fez para garantir essa governabilidade, ou seja, seus objetivos eram essencialmente políticos. Os piores possíveis, mas ainda assim: políticos.

Dois pesos e duas medidas?

Mas se defendemos a prisão de todos os corruptos e corruptores, por que não defendemos a prisão de Lula? Basicamente, porque não reconhecemos a legitimidade nem a legalidade da Lava Jato. Ora, a afirmação do procurador Henrique Pozzobon de que “não teremos aqui provas cabais” é uma demonstração do ridículo desta operação, do seu caráter seletivo e de julgamento político. Mas nós não reconhecemos os procuradores de Curitiba como aptos a julgar e condenar Lula e o PT por seus crimes políticos.

Se a Lava Jato condenar Lula (ainda que seja por um crime real, como o de corrupção ou outro), isso vai significar uma grande deseducação para a classe trabalhadora. Os trabalhadores entenderão erroneamente que o principal crime de Lula foi o triplex do Guarujá, o sítio de Atibaia e os pedalinhos, quando seu crime foi muito maior, foi político, foi sua traição à causa dos trabalhadores, como dissemos mais acima. A classe trabalhadora entenderá erroneamente que pode confiar no poder judiciário para resolver os problemas políticos do país, que pode confiar em um juiz ligado ao PSDB para julgar as organizações advindas da classe trabalhadora, os líderes nascidos na classe trabalhadora.

Um exemplo instrutivo

Em agosto de 1917, os setores mais reacionários da burguesia russa se levantaram em armas para a atacar o débil governo Kerenski. Mas o verdadeiro alvo não era o confuso advogado de Simbirsk, conterrâneo de Lenin. O general Kornilov, chefe do golpe, mirava em Kerenski para acertar o movimento de massas, os trabalhadores e suas organizações. Kerenski foi cultuado e aclamado pela burguesia russa enquanto serviu. Depois, foi descartado, apesar dos enormes serviços prestados. Kornilov, aliás, era membro do governo Kerenski, comandante-em-chefe do exército russo.

A sabedoria dos bolcheviques consistiu em saber distinguir o alvo aparente de Kornilov (Kerenski), de seus verdadeiros objetivos (esmagar o movimento de massas). Sem prestar nenhum apoio político a Kerenski, os bolcheviques colocaram todas as suas forças na luta contra Kornilov. “Apoiem o fuzil sobre o ombro de Kerenski e disparem contra Kornilov. Depois ajustaremos as contas com Kerenski” foi a instrução dada por Trotski desde a prisão, onde se encontrava naquele momento, aos operários e soldados que vieram consultá-lo sobre o que fazer. Não se tratava de “defender Kerenski”, mas de defender a classe trabalhadora.

É claro que não estamos diante de um enfrentamento militar, de uma guerra, como no caso russo. Mas a lógica do raciocínio bolchevique permanece válida em toda sua extensão: os bolcheviques foram oposição de esquerda a Kerenski, mas nunca apoiaram nenhuma ação (nem política, nem militar) da direita reacionária. Nunca terceirizaram a tarefa de derrubar Kerenski. Quando o derrubaram, foi com suas próprias forças, com as forças da classe operária.

A mensagem da Lava Jato

A Lava Jato quer passar uma mensagem: “o PT é a esquerda; toda a esquerda é igual; a esquerda rouba; a esquerda não presta”. Por isso a esquerda socialista precisa se opor à prisão de Lula. Não se trata de “rouba, mas é nosso”, nem de “rouba, mas é de esquerda”. Se trata de combater a farsa da Lava Jato. Ela ataca Lula e o PT para matar de uma vez por todas na consciência dos trabalhadores o sonho de transformação social que um dia o PT representou. “São todos iguais”, dirão os trabalhadores depois da Lava Jato. E com isso as coisas ficarão mais difíceis para a verdadeira esquerda. A destruição do PT, da forma como está sendo feita e com os instrumentos que estão sendo utilizados, não servirá à sua superação pela esquerda. Ao contrário, as conclusões que os trabalhadores tirarão serão nefastas para a verdadeira esquerda.

Assim, a posição de esquerda socialista deve ser o repúdio veemente à política e aos acordos implementados pelo PT ao longo de todos esses anos. O PT segue sendo inimigo da classe trabalhadora. A posição dos socialistas não pode ser outra que não a condenação inapelável dos governos petistas, suas alianças, suas medidas e seus mecanismos de governabilidade.

Mas os inimigos dos nossos inimigos não são nossos amigos. Por isso, o outro lado da posição socialista deve ser o rechaço total e absoluto à operação Lava Jato. E nesse sentido, o indiciamento e a possível prisão de Lula merecem o mais amplo repúdio.

Em essência, se trata de fugir do mesmo falso dilema colocado nos dias do impeachment: denunciar a farsa da Lava Jato sem prestar qualquer apoio político a Lula e ao PT. É hora de construir nas lutas uma alternativa ao PT. Este será o verdadeiro acerto de contas da classe trabalhadora com o lulismo.