Valério Arcary
“o argumento principal deste trabalho foi que o impasse de acumulação da atual fase B diferentemente da fase B do final do século XIX, não apresenta nenhuma solução capitalista óbvia. Certamente, a atual fase B se transformará, mais cedo ou mais tarde, em uma nova fase A (…) mas a acumulação capitalista pode estar se aproximando de seus limites históricos. O próximo Kondratiev bem poderia ser o último” [1]
A interpretação da época histórica contemporânea encontra-se dividida em dois grandes campos. Em um primeiro campo estão aqueles que consideram que a destruição econômica precipitada pela crise em 2008 é conjuntural. Ainda quando admitem que ela permanece longe de ter se esgotado, afirmam que será efêmera, transitória. Liberais ou keynesianos de vários matizes retiram a conclusão que o capitalismo conserva, neste início do século XXI, a capacidade de cumprir um papel progressivo, ou até dinâmico, na produção da riqueza social, pelo menos por uma etapa histórica indefinida.
A conseqüência desta análise tem sido a defesa de diferentes programas de incentivo e ou regulação para garantir a retomada do crescimento econômico, uns mais intervencionistas ou desenvolvimentistas (Dilma, Kirchner, Chávez, Moralez, Correa, na América do Sul), outros menos. Diferentes fórmulas para a distribuição de renda e atenuação das desigualdades nacionais têm sido sugeridas pelo FMI e pelo Banco Mundial.
Em um segundo campo, encontraremos aqueles que defendem que a crise do capitalismo demonstrou-se estrutural e, portanto, posicionam-se pela atualidade do socialismo. Os defensores da necessidade urgente de uma saída anticapitalista para a crise argumentam que os custos destrutivos gerados por uma regulação mercantil irracional ameaça a sobrevivência da civilização, pelo menos, tal como a conhecemos. Este texto se alinha neste segundo campo.
Existe, entretanto, outro debate que fraciona estes dois grandes campos, e nos remete à discussão da crise da hegemonia norte-americana, tanto na esfera do mercado mundial, quanto no plano político, como potência dominante. O debate do tema não é diletante. Aqueles que lutam pela revolução mundial devem dedicar muita atenção ao estudo dos seus inimigos. A liderança norte-americana à frente da defesa da ordem mundial foi uma das constantes mais estáveis desde o final da Segunda Guerra Mundial. Não há dúvida alguma que o desastre político dos oito anos da gestão Bush enfraqueceu a posição relativa de Washington. O argumento deste artigo, contudo, é que a hipótese da crise irreversível da supremacia norte-americana, apresentada de forma pioneira e apaixonada por André Gunder-Frank em seu livro Reorient, há quinze anos atrás, merece ser problematizada.[2]
A hipótese Gunder-Frank se apóia em premissas econômicas e demográficas que procuram sustentar a idéia de que existiriam ciclos realmente muito longos, na escala de dois séculos e meio, para cada fase A, de crescimento, e uma fase B simétrica de contração.[3] Defende que a liderança norte-americana será substituída, irremediavelmente, pela chinesa.
Algumas pesquisas históricas comparativas sugerem que a sociedade chinesa, pelo menos até o século XV, teria sido mais rica, mais instruída e até mais dinâmica que a Europa medieval. A fragmentação política em dezenas de Estados, entre outros fatores, favoreceu um processo de expansão das relações mercantis durante séculos e, finalmente, a partir do XVI a supremacia européia no mercado mundial em formação. Potenciada pela conquista das Américas, a escravidão africana e o acesso aos metais preciosos criaram-se condições que garantiram um papel pioneiro da Europa do noroeste na revolução industrial. Mas teria sido só depois da explosiva aceleração econômica gerada pela introdução das máquinas que a economia européia teria superado a chinesa. A liderança norte-americana no século XX teria substituído a inglesa ao final das duas guerras mundiais.
Em conseqüência deste processo, de acordo com Gunder-Frank, haveria no Ocidente um vício ideológico de análise histórica, o eurocentrismo, do qual o marxismo não estaria imune. Por isso, a resistência intelectual ao prognóstico de que as vantagens comparativas da Ásia estariam abrindo o caminho para uma nova configuração do mercado mundial e do sistema internacional de Estados que teria o seu centro na China.
Cinco grandes fatores que condicionaram, historicamente, a dominação imperialista
O lugar de cada imperialismo no Sistema Internacional de Estados dependeu, historicamente, de um conjunto de variáveis, que poderiam ser resumidos em cinco grandes questões: (a) as dimensões de suas economias, ou seja, os estoques de capital, os recursos naturais – como o território, as reservas de terras, os recursos minerais, a auto-suficiência energética etc… – e humanos – entre estes, o peso demográfico e o estágio cultural da nação – assim como a dinâmica, maior ou menor, de desenvolvimento da indústria; (b) a estabilidade política e social, maior ou menor, dentro de cada país, ou seja, a capacidade de cada burguesia imperialista para defender o seu regime político de dominação diante de seu proletariado, e das classes populares, ou seja, a coesão social interna e o grau de identificação nacionalista que ofereça sustentação às ambições imperialistas; (c) as dimensões e a capacidade de cada um destes impérios em manter o controle de suas colônias e áreas de influência, ou seja, o nível de sua superioridade econômica e influência cultural e ideológica; (d) a força militar de cada Estado, que dependia não só do domínio da técnica militar ou da qualidade das Forças Armadas, mas do, maior ou menor, grau de coesão social da sociedade, portanto, da capacidade do Estado de convencer a maioria do povo da necessidade da guerra; (e) as alianças de longa duração dos Estados imperialistas, uns com os outros, e o equilíbrio de forças que resultavam dos blocos formais e informais etc.
Se considerarmos estes cinco critérios, não parece provável que a liderança dos EUA venha ser desafiada, porque suas vantagens relativas são insuperáveis. Ela veio se exercendo no interior da Tríade (EUA, Europa Ocidental, Japão), ou seja, na colaboração de Washington com Londres, Paris, Berlim e Tóquio, há décadas, desde o final da Segunda Grande Guerra, em função das condições da coexistência pacífica com a ex-URSS. A eleição de Obama, depois de oito anos de unilateralismo de Bush, muda o tom das relações entre EUA e Europa, mas o tom não é a música.
As únicas alternativas que poderiam ser potencialmente consideradas à dominação norte-americana seriam a União Européia ou o Japão. O Japão aceitou resignado, após a tragédia da II Guerra Mundial, um papel complementar à economia dos EUA, sendo um dos financiadores da dívida pública dos EUA.
O Estado chinês, uma potência nuclear em uma das nações mais pobres do mundo – uma das últimas sociedades de maioria camponesa – conformou-se com um lugar complementar na relação com os EUA, porque aceita o papel econômico de semicolônia privilegiada, que na dimensão regional tem função de submetrópole. O regime ditatorial do Partido Comunista se manteve depois do massacre da Praça Tian An Men porque se apoiou, além do terror, no crescimento intenso de duas décadas, apesar da maior desigualdade social. Quando esse crescimento for bloqueado, ficará patente a baixa coesão social interna e o regime será desafiado pelo imponente novo proletariado, como aconteceu com as ditaduras sul-coreana e brasileira que fomentaram industrialização acelerada. Não é, portanto, sequer razoável imaginar que um processo dessa amplitude pudesse ser resolvido sem uma comoção que exigiria, possivelmente, uma guerra mundial, o que na atualidade não interessa a nenhum Estado.
A reunião de abril de 2009 do G-20[i][12] em Londres, anunciada como o embrião de um novo Bretton Woods, não produziu as novidades esperadas. A proposta de regulação dos paraísos fiscais ou de controle sobre os mercados de derivativos ficou suspensa no ar.[ii][13] Já, a decisão de elevar as participações dos Estados no Fundo Monetário Internacional (FMI), comprometendo os Estados periféricos, como o Brasil, na solidariedade com a defesa do sistema financeiro mundial, estruturado em torno do dólar como moeda de reserva mundial, não parece muito animadora.
A necessidade intransferível de uma coordenação internacional, algo que seria o mais próximo de um governo mundial, parece urgente. Mas, a montanha pariu um rato. A coordenação que foi ensaiada nas reuniões do G-20 desde 2008 se choca com as assimetrias que dividem o mundo em países centrais, rivais, e países periféricos.
A União Européia não é um Estado, ou sequer uma Federação de Estados. O governo da Alemanha não parece disposto a aceitar uma redução da taxa de juros do euro para patamares negativos, como os do dólar, e prefere conviver com um crescimento do desemprego na Europa a arriscar-se em operações de keynesianismo fiscal, que poderiam turbinar uma inflação descontrolada e uma insolvência generalizada das dívidas públicas, pelo contágio da ameaça terminal das moratórias, como o perigo da Grécia. O perigo “grego” seria a abertura de uma situação revolucionária na Europa, com governos caindo “em cascata”, algo que não se vê desde a derrota do Maio de 68 e da revolução portuguesa de 1974.
Mesmo um ajuste socialmente menos destrutivo exigiria uma latino-americanização da Europa. Especula-se sobre a possibilidade de uma saída mais ambiciosa, como seria um super plano Brady de resgate de Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda e até mesmo Itália. Ainda que possível, um plano deste alcance teria custos incalculáveis. O plano Brady foi a securitização das dívidas latino-americaas, realizada no início dos anos 90, quando os títulos da dívida foram renegociados com os credores privados, salvando os bancos norte americanos do perigo de moratórias devastadoras, através de um hedge que garantia a troca dos papéis podres por novos títulos de longo prazo garantidos pelos papéis do tesouro norte-americano.
O alongamento dos prazos das dívidas públicas dos países da periferia européia diminuíria o custo social regressivo das privatizações, das demissões em massa de funcionários públicos, do aumento dos impostos, da destruição dos direitos sociais e das políticas públicas de garantia de coesão social. Um plano Brady para a Europa do Mediterrâneo só seria possível com destruições apocalípticas de capital, com um engajamento do FMI, do Federal Reserve norte-americano, das reservas chinesas e asiáticas, e ainda assim seria difícil antecipar os seus resultados.
Está ameaçada a supremacia dos EUA no Sistema Internacional de Estados?
Não há dúvida que a indústria dos EUA diminuiu o seu peso, proporcionalmente, no mercado mundial em comparação ao período do pós-guerra. A evolução desfavorável desse indicador, entre outras variáveis, tem alimentado discussões sobre o seu declínio relativo, e a capacidade maior ou menor dos EUA manterem a posição de supremacia no sistema internacional de Estados. Wallerstein, Arrigui, e Gunder Franck, entre outros, defenderam que uma lenta decadência da hegemonia norte-americana teria se iniciado nos anos setenta.[4] No entanto, em comparação com a etapa política entre 1945-89, o papel dos EUA como defensor da ordem imperialista desde 1991, aumentou, como se verificou nas guerras dos Bálcãs, do Afeganistão e do Iraque.
A responsabilidade que cabe a Washington na coordenação internacional da resposta à crise, preservando o privilégio de ser o Estado que pode emitir a moeda de reserva mundial, será colocado à prova. As vantagens relativas dos EUA, a partir de 1945, explicam a sua superioridade no sistema de Estados e Obama não deixará de defendê-la, a qualquer custo. Em primeiro lugar, os EUA ainda são, comparativamente, a maior economia nacional. Sua produção industrial deixou de corresponder a metade da capacidade mundial instalada como em 1945, mas seu PIB de estimados US$14 trilhões em relação a um PIB mundial de aproximadamente US$55 trilhões corresponde a mais de um quarto da riqueza mundial.
Não obstante, esse recuo relativo foi compensado pela importância do seu capital financeiro. Ela é avassaladora: o capital financeiro dos EUA opera em escala mundial e seus fundos de investimentos controlam corporações em todos os continentes. Controlam parcelas gigantescas dos PIBs das maiores economias do mundo, em especial, na China. No entanto, a estabilidade do sistema de Estados que garante a segurança dos negócios é muito menor do que antes de 1991. A restauração capitalista na ex-URSS e na China foram derrotas do proletariado mundial – derrotas históricas, em especial, dos trabalhadores russos e chineses. Mas, paradoxalmente, o sistema de Estados era mais estável entre 1945 e 1989/91, porque os condicionamentos da coexistência pacífica induziam movimentos como a Organização pela Libertação da Palestina, a OLP, nos territórios ocupados por Israel, ou partidos leais a Moscou, como na França e na Itália, a cumprirem um papel de preservação da ordem política.
Não existem, contudo, possibilidades para uma renegociação do alcance de Bretton Woods, ou seja, a refundação de um novo sistema monetário internacional.[5] Não existem, porque não interessa a Washington, e sua liderança permanece intacta. Não haverá refundação do capitalismo. Não haverá New Deal nos EUA.[6] O plano de trilhões de Obama não é senão um Proer para salvar o capital financeiro de Wall Street.
Nunca houve substituição de potência dominante sem guerra
Nenhum Estado, na história do capitalismo, renunciou às vantagens de sua posição dominante no sistema mundial sem imensas resistências. O caminho do poder foi sempre a guerra. Sendo improvável, nos limites em que previsões são plausíveis, uma guerra em que pequimj desfiaria Washington, o tema da liderança chinesa é um fantasma ideológico. Quando um não quer, dois não brigam.
As lutas dentro do sistema europeu de Estados pela hegemonia levaram Amsterdã a entrar em guerra com Londres no século XVII, Londres com Paris no XVIII, Paris com Berlim no XIX, e Berlim com Londres no XX. As Províncias Unidas – hoje a Holanda – aceitaram um papel complementar com a Inglaterra, depois de perderem três guerras: selaram o acordo quando, depois da chamada revolução gloriosa, a última herdeira Stuart se casou com um príncipe holandês, que nem sequer sabia inglês.[7] Portugal aceitou um papel de submetrópole inglesa, desde o Tratado de Methuen, nos primeiros anos do século XVIII.[8] A orgulhosa Grã-Bretanha aceitou um papel associado aos EUA, depois das duas guerras mundiais do século XX.
Assim como a desigualdade entre as classes, em uma nação, explica a luta de classes, a disparidade entre os Estados explica uma inserção mais ou menos favorável no mercado mundial. Uma luta constante dos Estados, para preservar ou ganhar posições relativas, uns em relação aos outros, e das grandes corporações, umas contra as outras, foi o centro dos conflitos internacionais dos últimos dois séculos. Uma das obras do capitalismo foi a construção do mercado mundial, a partir do século XVI. Ao longo deste processo foi se estruturando um Sistema Internacional de Estados, a partir da organização pioneira de um sistema europeu de Estados. Depois, o sistema assumiu dimensões mundiais. Um sistema é um conjunto, em que o todo é maior que a soma das partes. A medida da saúde do sistema não é, no entanto, dada pela força do capitalismo nas suas fortalezas históricas, os EUA por exemplo. Nenhum sistema é mais forte do que seu elo mais fraco.
[1] . ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis, Vozes, 1998. p. 46-9
[2] GUNDER FRANK, Andre. ReORIENT, Global Economy in the Asian Age. San Francisco, UCPress, 1998
[3] GUNDER FRANK, Ibidem, p.260.
[4] O debate entre Arrigui e Gunder Frank pode ser encontrado em Reorientalism? The World According to Andre Gunder Frank in Review of the Fernand Braudel Center for the Study, 1999; 22 (3) que pode ser consultado in http://www.binghamton.edu/fbc O debate entre Arrighi e Robert Brenner pode ser consultado em Adam Smith em Pequim, São Paulo: Boitempo, 2008.
[5] Entre os dias 1 e 22 de Julho de 1944, no calor da Segunda Guerra Mundial, em Bretton Woods, New Hampshire, nos EUA, por iniciativa de Roosevelt, reuniram-se 44 países, entre eles o Brasil, mas sem representação da URSS, em uma Conferência, sob a liderança de Keynes, que discutiu o futuro da ordem econômica internacional, decidindo-se a formação do FMI (Fundo Monetário Internacional).
[6] O New Deal (em português, novo acordo), inspirado nas idéias keynesianas de regulação estatal do mercado, é o nome do programa do governo do Presidente Roosevelt com o objetivo de recuperar a economia norte-americana durante a depressão dos anos trinta. Entre 1933 e 1937 os investimentos do Estado agigantaram-se, provocando grandes déficits públicos, e a economia dos EUA voltou a crescer, mas a depressão só foi superada durante a II Guerra Mundial.
[7] William e Mary, o casal da revolução gloriosa de 1688 pertencem à dinastia Stuart, cujo último representante é a Rainha Ana, filha de James II, que lhes sucedeu. A ela segue-se George I, eleitor de Brunswick, coroado em 1714, e fundador da dinastia chamada “hanoveriana” que se mantém até hoje, mas mudou de nome. A dinastia chamada de Windsor começa com George V, coroado em 1910. A mudança de nome – que remete ao Castelo que é residência oficial – se deveu à inconveniência de a monarquia inglesa ser, durante a I Guerra Mundial, de origem germânica.
[8] O Tratado de Methuen de 1703 foi um acordo diplomático entre a Grã-Bretanha e Portugal. O nome do célebre acordo remete a John Methuen que representou os ingleses. Os portugueses se comprometeram a consumir os têxteis britânicos e, em contrapartida, os britânicos, os vinhos de Portugal. Desde o século XVIII, Lisboa aceitou as condições da aliança estratégica com Londres, que reduziram sua autonomia à condição de submetrópole para compensar as pressões de Madri. A ameaça espanhola permaneceu muito intensa, mesmo depois da restauração de 1640 que levou ao poder a dinastia de Bragança, quando se dissolveu a União Ibérica (1580/1640), período em que o Rei de Espanha assumiu a Coroa portuguesa.
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