Felipe Demier
“Havendo definido a natureza política do regime cardenista e a personalidade política de Lázaro Cárdenas, Trotsky manifestou que sentia também, como marxista e como revolucionário, um grande respeito pelo presidente e por seu governo: ‘Tem-se realmente a impressão de que o único governo valente e honesto desta época é o governo de Cárdenas […] que desenvolve, ainda que em pequena escala, uma política progressista’. Uma opinião que, contudo, não queria dizer de forma alguma, concluía Trotsky, que os revolucionários deveriam se identificar politicamente com esta corrente progressista: ‘O proletariado internacional não tem razão alguma para identificar seu programa com o programa do governo mexicano’”. (GALL, Olivia. Trotsky en México y La vida política en el período de Cárdenas (1937-1940). México (DF): Ediciones Era, 1991, p. 227. Tradução nossa).
O culto da esquerda a Chávez x uma análise marxista sobre seu governo
Nosso objetivo neste breve artigo é levar a cabo uma reflexão sobre o significado, do ponto-de-vista sócio-histórico, do governo de Hugo Chávez na Venezuela, apontando elementos de ordem teórica que contribuam para um debate acerca das possibilidades políticas dos trabalhadores venezuelanos diante da chamada “revolução bolivariana”.
Infelizmente, a maior parte da esquerda socialista latino-americana vem abdicando de analisar o governo Chávez à luz do marxismo e, desse modo, se furta abertamente de buscar compreendê-lo enquanto uma experiência historicamente delimitada pelas relações entre as classes sociais em luta no âmbito nacional e internacional. Particularmente, a maioria da esquerda brasileira, com o intuito de justificar seu apoio quase que incondicional a Chávez, realiza simples operações comparativas entre o governo deste e o de Lula (claramente mais à direita), tal como um torcedor analisa o elenco de seu clube a partir de uma comparação com o elenco do clube rival. Desse modo, abstêm-se de debater a natureza do regime político vigente na Venezuela assim como o caráter de classe do Estado daquele país. Deixando o marxismo na gaveta para outras ocasiões que lhes sejam mais interessantes, esses setores acabam por cair numa pura apologia das políticas provenientes do Palácio Miraflores. Trabalhando com uma lógica geopolítica (e não com uma perspectiva classista), apontam a Venezuela com um dos Estados nacionais que constituiriam um “bloco progressista” que, em função de uma “conjuntura desfavorável para os trabalhadores no mundo”, deveria ser apoiado de forma inconteste pela esquerda como parte de uma “luta por uma hegemonia anti-neoliberal” (que não deveria ser ainda “anti-capitalista”). Reeditando disfarçadamente o velho etapismo estalinista, alguns afirmam que a revolução socialista ainda não está colocada e que, portanto, deve-se apoiar o modelo “bolivariano” como uma etapa necessária para uma emancipação revolucionária futura, enquanto outros, reformistas assumidos, acreditam na construção de uma outra sociedade a partir de transformações engendradas pelas instituições do próprio Estado. Tanto uns como outros, ignorando às velhas tradições as quais se filiam, apontam o governo de Chávez como “uma grande novidade na história da América Latina”. Na contramão dessa perspectiva, buscaremos nas linhas a seguir demonstrar como o governo e o regime vigentes na Venezuela, ainda que encerrem novidades políticas no atual cenário da América Latina, podem ser compreendidos como uma manifestação tardia de uma velha forma de dominação capitalista em nosso continente, o nacionalismo-burguês de feição bonapartista.
Trotsky e os regimes “semibonapartistas democráticos” da América Latina.
Em contato com um país latino-americano em função de seu exílio no México, León Trotsky produziu vários textos a partir da síntese entre sua matriz teórica para interpretação do desenvolvimento das nações de capitalismo retardatário, a teoria do desenvolvimento desigual e combinado, e a observação direta, empírica, de uma realidade sócio-histórica passível de ser compreendida por essa perspectiva interpretativa. Ao pisar nas terras mexicanas em janeiro de 1937, Trotsky deparou-se com um país fortemente sacudido por lutas políticas e sociais. Pouco antes de sua chegada, o presidente Cárdenas (1934-1940) havia firmado um decreto que repartia alguns latifúndios entre camponeses pobres e estava em vias de nacionalizar companhias petrolíferas e ferroviárias americanas e britânicas. Baseando-se centralmente na situação mexicana, Trotsky se pôs a analisar a natureza dos regimes políticos pós-oligárquicos que proliferavam na América Latina a partir da crise de 1929. Em função de um desenvolvimento retardatário do capitalismo, os Estados latino-americanos, numa conjuntura de crise do sistema capitalista mundial que proporcionava uma maior autonomia às localidades subordinadas ao capital imperialista, tendiam a dar origem a regimes bonapartistas, dada a relação, própria aos países atrasados, entre capital estrangeiro, burguesia nacional e o proletariado:
“Nos países industrialmente atrasados o capital estrangeiro desempenha um papel decisivo. Daí a relativa debilidade da burguesia nacional em relação ao proletariado nacional. Isto cria condições especiais de poder estatal. O governo oscila entre o capital estrangeiro e o nacional, entre a relativamente débil burguesia nacional e o relativamente poderoso proletariado. Isto confere ao governo um caráter bonapartista sui generis, de índole particular. Este se eleva, por assim dizer, por cima das classes. Na realidade, pode governar ou bem se convertendo em instrumento do capital estrangeiro e submetendo o proletariado às amarras de uma ditadura policial, ou manobrando com o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concessões, ganhando deste modo a possibilidade de dispor de certa liberdade em relação aos capitalistas estrangeiros. A atual política [do governo mexicano] se liga à segunda alternativa; suas maiores conquistas são as expropriações das linhas férreas e das companhias petrolíferas.”[1]
Podemos notar que para Trotsky, portanto, existiram duas modalidades, duas variantes dentre os “bonapartismos sui generis” que se configuravam na América Latina. Esses regimes bonapartistas diferenciavam-se na medida em que alguns intentavam “orientar-se para a democracia, buscando apoio nos operários e camponeses, enquanto que outros implanta[vam] uma cerrada ditadura policial-militar.[2] A modalidade de regime “bonapartista sui generis” que mais nos interessa para a presente discussão é aquela na qual o governo, como forma de barganhar com o imperialismo, se apóia nas massas populares e por isso se vê obrigado a reconhecer uma série de direitos sociais a estas.
Segundo Trotsky, vivia-se nos anos 30 na América Latina um momento no qual a “ascendente burguesia nacional”[3] buscava “obter um pouco mais de independência frente aos imperialistas estrangeiros”,[4] isto é, almejava “uma maior participação no butim” e por isso se esforçava “para conquistar a posição dominante na exploração de seu próprio país”.[5] Em função disso, alguns governos da região optavam (e essa opção não era “livre”, e sim dependia de condições históricas específicas de cada localidade) por manobrar com a classe trabalhadora com o objetivo de gozar de uma base de massas que lhes permitissem não se submeter irrestritamente ao imperialismo. Os regimes que se encaixariam nessa variante de “esquerda” dos “bonapartismos sui generis” latino-americanos foram apresentados por Trotsky como possuidores de um caráter “semibonapartista democrático” (ou “semidemocrático”).[6] O governo que melhor expressaria essa modalidade de bonapartismo no continente, segundo Trotsky, seria o de Lázaro Cárdenas: “A burguesia nacional está obrigada a flertar com os operários, com os camponeses, e temos agora [no México] o homem forte do país orientado à esquerda”. [7]
Trotsky considerou que esses regimes “semibonapartistas democráticos”, assim como os partidos e movimentos nacionalista-burgueses que emergiam na América Latina, como uma manifestação do fenômeno frente-populista na região:
“O Koumitang na China,[8] o PRM [Partido da Revolução Mexicana] no México, o APRA [Aliança Popular Revolucionária Americana] no Peru são organizações totalmente análogas. É a Frente Popular sob a forma de partido. Apreciado corretamente, a Frente Popular não tem na América Latina um caráter tão reacionário como na França ou na Espanha. Tem duas facetas. Pode ter um conteúdo reacionário na medida em que está dirigida contra os operários, pode ter um caráter agressivo na medida em que está dirigida contra o imperialismo.” [9]
Entretanto, mesmo reconhecendo o caráter contraditório desses regimes, governos, partidos e movimentos, Trotsky afirmou peremptoriamente a impossibilidade de que qualquer um destes, em função da natureza burguesa que encerravam, pudesse levar até as últimas conseqüências a luta antiimperialista. Aplicando sua teoria da revolução permanente às terras latino-americanas, Trotsky expunha qual deveria ser a postura dos revolucionários no continente diante dos regimes “semibonapartistas democráticos” e as tarefas democráticas que prometiam realizar:
“Na medida em que as tarefas são democráticas em um amplo sentido histórico, são tarefas democrático-burguesas, mas aqui [na América Latina] a burguesia é incapaz de resolvê-las, como o foi na Rússia e na China. Neste sentido, durante o curso da luta de classes pelas tarefas democráticas, opomos o proletariado à burguesia. A independência do proletariado, inclusive no começo desse movimento, é absolutamente necessária, e opomos particularmente o proletariado à burguesia na questão agrária, porque a classe que governará, no México como em todos os demais países latino-americanos, será a que atrair para ela os camponeses.”[10]
Assim, mesmo quando os governos nacionalista-burgueses sofressem ataques dos setores mais reacionários das burguesias locais (vinculados mais diretamente ao imperialismo), os revolucionários deveriam prezar pela independência de classe dos trabalhadores:
“Em todos os casos em que ela [a burguesia nacional] enfrenta diretamente os imperialistas estrangeiros ou os seus agentes reacionários fascistas, nós [a IV Internacional] damos a ela nosso pleno apoio revolucionário, conservando a independência integral de nossa organização, de nosso programa, de nosso partido, e nossa plena liberdade de crítica”.[11]
Essas elaborações de Trotsky produzidas ao final dos anos 30 referentes às estruturas políticas da América Latina nos são de grande valia para compreendermos a natureza social do nacionalismo-burguês que teve seu auge no continente nas décadas de 1950 e 1960, e que encontrou expressão em governos como os de Juan Domingo Perón na Argentina (1946-1955), Velasco Ibarra no Equador (1934-1935, 1944-1947, 1952-1956, 1961 e 1968-1972), Paz Estensoro na Bolívia (1952-1956 e 1960-1964) e os de Getúlio Vargas (1951-1954) e João Goulart (1961-1964) no Brasil.
Uma outra etapa histórica e o regime político chavista
Não é muito difícil notarmos como o regime político venezuelano atual possui muitas semelhanças com os regimes “semibonapartistas democráticos” latino-americanos analisados por Trotsky, isto é, com o fenômeno do nacionalismo-burguês que marcou parte significativa da história de nosso continente. Entretanto, o regime/governo de Hugo Chávez tem lugar em uma outra etapa histórica da relação entre o imperialismo e as regiões submetidas a este. Se os regimes/governos nacionalista-burgueses mencionados no parágrafo anterior, em função de terem surgido num momento que possibilitava uma margem de manobra relativa para economias periféricas, tiveram a possibilidade de atender, ainda que insatisfatoriamente, a certas demandas de setores da classe trabalhadora no que diz respeito a emprego e consumo, o governo de Chávez, por sua vez, é por demais impotente no que concerne ao suprimento das necessidades populares. Nascido numa etapa na qual o imperialismo realiza uma ofensiva brutal sobre as economias semicoloniais, o regime “semibonapartista democrático” venezuelano não dispõe de condições suficientes que lhes permita ir além de políticas sociais focalizadas. É por isso que, por exemplo, o pagamento da dívida externa é feito religiosamente pelo governo de Caracas, do mesmo modo que as nacionalizações realizadas (todas com indenização) não são suficientes para atribuir à economia nacional um caráter planejado. Não obstante os lucros obtidos com o comércio petrolífero, não há dados que indiquem que se caminha, de fato, para a eliminação da brutal desigualdade social no país. Nesse sentido, podemos dizer que o nacionalismo-burguês chavista, emerso da radicalização da luta de classes no país e em um contexto que reduz praticamente a zero a autonomia econômica dos países da América Latina, paga o preço de ser um nacionalismo-burguês tardio.
É fundamental lembrarmos que nenhum dos governos nacionalista-burgueses do período anterior foi capaz de realizar qualquer revolução “democrática” e “antiimperialista”, e muito menos de proporcionar, a partir de reformas institucionais, uma metamorfose do Estado burguês em Estado socialista. Quando as burguesias locais assustaram-se com o patamar a que chegara a luta de classes sob os regimes “semibonapartistas democráticos”, elas tranquilamente optaram por restabelecer seus vínculos incondicionais com o capital estrangeiro e adotar outra forma de dominação política: ditatorial, “semi-fascista” e claramente pró-imperialista. Este foi o sentido dos golpes militares que nos anos 60 e 70 que condenaram o nacionalismo-burguês da América Latina a um longo exílio. Contudo, acreditamos não ser objeto de polêmica com os setores da esquerda socialista latino-americana que apoiam Chávez a afirmação de que o Estado brasileiro à época de Vargas assim como o Estado argentino à época de Perón nunca deixaram de estar assentados sobre relações sociais capitalistas, do mesmo modo que achamos ser ponto pacífico a conclusão de que tanto Vargas quanto Perón estiveram, em última análise, a serviço de suas burguesias, e não da classe trabalhadora. Nunca houve nenhum substitucionismo social que obtivesse êxito no que concerne à satisfação das necessidades históricas da classe trabalhadora. Nenhum setor da burguesia, da oficialidade militar, da burocracia estatal ou da pequena-burguesia foi capaz de abrir o caminho do socialismo para o proletariado. Seriam então meros sectários aqueles que não acreditam que o governo Chávez, uma versão esquálida do velho nacionalismo-burguês latino-americano, conduzirá a Venezuela ao socialismo? Seriam dogmáticos aqueles que defendem que a classe trabalhadora deve tomar ela própria o poder para que seus objetivos sejam alcançados? Pensamos que não. Diante da incontrolável apologia da maior parte da esquerda ao “socialismo do século XXI” (“cristão e com propriedade privada”, segundo o próprio Chávez), apenas continuamos adeptos da ideia de Marx de que “o socialismo será obra dos próprios trabalhadores, ou não será!”.
* texto originalmente publicado em 2007
[1] TROTSKY, L. “La industria nacionalizada y la administración obrera” in ____ Escritos latinoamericanos, 2ª edição. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky (CEIP León Trotsky), 2000, p.164. Tradução nossa. Grifos do autor.
[2] TROTSKY, León. “Los sindicatos en la era de la decadencia imperialista” in ____ Escritos latinoamericanos. Op. cit., p.174.
[3] TROTSKY, L. “La politica de Roosevelt en America Latina” in ____ Escritos latinoamericanos. Op, cit., p. 93. Tradução nossa.
[4] TROTSKY, L. “Discusion sobre America Latina” in ____ Escritos latinoamericanos. Op. cit., p. 124.
[5] TROTSKY, L. “La politica de Roosevelt en America Latina”. Op, cit., p. 93. Tradução nossa. Grifo do autor.
[6] TROTSKY, L. “Discusion sobre America Latina”. Op. cit., p. 124.
[7] Idem.
[8] Partido nacionalista-burguês, liderado por Chang-Kai-Shek, que massacrou a classe trabalhadora chinesa quando da revolução de 1925-1927 naquele país.
[9] TROTSKY. León. “Discusion sobre America Latina”. Op.cit., p. 124-125.
[10] Idem, p. 123-124.
[11] Idem, p. 124-125.
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