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Prefácio de Valério Arcary para “O Longo Bonapartismo Brasileiro”, de Felipe Demier

O livro “O longo Bonapartismo Brasileiro (1930-1964): uma ensaio de interpretação histórica”, de Felipe Demier, será lançado em breve pela editora Mauad X.

Prefácio

Valério Arcary

Este livro de Felipe Demier é um trabalho que revela um jovem historiador com uma surpreendente maturidade teórica. Uma ideia central atravessa o livro. O autor argumenta que o significado histórico dos governos de Getúlio foi que ele garantiu, em mais de uma circunstância, e contra a vontade de frações chaves da própria burguesia, a dominação burguesa no Brasil. Essa história merece uma explicação, e é preciso dizer que o autor apresenta uma hipótese consistente.

Este livro apresenta uma explicação fecunda e poderosa, porém sóbria, de um dos temas mais difíceis da história contemporânea do Brasil. Todos sabem que Getúlio Vargas dominou a política brasileira durante o período que se estendeu de 1930 a 1964. Sua influência não diminuiu depois do suicídio em 1954. Na verdade, seu peso aumentou, e em tal proporção, que seu prestígio foi um dos fatores que inibiu e, talvez, até retardou, por dez anos, a quartelada que abriu o caminho para vinte anos de ditadura militar.

O livro de Felipe Demier não é, todavia, uma história política da vida de Getúlio. O que o livro se propõe é algo mais original e mais difícil. Vargas liderou a construção de um regime político que assumiu diferentes formas, mas manteve uma continuidade histórica. O livro nos diz que o nome desse regime é bonapartismo. Foi a construção desse regime que preservou a relativa estabilidade da dominação burguesa na transição histórica do Brasil agrário para o Brasil urbano. Quando, como e por que o longo bonapartismo foi a forma que assumiu no Brasil o processo de industrialização e urbanização é o que Felipe Demier se propõe explicar.

O livro contextualiza o bonapartismo varguista no quadro de uma sociedade retardatária, com uma crise de dominação de longa duração, que só poderia ser compreendida por uma correlação de forças políticas, na dimensão nacional e internacional, muito complicada. Um emaranhado de conflitos econômicos, uma sucessão intrincada de lutas sociais que precisam ser desvendados. Marchando contra a corrente, portanto, este livro desenvolve seus argumentos com argúcia.

A hipótese de interpretação que este livro oferece para o período de passagem do Brasil agrário para o Brasil urbano entre 1930/1964 merece ser considerada, com todas as letras, como uma síntese histórica. Sínteses históricas são processos de elaboração complexos, portanto raros, porque exigem rigor teórico e força analítica.

Não importa se os leitores têm maior ou menor simpatia pela figura histórica de Getúlio Vargas. Tantos aqueles que o admiram, quanto aqueles que o repudiam poderão, concordando ou não com a interpretação de Felipe Demier, beneficiar-se de uma leitura que será inspiradora. Porque este é um livro de história escrito com o distanciamento metodológico que distingue a luta teórica da luta política.

Os leitores encontrarão nas próximas páginas um texto denso e intenso. Sua leitura é fascinante. O livro pede do leitor somente concentração e curiosidade. Aqueles que vierem a lê-lo aprenderão muito e se sentirão recompensados. Seus argumentos são incisivos, suas análises contundentes, seus juízos severos, e suas conclusões são claras. Este livro não faz, portanto, concessões. O autor não se esconde. Desde a introdução, ele se apresenta por inteiro. É um livro escrito para a luta de ideias, e a mão que escreve não dissimula seus compromissos. É um livro que tem no marxismo sua referência, e essa não é sua fraqueza, mas sua potência. Porque a coerência é uma qualidade indispensável quando se escreve a história.

A maioria dos livros de história que estão no mostruário das livrarias se rende, nos dias de hoje, à narrativa do bizarro ou do divertido, do curioso ou do alegórico, do folclórico ou do estranho; curvando-se às pressões mercadológicas, esses livros buscam, sobretudo, o sucesso de vendas. Em poucas palavras, não explicam muito sobre o passado que estão descrevendo. Quando muito, se intelectualmente honestos, contam histórias, sem a intenção de explicar por que as sociedades evoluíram em tal ou qual direção. São um subgênero literário de entretenimento.

O livro de Felipe Demier vai na contracorrente desta tendência de infantilização da literatura histórica. Os leitores que já sabem que, quando a história é reduzida a um jogo intelectual de exibição de erudição inútil, ela se diminui, e deixa de ser uma ciência, ficarão satisfeitos em descobrir um livro adulto que dialoga com a historiografia disponível com inteligência.

A palavra-chave do livro é a ideia de bonapartismo. Deriva de Bonaparte, o nome afrancesado de Napoleone Buonaparte, nascido na Córsega, e o principal general que  surgiu da guerra revolucionária de defesa da República Francesa erguida pela revolução de 1789. Bonapartista foi o regime que o próprio Napoleão ergueu nos anos noventa do século XVIII, quando chegou ao poder.

Mas, na sequência da história europeia do século XIX, tantos outros governos tiveram formas parecidas, que o bonapartismo entrou para a teoria política como um conceito abstrato que qualifica um tipo especial de regime. Ou seja, uma das formas institucionais de como se exerce o poder nas sociedades contemporâneas.

Como todo regime de dominação, o bonapartismo precisou, também, de um discurso, de uma ideologia. Apresentado-se como a representação da nação em uma hora de emergência, o regime bonapartista repousa na força do apelo à união de todas as classes, de todas as posições políticas em torno de um objetivo comum. O seu rosto foi, invariavelmente, o de um bonaparte, ou seja, de um homem que está acima das divisões políticas, e foi predestinado para salvar a pátria.

O bonapartismo surge como fenômeno histórico contemporâneo sempre que se abre uma crise de dominação em que existe, em algum grau, na classe dominante, um desencontro entre os interesses de classe e a consciência desses interesses e em que, portanto, falta uma vontade política à altura da crise. Essa disparidade não foi uma exceção. Interferem nesse processo inúmeras mediações. Não encontraremos uma correspondência direta entre os interesses mais gerais e a ação das classes. Frequentemente, sobretudo quando de desafios históricos grandiosos, uma classe dominante pode, irremediavelmente, se dividir, e as frações em luta agem umas contra as outras, incapazes de manter a ordem. Quando o perigo da revolução social ameaça a manutenção da ordem, o bonapartismo é um regime de emergência para salvar a classe dominante de si mesma. A emergência está definida pelo perigo da revolução social anticapitalista, mas condicionada, também, pela preservação do lugar que a classe dominante de um país, com maior razão se for a burguesia de um país periférico, mantém no mercado mundial.

O que existe de específico no bonapartismo é uma autonomia relativa do Estado em relação aos humores que prevalecem, conjunturalmente, dentro da classe cujos interesses o Estado defende de conjunto. O bonapartismo sempre foi, por suposto, um regime a serviço da defesa do Estado capitalista. Mas pode contrariar, frequentemente, aquilo que a burguesia quer.

Esse conflito do regime bonapartista com a classe que ambiciona defender pode parecer um paradoxo, ou até um enigma. Mas não há mistério algum. Em situações de intensa luta política, em especial nos países periféricos, entre a crise de 1929 e o final da guerra fria, a melhor defesa da ordem burguesa foi feita por líderes que contrariavam o imediatismo da classe que representavam. Essa desconexão entre direção e classe não foi incomum. Foi, na verdade, mais do que uma exceção histórica, uma constante, se considerarmos em sua verdadeira dimensão a epopeia que foi, no século XX, a transição do Brasil agrário dos anos 1930 para o Brasil urbano dos anos 1960.

O problema se apresenta ainda mais complexo, se considerarmos a ação dos sujeitos políticos coletivos que devem ser a expressão organizada das vontades em conflito. O clássico “em última análise”, quando marxistas remetem ao tema dos interesses de classe, exige que se valorizem todas as mediações.

O bonapartismo foi muito diferente dos regimes democrático-eleitorais ou das ditaduras fascistas. Porque pode aceitar a permanência de calendários eleitorais regulares, mas não é um regime eleitoral. Porque pode usar e abusar de medidas de exceção autoritárias, mas não é o mesmo que uma ditadura fascista. O bonapartismo não pode aceitar a luta aberta de partidos que caracteriza a solução dos conflitos políticos entre as frações de classe burguesas em uma democracia. O bonapartismo não pode mobilizar a pequena burguesia desesperada.

A formação de uma classe dominante de natureza nacional, em especial em um país continental como o Brasil, marcado por séculos de uma história lenta e regional, foi um processo complexo. Exigiu décadas de maturação, e só pode ser compreendido como o desenlace de lutas entre diferentes frações que, nos curtos prazos, não veem senão seus interesses mais mesquinhos. E a luta política se decide sempre no calor dos prazos curtos. Mais importante: essas lutas intestinas, dentro de uma burguesia nacional em formação, se deram no marco das pressões exercidas pelos países centrais e nas condições que tentavam impor. Esse processo agravou-se sob o impacto da crise de 1929 e de uma presença cada vez maior de um proletariado concentrado, precocemente, em grandes cidades, com grande energia social e tendência à rápida radicalização, como ficou claro com a velocidade do crescimento do Partido comunista, entre 1945 e 1948.

Mas, como a história contemporânea não pode deixar de ser uma intensa luta de ideias, onde a pressão dos interesses do presente dificulta o entendimento do passado recente, ainda há muito por descobrir e explicar sobre o que foi o período 1930/1964. Acontece que, tanto os que se posicionam contra a herança do varguismo, quanto aqueles que a defendem têm muito a perder com uma investigação histórica serena e, ao mesmo tempo, intransigente. Este livro encara o desafio, com coragem política e lucidez teórica. Não é nem ríspido nem indulgente com o varguismo. Mais importante, tem uma originalidade que nos brinda com o frescor das novas hipóteses.

Felipe Demier contraria as visões liberais-conservadoras que denunciaram o varguismo, sobretudo o varguismo dos anos do mandato conquistado nas urnas em 1950, como uma expressão brasileira do “autoritarismo” latino-americano, para muitos um simples sinônimo de populismo. Aqueles atentos tanto aos debates acadêmicos quanto aos editoriais jornalísticos das últimas décadas já puderam notar que populismo é um conceito muito ambivalente, portanto uma ideia inconclusiva. Muitas posições contraditórias e até incompatíveis se apropriaram da caracterização de populismo para defender conclusões opostas. Para alguns autores, o populismo de Getúlio teria sido um autoritarismo disfarçado de demagogia; e, em consequência, satanizando as concessões de Getúlio às reivindicações proletárias, Vargas teria sido somente um caudilho gaúcho. Ao sabor da sociologia marxista uspiana dos anos 60 e 70, o conceito, ainda que manuseado de forma dialética e referendado nas concretas situações de classe da América Latina, também apresentou significativas limitações, sobretudo em função de sua imprecisão ao discutir (e diferenciar) Estados, regimes e governos, e dos não poucos laivos weberianos de seus autores (visíveis em noções como a “legitimidade” de certas formas de Estado, os “padrões de comportamento” de determinados grupos sociais etc.). A categoria marxista de bonapartismo é, sem dúvida, mais adequada para dar conta historicamente do fenômeno varguista. É fazendo uso dela que Felipe Demier argumenta que, durante esse longo período histórico, a grandeza política da figura histórica de Vargas foi, paradoxalmente, ter preservado os interesses da burguesia, quando a maioria dos capitalistas brasileiros eram demasiado obtusos para compreender o que estava em jogo.

Getúlio aproveitou as oportunidades que a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial abriram, e reposicionou o Brasil no mercado mundial, ao mesmo tempo em que garantia que a dominação burguesa fosse mantida incólume. Enfrentou o controle quase exclusivo que a fração paulista da burguesia mantinha sobre o Estado nacional, liderando a insurreição militar de 1930. Vargas reprimiu, ferozmente, a possibilidade de uma organização independente do proletariado, e instituiu um regime semifascista durante quase uma década.

Felipe Demier contraria, também, a visão daqueles que descobriram em Vargas um grande estadista do desenvolvimento do Brasil no século XX. E apropriam-se da consideração e do respeito que a personalidade de Getúlio ainda pode inspirar, sobretudo nas classes médias, para legitimar o mito nacionalista de um projeto progressista policlassista de união nacional e pacto social.

Não fossem os seus outros méritos o bastante – uma apresentação clara do tema, e a vibrante articulação da interpretação histórica com a análise política –, este livro recupera do esquecimento a elaboração teórica do marxismo revolucionário sobre o tema do bonapartismo como regime político, revisitando Marx, Lênin, Gramsci, entre outros. E oferece um merecido reconhecimento da obra de Trotsky.

Marx analisou o bonapartismo de Napoleão III na França depois da derrota da onda revolucionária de 1848. Lênin usou o conceito de via prussiana para pensar a passagem pelo alto realizada pelo bonapartismo de Bismarck no processo de unificação da Alemanha, depois da derrota da França na guerra franco-prussiana. Gramsci usou o conceito de cesarismo para pensar a forma dos regimes em que a burguesia precisava, excepcionalmente, dispensar a forma partido, como sujeito político coletivo, para exercer, diretamente, sua gestão do Estado.

Mas foi Trotsky que fez a previsão, no final dos anos trinta do século XX, de que o regime de democracia liberal seria improvável, senão excepcional, em países periféricos. Sua explicação histórica repousava na apreciação de que a democracia eleitoral era um regime típico dos Estados centrais. Somente aqueles Estados que se beneficiavam da apropriação de uma parcela da mais-valia dos países periféricos é que podiam se permitir uma redistribuição para as novas classes médias urbanas, e até parcelas privilegiadas dos trabalhadores, a aristocracia operária. Esse prognóstico confirmou-se ou não? Pelo menos até meados dos anos oitenta, ele foi plenamente confirmado. O bonapartismo foi a forma do varguismo no Brasil, do peronismo na Argentina, do aprismo no Peru, e do regime do PRI, o Partido Revolucionário Institucional, do México, entre outros.

Desde então, sobretudo depois da restauração capitalista na ex-União Soviética, uma nova etapa político-histórica se abriu à escala internacional na configuração do mercado como sistema internacional de Estados. Regimes democráticos foram erguidos pelas classes dominantes na maior parte da América Latina. O que mudou depois dos anos oitenta na América Latina? Um meio século depois da crise de 1929, a urbanização estava realizada, a classe dominante era mais homogênea, as classes médias mais acomodadas e com maior peso social, as burocracias sindicais mais integradas, a última fase da guerra fria aproximava-se do fim. Ainda assim, mesmo a Venezuela, que pode auferir a vantagem extraordinária de uma renda petroleira durante décadas, acabou por viver uma experiência bonapartista com o chavismo.

Os que lerem este livro poderão, com certeza, estar ou não de acordo com Felipe Demier. Mas não deverão ignorar o que ele propõe. Porque este livro veio para conquistar seu lugar na historiografia do varguismo.

Sumário

 

 

Apresentação

Prefácio | Valério Arcary

Uma breve introdução

Capítulo I | Algumas considerações teóricas sobre o bonapartismo

Capítulo II | Domínio cafeeiro e “crise de hegemonia”: as raízes históricas do bonapartismo

Capítulo III | A “Revolução” de 1930 e a emergência do bonapartismo

Capítulo IV | O bonapartismo em construção: o Governo Provisório (1930-1934)

Capítulo V | A Constituição de 1934 e a formação de um bonapartismo semiparlamentar

Capítulo VI | A escalada bonapartista (1934-1937)

Capítulo VII | O “18 brumário” de Getúlio Vargas e o fastígio bonapartista (1937-1945)

Capítulo VIII | A ditadura em crise e a Guerra: o início da transmutação bonapartista (1942-1945)

Capítulo IX | O cesarismo sem César: luta de classes sob o semibonapartismo democrático (1946-1964)

Algumas poucas palavras à guisa de conclusão

Bibliografia