Aldo Cordeiro Sauda e Marcia Camargos
Há dois anos, eles eram os heróis. Cheios de vigor, ocupavam os espaços da mídia, eram reverenciados pela intelectualidade mundial e inspiravam o planeta inteiro a repensar o modo de fazer política. Hoje, a juventude radicalizada da Praça Tahrir está num impasse. Excluída do centro das decisões nacionais, desconfia que sua revolução, bem como sua praça, foram sequestradas pelos reacionários.
Não que os jovens da revolução tenham se oposto à queda de Mohamed Morsi. Integraram, embora com pouco entusiasmo, o “30 de junho” que derrubou o ex-presidente islamista. Contudo, insistem que o movimento está longe de constituir um segundo 25 de Janeiro – data que, ao marcar o início das mobilizações que derrubaram Mubarak, batizou a revolução egípcia. Essa é a opinião de Saleh Ferki e Ahmad Aggour.
Presenças assíduas nas passeatas, os dois militantes tornaram-se amigos ao encontrarem-se repetidamente nas linhas de frente no pós-“25”. Em novembro de 2011, em meio às violentas batalhas no entorno da Tahrir, chegaram a participar de uma sessão de fotos conjunta para a edição do Homem do Ano da revista Time. Na época, a imprensa só falava dos jovens da praça.
Hoje, o Cairo não é o mesmo. Os rebeldes que se organizavam pelo twitter em nome de “pão, liberdade e justiça social” foram substituídos por uma nova polarização entre os simpatizantes da Irmandade Muçulmana e os apoiadores do Exército. Agora com um verniz civil, os militares e seus aliados liberais estão reerguendo boa parte das instituições demolidas ao longo da revolução. Só essa semana, o governo, na prática dirigido pelo ministro da Defesa, Mohamad al-Sisi, anunciou o retorno – se é que de fato algum dia foi embora – do Departamento de Combate à Subversão. De quebra, também concedeu ao Exército o direito de prender civis.
A própria Tahrir, símbolo máximo revolucionário, perdeu o brilho, transformando-se em emblema governista. Desapareceu até o vibrante comércio de bandeirinhas da revolução síria, até então prima dileta do levante egípcio. Ali, o que domina o mercado são pôsteres com imagens do general Sisi. “Aquilo virou o centro de um nacionalismo fascista”, afirmam os ativistas.
Os mesmos militares, supostos líderes inquestionáveis da “revolução do 30 de junho”, foram os que prenderam e torturaram Saleh em 2011, após a célebre batalha da Rua Mohammed Mahmoud. Assim como ele, Aggour frequentou a cadeia por sua oposição ao regime. Por isso exibe com orgulho as marcas espalhadas pelo corpo dos tiros resultantes dos confrontos: “Elas são meus troféus”, diz, com um largo sorriso no rosto.
Para ambos, o limite do bom senso foi tristemente ultrapassado quando a massa, no 30 de junho, carregou policiais fardados nos ombros, pela primeira vez na história da praça. “Posso entender a simpatia do povo pelo Exército, pois os egípcios são nacionalistas” refletia Saleh. “Mas confraternizar com a polícia, que sempre nos reprimiu no dia a dia, é incompreensível.”
A recente onda de xenofobia que assola o país também causa preocupação. Desde a queda de Morsi circulam boatos de que a Irmandade seria, na verdade, a fachada de um complô internacional dirigido por extremistas sírios e palestinos dispostos a destruir o Egito. Essa semana os iemenitas foram adicionados ao rol de personae non gratae. Em tal contexto de caça às bruxas, sob a alegação de “combate ao terrorismo”, eles oficialmente não são mais bem-vindos a solo pátrio. O espírito inquisidor inclui, entre seus principais arautos, o próprio promotor de Justiça, Hassan Samir, que acusa o presidente deposto de ser espião do palestino Hamas.
Nesse cenário de polarização, até o mês passado a vanguarda da Tahrir combatia os islamistas corpo a corpo. Porém, após a queda de Morsi e diante das crescentes ameaças do Exército de esmagar o grupo e seus integrantes, ela mudou de atitude. Assim, quando cerca de cem pessoas foram metralhadas por policiais durante um protesto pela volta do presidente islamista, na madrugada do último dia 27, Aggour participou do ato convocado em seguida pelos partidários do presidente deposto. “Eles querem nos passar a ideia que contra Morsi vale tudo, de alianças com os apoiadores do velho Mubarak aos massacres a sangue-frio”, cogita.
Mais tímido que o falante Aggour, Saleh incorpora um internacionalismo que impressiona. Ao longo do último ano, o ativista acumulou uma pequena fortuna em dívida nos cartões de crédito, além de ter mobilizado as finanças de amigos e familiares para ajudar as zonas livres da Síria em guerra civil. Sua motivação é simples: “Eles precisam mais que nós”.
Em meio ao derramamento de sangue das últimas semanas, e desiludidos com o desenrolar dos acontecimentos, os jovens olham para o exterior em busca de perspectivas. “Não que a situação na Síria esteja muito animadora” afirma Aggour. “Mas pelo menos lá temos um lado claro a apoiar”, conclui.
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