Hossam El-Hamalawy
apresentação e tradução Aldo Cordeiro Sauda
O texto abaixo, redigido por Hossam El-Hamalawy, principal figura pública do trotskismo no mundo árabe, é um importante documento acerca do marxismo revolucionário no Egito. Redigido em meados de 2007, o texto narra de forma precisa a construção do movimento que três anos e meio depois, em janeiro de 2011, derrubaria o ditador egípcio Hosni Mubarak.
Um ano após a redação deste artigo, boa parte dos atores aqui descritos, em especifico o Centro Jurídico Hisham Mubarak e o grupo Socialistas Revolucionários, teriam um papel central na construção de solidariedade junto a principal mobilização operária da era pré-revolucionária, a greve tecelã de Mahallah. A partir deste movimento surgiu o grupo 6 de Abril, que se sediava no próprio no Centro Hisham Mubarak. O 6 de Abril (inclusive, de forma exagerada) foi tido pela imprensa mundial como principal movimento responsável pela derrubada do governo Mubarak.
Dentro deste contexto de mobilizações, a nova relação construída entre os islamistas e a esquerda foi central para a derrubada do governo. Vale lembrar que o PC Egipcio e o partido Tagammu (uma espécie de MDB egípcio), logo após a ocupação da praça Tahrir, mobilizou seus quadros para tentar convencer as massas a abandonar a luta contra a ditadura, pois, segundo eles, os islamistas seriam os grandes vitoriosos caso Mubarak caísse. A coordenação entre os stalinistas e o ditador Hosni Mubarak, inclusive, chegou ao ponto de Mubarak conceder ao Tagammu (espaço aonde o PC se organizava) cadeiras no parlamento Egípcio, tudo sob o argumento de combate aos islamo-facistas da irmandade Muçulmana.
Durante todo período posterior a queda de Mubarak, a Irmandade, de diferentes formas, buscou se conciliar com o regime militar, gerando diversas crises e rachas na organização, principalmente sua juventude. Ao chegar ao governo, a organização manteve todas as políticas anteriores de repressão ao movimento.
Também vale lembrar que os Socialistas Revolucionários, ao lado dos quadros formados no movimento Kifaya e as organizações que dele surgiram, foram responsáveis pelas principais mobilizações anti-irmandade que abriram o caminho para a derrubada de Muhamad Mursi.
Abaixo, o texto de 2007.
Emad Mubarak é um homem ocupado. Diretor da Associação por Liberdade de Expressão e Pensamento, e advogado do Centro Jurídico Hisham Mubarak, este Mubarak de Esquerda [um sobrenome comum no Egito] dificilmente pode se reunir com alguém sem ser interrompido por seu celular. A ligação dos últimos dias vem de estudantes da Irmandade Muçulmana, uma organização islamista oficialmente banida pelo governo e que ocupa o espaço de principal partido político do país. Os estudantes ligam para denunciar abusos do serviço de segurança contra eles nos campus, ou pedir conselho jurídico quando são colocados sob interrogação pela reitoria da universidade.
“Sempre que recebo uma ligação, não posso deixar de me lembrar dos velhos dias, e o que significava estar na universidade com os Irmãos”, gargalha Mubarak. Em 1999, ele passou 22 dias na prisão de Tura, no sul do Cairo, após estudantes da Irmandade Muçulmana terem atacado a ele e outros oito de seus colegas socialistas na universidade e depois os entregue a polícia. “Hoje as coisas são diferentes. A esquerda e os islamistas sentam para dialogar. A maioria dos meus clientes são da Irmandade Muçulmana,” diz Mubarak. “Eu os digo, “sou comunista”, e eles pouco se incomodam com isto.”
Das trocas de socos nas universidades durante os anos 90 a manifestações conjuntas em 2005-2006, a relação entre a Irmandade Muçulmana e a esquerda radical egípcia possui uma longa história. Em locais em que as duas correntes atuam lado a lado, como em centros acadêmicos ou sindicatos de profissionais liberais, a hostilidade publica sumiu, e há até certo grau de coordenação em algumas questões táticas. Ainda assim, a cooperação continua simbólica, e a esquerda e os islamistas estão longe de unirem suas forças para orquestrarem ações de massa conjuntas contra seu inimigo comum, o regime do presidente Hosni Mubarak.
Um novo tipo de esquerda
A melhoria na relação entre os islamistas e a esquerda pode ser explicada por dois fatores gerais. A primeira foi o surgimento de uma nova esquerda Egípcia, cujos dois principais pilares são a Organização Socialistas Revolucionários e a crescente comunidade de ativistas progressistas de direitos humanos. Esta nova esquerda tem uma posição em relação aos islamistas diferente que aquelas das “ondas comunistas” anteriores. [1] O segundo fato foi a transformação geracional entre os quadros da esquerda e os da Irmandade Muçulmana, produto do retorno das massas as ruas egípcias graças a segunda intifada palestina.
Os confrontos entre a esquerda egípcia e os Irmãos tem uma longa história, da coordenação entre os Islamistas e o Rei Farouq nos ataques ao movimento grevista dos anos 40 ao incentivo do governo Saddat a ataques violentos da irmandade a estudantes de esquerda nas universidades durante os anos 70. A maioria das organizações da esquerda independente dos anos 80 e 90 adotou uma linha política para os islamistas similar a aquela defendida pelo Partido Comunista Egípcio. O PC, que se organizava então enquanto principal corrente dentro do Partido Tagammu, o “partido legal da esquerda”, equacionava organizações islâmicas, fossem elas reformistas ou radicais, com o fascismo. A uma breve exceção foi a organização de Ahmad Nabil al-Hilali, do Partido Socialista do Povo, que durante uma época no final dos anos 80 defendia a ideia de que o islã militante era um “movimento pelos pobres” que mereciam apoio. A atitude majoritária da esquerda stalinista tradicional se expressava em uma aliança, ora velada, ora aberta, com a inteligência secular egípcia – e o regime Mubarak. Não por acaso, unidade de ação com os islamistas era algo inteiramente excluído. Alguns advogados de esquerda, como Al-Hilali e Hisham Mubarak estavam envolvidos em defesas jurídicas dos islamistas, mais estas eram iniciativas individuais. Como esperado, a Irmandade Muçulmana pouco se animava com o rótulo de “fascista”, e tinha bastante desconfiança da esquerda.
No início dos anos 80, um pequeno círculo de estudantes egípcios, influenciados pelo trotskismo, organizou um grupo de estudos, que eventualmente evoluiu, em abril de 1995, em uma organização chamada “Tendência Socialista Revolucionaria”. Distinta da esquerda stalinista, estes ativistas reivindicavam o slogan “algumas vezes ao lado dos islamistas, nunca ao lado do Estado” na literatura que distribuíam pelos campus universitários e outros espaços de intervenção. [2] Na pratica, este slogan se traduzia em realizar unidade de ação com os islamistas nas universidades em torno de algumas bandeiras “democráticas”, como quando os agentes da polícia secreta baniram os candidatos islamistas de concorrer nas eleições ou expulsaram estudantes islamistas das escolas. Por meio de panos ou cartazes pregados nas galerias das universidades, estudantes Socialistas Revolucionários continuamente denunciavam os tribunais militares que sentenciavam estudantes islamistas nas “galerias”. Ao mesmo tempo, os estudantes trotskistas se enfrentavam com a Irmandade Muçulmana em torno de temas como liberdade de expressão, gênero e liberdade religiosa para a minoria copta cristã. Assim que sentiam que a irmandade queria impor segregação entre homens e mulheres nas escolas, reprimir teatro ou arte, e sempre que o guia supremo da irmandade fazia comentários sectários sobre os coptas, as “galerias” universitárias se enxiam de denúncias veementes elaboradas pelos socialistas.
Segundo um membro do Socialistas Revolucionários que estava politicamente ativo nos anos 90: “nos eramos um tipo de esquerda que a Irmandade Muçulmana não conhecia. Eles não nos entendiam no começo. Mais de qualquer jeito, eramos pequenos de mais para incomoda-los. Éramos apenas alguns indivíduos”. Isto começou a mudar em 1999. Algumas vezes aquele ano, como recorda um dos socialistas, a Irmandade Muçulmana permitiu que estudantes Socialistas Revolucionários falassem ao microfone em atividades na Universidade do Cairo contra os ataques aereos dos EUA contra o Iraque. Os estudantes socialistas compreenderam aquele momento como um sinal de que a Irmandade Muçulmana havia reconhecido que os mesmos eram uma forca que precisava ser respeitada no espaço político. Foi um primeiro passo em um longo processo de construção de confiança.
De uma organização com um punhado de membros em 1995, os socialistas revolucionários cresceram e eventualmente tornaram-se um grupo com algumas centenas de militantes antes da eclosão da segunda Intifada palestina. A partir de então, suas fileiras se engrossaram devido a sua atuação no movimento de solidariedade com a Palestina, durante um período em que a Irmandade Muçulmana se abstinha das manifestações públicas. A radicalização causada pela Intifada ajudou a reacordar o movimento nas ruas do Egito, que havia sido abafado pela temida polícia secreta de Mubarak. Cairo, assim como diversas outras províncias, testemunharam suas maiores e mais fortes manifestações desde 1977, quando o então presidente Anwar Sadat teve de se enfrentar com um movimento de massas contra o retiro dos subsídios estatais ao pão e outros bens de primeira necessidade. Apesar das oportunidades que surgiram a partir do fermento das ruas, a Irmandade buscou uma política de não enfrentamento com o regime, que a mesma aplicava desde a onda de prisões aos ativistas da organização em 1995, que culminou nos infames tribunais militares. Além dos estudantes da Irmandade Muçulmana não tomarem as ruas, em diversas ocasiões os mesmos tentaram impedir manifestações públicas. [3] Em outubro de 2000, por exemplo, após um confronto entre os socialistas e os aparatos da repressão, em que os ativistas queimaram ônibus da polícia nas manifestações pro-palestinas, os Irmãos denunciaram as ações como “sabotagem socialista”. Em outros momentos, os estudantes islamistas tentaram conter fisicamente outros estudantes de continuarem suas marchas para fora do campus universitário.
A radicalização do cenário político aumentou o espaço de intervenção da esquerda, mas também aumentou o grau de pressão sobre a direção da Irmandade Muçulmana por seus quadros. Ativistas de esquerda nas universidades se lembram de “denunciar e expor” ativistas da Irmandade Muçulmana por sua falta de envolvimento nos protestos de massa. No início de abril de 2002, logo após o início das manifestações pro-palestinas dirigidas pela esquerda na Universidade do Cairo, membros da Irmandade Muçulmana passaram a frequentar os eventos organizados pelo Comitê Popular de Solidariedade com a Intifada Palestina. “Representantes da Irmandade Muçulmana nos sindicatos passaram a comparecer aos nossos encontros” dizia Ahmad Sayf, diretor do Centro Jurídico Hisham Mubarak, que sediava os encontros. “Eles não tinham muita escolha, pois perderiam muita legitimidade junto a base se não participassem. Mesmo assim, mandavam apenas representantes (normalmente Isam Iryan ou Abd al-Munim Abu al Futouh, os dois dirigentes com idade avançada mais populares entre a juventude islamista), que estavam descontentes com a postura complacente frente as autoridades”. No dia 5 de abril de 2002, um grupo de jovens da Irmandade Muçulmana publicou uma carta aberta ao guia supremo Mustafa Mashhour no jornal Al-Hayat, publicado em Londres, em que questionavam a política do partido frente a repressão do estado e exigindo maior participação no movimento de solidariedade com a Palestina. “A alternativa posta a eles era se aproximar ao setor mais radical da oposição, posto que o setor moderado da esquerda “legal”, o Tagammu, o Wafd e os nasseristas, eram excessivamente hostis. Os radicais da oposição, por outro lado, estavam mais que dispostos a receber seja lá qual fosse o apoio que a Irmandade estivesse disposta a dar”.
A Irmandade Muçulmana inicialmente procurou os membros do Socialistas Revolucionários, tidos como o setor “menos hostil” entre as organizações de esquerda, para sugerir que os islamistas colaborassem com os grupos de esquerda nos movimentos pro-intifada e contra a guerra. O movimento iniciou um debate entre os setores da esquerda. Simpatizantes do Partido Comunista Egípcio, do Partido Popular Socialista, membros da burocracia do Tagammu e um setor das organizações de direitos humanos se recusaram a ter qualquer tipo de unidade de ação com os islamistas, apesar de abrirem uma exceção para o Partido Trabalhista, de Magdi Hussein, que consideravam, por alguma razão, com “mais a esquerda”. A cena típica nas manifestações eram que as pessoas se dividiam em duas rodas, uma dirigida pela esquerda e os nasseristas gritando slogans de progressistas, e outra dirigida pelo Partido Trabalhista gritando slogans islamistas. Os socialistas revolucionários, por outro lado, defendiam uma maior cooperação entre ambos setores, tendo nas suas ações o apoio do Centro Jurídico Hisham Mubarak e o Centro Nadeem pela Reabilitação de Vítimas da Violência.
“Espirito irmão”
Em 2003 e 2004, a Irmandade Muçulmana manteve sua política de evitar confrontos com o regime. Enquanto a Irmandade enviava representantes as manifestações pro-palestina e anti-guerra, o eixo central da organização continuou sendo ações de caridade e manifestações dentro das fronteiras estabelecidas pelo regime, normalmente em cooperação total com os serviços de segurança. O regime utilizava o grupo como uma válvula de escape para conter o descontentamento das massas durante o início da guerra americana contra o Iraque, permitindo a Irmandade participar de manifestações contra a guerra controladas pelo governo no Estádio do Cairo e nas províncias do interior. Enquanto isto, o Comitê de Solidariedade Palestino, cuja linha caia para a esquerda, evoluiu para tornar-se uma entidade envolvida na luta contra a guerra no Iraque, organizando pequenas ações de rua, que tornaram-se enfrentamentos com a polícia no centro do Cairo nos dia 19 e 20 de Março 2003. Pouco depois, dirigentes intermediários da Irmandade Muçulmana começaram a expressar uma crescente frustração entre quadros da direção frente a política de “abandonar as ruas para os esquerdistas. Quando a Kifaya surgiu, alguns da juventude da irmandade queriam aderir a entidade”.
O movimento contra a guerra no Iraque, sucessor do movimento pro-intifada, evoluiu novamente, após o fim de 2004, em um movimento anti-Mubarak, sendo composto por duas organizações. A primeira era o Kifaya (Movimento Egípcio por Mudanças), uma coalizão formada essencialmente por membros do Karama, uma ruptura [a esquerda] do partido nasserista, indivíduos do partido liberal Al-Ghad, e figuras do partido comunista egípcio, além de ativistas veteranos do movimento estudantil dos anos 70. A outra ala era a Campanha Popular por Mudança, mais marxista em sua composição, incluía Socialistas Revolucionários, a esquerda do movimento de direitos humanos e independentes de esquerda. As duas entidade mais o menos se fundiram poucos meses depois. As ações de rua do Kifaya, muitas vezes extravagantes e teatrais, conseguiam atrair atenção pública e romper tabus da vida política no Egito ao desafiar frontalmente o presidente e sua família.
Pouco depois de uma serie de manifestações do Kifaya, um grupo de ativistas da Irmandade Muçulmana, principalmente Ali Abd al-Fattah de Alexandria, reuniu-se com os Socialistas Revolucionários e ativistas independentes de esquerda para lançar a Aliança Nacional por Mudanças, em junho de 2005. A aliança era tática, e girava em torno de uma plataforma anti-Mubarak, com ênfases em denúncias a fraudes eleitorais no parlamento e eleições presidenciais. Os frutos desta aliança não alteraram radicalmente a política concreta nas lutas cotidianas. Após anunciar a intenção de realizar uma manifestação conjunta com a esquerda na praça Abdin, em julho de 2005, a Irmandade Muçulmana acabou não aparecendo, citando pressões do aparato de segurança. Duas outras manifestações conjuntas foram organizadas mais tarde em frente ao sindicato dos advogados. A primeira foi caótica, a segunda, mais bem organizada, teve coordenação nos slogans e cartazes. Desde as eleições parlamentares de 2005, a aliança se retirou das lutas nas ruas, mas se manteve enquanto espaço de coordenação e enquanto mecanismo de resolução de problemas, sempre que atritos surgiam entre ambos os lados.
A aproximação entre os islamistas e a esquerda deu um novo salto quando estudantes da tendência Socialistas Revolucionários, a Irmandade Muçulmana e estudantes independentes, em novembro de 2005, montaram a União dos Estudantes Livres (UEL) entidade paralela a instituição tradicionalmente dirigida pelo governo. A UEL centrava-se na Universidade do Cairo e Helwan, com uma pequena presença em outras atividades, incluindo ‘Ayn Shams. Após as fraudes as eleições estudantis de 2006, a irmandade decidiu jogar seu peso na UEL, fazendo com que novos braços da entidade surgissem nas universidades de al-Azhar, Mansoura e Alexandria. Enquanto a UEL segue distante de atingir seu projeto ambicioso – ser nada menos que uma entidade nacional estudantil inserida entre os estudantes – os lugares em que a UEL atua tem testemunhado melhoras na relação entre estudantes da Irmandade e a extrema-esquerda. Mustafa Muhi al-Din, um ativista socialista da Universidade de Helwan, descreve as relações no campus com a irmandade como fraternas. “Eles nos convidam a seus eventos, e mostram interesse nos nossos. Talvez a entidade aqui ainda não é forte, mais há espaço para atividades. Nós podemos militar e espalhar nossa mensagem, sempre nos preocupando com os aparatos de segurança, mas não mais com brigas com a irmandade, que as vezes nos ajuda. Fazemos o mesmo. Isto faz com que tudo seja mais fácil.” ‘Abd Al- Aziz Mugahid, ativista da irmandade e presidente da UEL na Universidade de Helwan é um entusiasta do “espirito irmão” existente no campus. “Os socialistas foram solidários, intervindo e nos ajudando quando uma de nossas irmãs foi expulsa do dormitório da universidade por utilizar um véu islâmico, e eles estiveram ao nosso lado quando a reitoria expulsou mais de 400 estudantes por supostas razões de segurança. As ações conjuntas antigamente eram pouco frequentes.”
Transformações geracionais
A vértebra responsável pelas ações de solidariedade com a intifada palestina havia sido os estudantes no final de suas adolescências ou com vinte e poucos anos. Enquanto virgens políticos, eles não carregavam a bagagem histórica da luta entre islamistas e a esquerda, e entre as diferentes organizações de esquerda [4]
Ao mesmo tempo, o perfil do ativismo na Irmandade Muçulmana tem vivido suas próprias transformações, fazendo com que uma quantidade considerável da juventude da irmandade estivesse aberta a coordenação com grupos seculares. “Os quadros da Irmandade mudaram” diz Husam Tammam, autor de um livro recente sobre a organização [5] “eles se assimilaram socialmente. Não são mais necessariamente os filhos dos bolsões de pobreza e marginalização com uma vez o foram”. A decisão da irmandade de aderir a política eleitoral “veio às custas de sua identidade, forçando-os a serem mais pragmáticos” diz Tammam. “Esqueçam do Estado Islâmico, do Califado, e tudo mais. Quanto mais a Irmandade é arrastada para dentro da institucionalidade política, mais ela se adapta, e mais ela tenta operar de acordo com as regras das instituições”. Para Tammam “a Irmandade mudou sua relação com a arte, a sociedade e sua visão de mundo. Você pode ver isto na juventude da organização. A juventude votou no candidato [liberal] Ayman Nour. Isto não foi uma resolução da direção do grupo. Quando a juventude não está centralizada, ela não assume necessariamente a linha tradicional da organização. Segundo minha perspectiva, o evento mais curioso dos Irmãos, antes deles tomarem as ruas, foi um evento organizado pelos estudantes da irmandade chamado Dia de Mohamad que ocorreu no lugar do Dia dos Namorados. A juventude islamista pensou ‘como eu posso amar, mas de uma forma “boa”’, se você comparar isto ao comportamento da irmandade em 1985, você verá algo inteiramente diferente. Naquela época eles apenas pensavam sobre em como estabelecer um Estado Islâmico e reviver o califado. Teriam enxergado no dia dos namorados algo ridículo. A juventude de hoje, porém, não possui mais a mesma perspectiva agressiva”.
As observações de Tammam são repetidas por ativistas de esquerda que dividiram celas de prisão com jovens irmãos durante a primavera de 2006, após a repressão ao movimento de solidariedade com os juízes egípcios que expuseram a fraude e a extorsão de eleitores em 2005. Escrevendo sobre seu encontro com os presos da Irmandade Muçulmana, o ativista independente da esquerda secular Ala Sayf escreveu: “eles eram de uma nova espécie de islamistas que liam blogs, assistiam al-jazeera, cantavam música popular, falavam sobre histórias de amor intenso e gritavam “abaixo Mubarak”. Por serem jovens, a maioria não possuía experiência alguma na prisão. Aguardavam para saber se passariam 15 ou 45 dias na prisão, para saber se seriam mandados as celas terríveis ou as celas muito terríveis, e em meio a todas estas reflexões, descobriram que seriam libertos o dia seguinte.” Com a notícia de sua libertação, “do nada, foram rapidamente de irmãos a companheiros! Me deram enormes abraços, eles aplaudiram, apertaram minha mão, deram risada e estavam genuinamente felizes com minha libertação… quando você for falar dos 22 que foram soltos esta semana, não diga 22 dos 30 foram soltos, diga 22 dos 600… enfrentando as mesmas acusações por lutar contra o mesmo tirano”. A Irmandade Muçulmana em seu site oficial convidou Ala Sayf a escrever uma mensagem a juventude da organização. No dia 24 de Julho, ele escreveu a eles, chamando-os a serem “mais audaciosos” e chamando por mais ações de rua.
Ainda hoje, a maioria das organizações de esquerda ainda se opõem (ou expressam cautela) frente a ideia de unidade de ação com os islamistas, exemplo disto é a nova Esquerda Democrática (uma tendência reformista centrada em torno da revista al-Busla), o Partido Comunista Egípcio, o Partido Socialista do Povo e um setor da comunidade ligada a direitos humanos. Mais os irmãos e aqueles camaradas que estão dispostos a trabalhar com eles continuarão engajados na construção de confiança mutua. A direção da Irmandade Muçulmana é extremamente gradualista, e sempre buscara compromissos junto ao regime egípcio. Esta medida provavelmente impedira qualquer aproximação maior com a esquerda radical, ao menos que a base jovem da irmandade ganhe maior peso na direção da organização.
Notas de rodapé:
[1] Historiadores de esquerda dividem a história do comunismo egípcio em “ondas”. A primeira onda ocorreu em 1919 com a fundação do Partido Socialista Egípcio, que mais tarde tornou-se o Partido Comunista do Egito, destruído devido a repressão do partido Wafd em 1924. A segunda onda se iniciou no final dos anos 30, com a formação de círculos de estudo comunista que evoluíram em diversas organizações e correntes, havendo entre elas momentos breves de unidade; ela termina com a dissolução do Partido Comunista do Egito em 1965. A terceira onda se inicia em 1968 com o ressurgimento do movimento operário e estudantil, tendo sido esmagada em 1977 e oficialmente morta com o colapso da União Soviética em 1991. A (atual) quarta onda iniciou-se em 1995, com o lançamento da Tendência Socialista Revolucionária.
[2] O slogan foi cunhado por Chris Harman, teórico da Tendência Socialista Internacional [a qual integra o SWP Inglesa] baseada na Grã-Bretanha. Seu livro sobre o tema, O profeta e o roletariado, acessível online (http://www.marxists.de/religion/harman/index.htm) foi traduzido para o árabe e amplamente difundido pelos Socialistas Revolucionários em 1997.
3] Hossam el-Hamalawy, “Street Politics,” Cairo Times, 26 de setembro de 2002; e Hossam el-Hamalawy, “Post-War Middle East,” Islam Online, 30 de Abril de 2003.
[4] El-Hamalawy, “Street Politics.”
[5] Husam Tammam, Tahawwulat al Ikhwan al Muslimin (Cairo: Madbouli, 2005).
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