Hélio Rodrigues
Como é que o filme Philomena, de Stephen Frears, que faz implacável crítica a igreja católica e sua respectiva hipocrisia e ocultação dos interesses econômicos, reflete a atitude contemporânea de resignação, isto é, revela a presença do crescente pessimismo e desesperança? E mais, o que a filosofia marxista tem haver com isso?
O filme é baseado no livro de Martin Sixsmith, O filho perdido de Philomena Lee, publicado em língua portuguesa pela editora Planeta em 2014 e, no Brasil, pela editora Verus em 2013. O filme é facilmente visto no circuito comercial de cinema.
Em resumo e sem spoiler, a história do filme é sobre uma jovem irlandesa (Philomena) que em 1952 engravida na adolescência. Ela é rejeitada pela família e enviada para Sean Abbey Ross, um convento em Roscrea – Irlanda, onde é obrigada a trabalhar na lavanderia do convento para pagar os custos do parto e da hospedagem. Além disso, Philomena não está autorizada a ver o seu filho (Anthony) mais do que uma hora por dia.
Com apenas três anos de idade, a criança é adotada por uma família americana mediante pagamento dos pais à instituição religiosa. A mãe biológica escondeu esse segredo durante cinquenta anos, devido à vergonha e ao grande trauma porque passou.
Um dia, Philomena conta a história para sua filha, que ao encontrar um jornalista (Martin Sixsmith) que tinha sido demitido da BBC – Londres (e aqui não existe detalhamento dessa demissão / crise profissional), pede-lhe ajuda para encontrar o seu meio irmão (ou seja, o filho que a mãe não pode criar). No início, Martin Sixsmith não quer contar a história, pois a considera como de ‘interesse humano’, isto é, uma literatura de menor qualidade. Aliás, em vários momentos do filme são apresentadas as diferenças culturais e de visões de mundo entre o Philomena e Sixsmith.
Pois sim, a história torna-se mais dramática quando nas aventuras e desventuras para se descobrir o paradeiro e a história do filho, os protagonistas descobrem que Anthony também procurou à mãe biológica. Ou seja, ambos separadamente e um ignorando a busca do outro haviam visitado o convento Sean Abbey Ross e as freiras que poderiam ter ajudado no reencontro não responderam as perguntas, não colaboraram e omitiram-se despudoradamente. Finalizo por aqui para evitar contar o final do filme”.
Reconheço que o que “anda nas bocas, nos becos e nas ruas” sobre o filme é o foco nos pecados da igreja católica (por favor, não venham me exigir letra maiúscula para a instituição): o trabalho escravo de mães solteiras; a negativa ao direito dos indivíduos/famílias a conhecerem suas descendências e histórias; o fechamento da igreja ao assunto e a completa ausência de um pedido de desculpas e/ou de adotar uma postura colaborativa. Ou seja, a crítica é a instituição igreja, sua hipocrisia e obscuro interesse econômico.
Por sua vez, não consegui encontrar nenhuma crítica sobre o filme que tivesse como recorte o tráfico de crianças e a adoção compulsória; a questão de gênero; a relação entre o controle sobre a mente e o corpo das mulheres frente ao fundamentalismo religioso, quiçá católico; entre outros recortes possíveis.
De qualquer modo, aqui o foco é: a representação da relação de classe surgida entre Philomena e Sixsmith. Explico: neste texto não há nenhuma vocação em tratar de elementos subjetivos acerca daquela relação, seja porque eu não teria capacidade técnica para tanto, seja porque seria um assunto que me é pouco atraente.
Logo, ao contrário de uma crítica no campo comportamental e intersubjetivo, busco aqui formular uma crítica social-política a partir daquelas situações postas pelo filme ao espectador que envolve a relação de classe – antagonismos e lutas.
Perguntar-me-iam alguns: qual seria a crítica marxista ao filme diante de um problema tão pessoal que envolve uma mãe e um jornalista? Ora, como considerar a questão da luta de classe diante de uma relação entre dois indivíduos?
Em primeiro lugar, sabe-se que o objetivo central da obra de Marx, O Capital, é analisar a base material da oposição e da luta entre as classes fundamentais para o modo de produção capitalista. Com efeito, as contradições e lutas de classes não se limitam de forma alguma ao campo da economia: se estendem por todos os domínios das formações sociais.
Aliás, estava prevista no esquema completo e não realizado integralmente pela mencionada obra de Marx, a análise e a exposição teórica eminentemente política que pudesse abarcar as relações sociais, o mundo do pensamento, as ações e os sentimentos, assim como o universo cultural que é próprio das classes sociais e da sua luta. Todo um conjunto variável de mediações (institucional, material, simbólica, próprias do imaginário e outras) está lá presente. Logo, a distinção entre o “espírito rebuscado” do jornalista e a “simplicidade” da mulher/mãe indica a existência de antagonismo e luta de classe, ainda que paradoxalmente no filme as protagonistas criem laços fraternos.
A partir desse ponto de vista, sabemos ainda que as lutas de classes constituem o principal impulso da história de uma formação social como um todo. No entanto, a face classista da realidade não é facilmente evidenciada em todos os processos e eventos que representam o antagonismo e a luta de classes. De fato, geralmente não se consegue explicar quaisquer uns deles se não considerarmos a presença das mediações. O antagonismo e a luta de classes, em geral, situam-se e atuam sobre a relação interna de uma realidade histórico-social, de modo que a maior parte do tempo, ela não é imediatamente visível. Se assim fosse, a ciência social seria inútil (Marx). O travamento das contradições e das lutas de classes é, portanto, conectado com os eventos imediatamente visíveis na superfície dos processos por meio de forma que a configuram.
Em segundo lugar, as relações sociais capitalistas, além da opressão e exploração inerentes (de caráter classista, que é a sua razão de existir e lhe dá vida), com o individualismo cruel que dá lugar, estimulam, multiplicam, exigem e/ou beneficiam outras formas de opressão e destruição. No filme, isso fica patente diante da cultura religiosa e social que controla a sexualidade feminina e trava a emancipação da mulher, especialmente na Irlanda.
Existem, dentro da classe trabalhadora, várias distinções, incluindo: consciência e práxis de trabalho de classe e as condições variadas de vida, qualificação profissional, sexo, gerações, preferências sexuais, nacionalidades, regionalismos, etnias, culturas, religiões, além de traços imaginários. Um oceano de estruturas relativas ao simbolismo das lutas de classe que servem para discutir várias ligações com outras lutas de libertação. Explico: a opressão refletida em cada aspecto desses elementos constitui uma totalidade estruturada, onde cada elemento tem uma eficácia específica (diferenciada qualitativa e quantitativamente) sobre cada um e sobre todos eles em conjunto. Por conseguinte, se trata de olhar a totalidade. Não se trata, de modo algum, de uma infinidade de objetos pós-moderno.
Com efeito, as constantes diferenciações culturais e de visões de mundo entre as protagonistas não são apenas humor e risos, mas a sutil maneira de demonstrar as variadas distinções inter e intra classes, que devem ser vistas como totalidade estruturadas do antagonismo e da luta de classes.
Em terceiro lugar, ao contrário de se vê no filme apenas um problema individual que reflete uma isolada opressão (mulher com filho arrancado a força da sua maternidade, que conta com ajuda de um jornalista com espírito de justiça, a fim de assegurar a liberdade individual dessa mulher), reputo que o tema da liberdade individual somente é possível como realização coletiva. O filme demonstra que “apesar de tudo pelo quê passou”, Philomena permanece com fé religiosa, a qual o jornalista é obrigado a respeitar. O filme perdeu uma oportunidade de avançar e permaneceu na superfície da questão. Explico novamente:
É que a liberdade pessoal não está contida ou deriva necessariamente das chamadas liberdades civis. A liberdade pessoal de todos/todas e de cada um/uma (pelo menos a sua possibilidade) não é um produto imediato do controle do trabalhador coletivo sobre o conjunto dos meios de produção ou o seu poder sobre a formação social. Ela exige uma luta permanente, específica e multifacetada, por todos os seres humanos para começar a luta contra a opressão e a restrição da liberdade que se exerce sobre si mesmo. São duas as famosas passagens de Marx sobre tal assunto:
No livro A Questão Judaica[1], ele aponta a confusão de Bruno Bauer, uma vez que este crê que a emancipação política da religião possibilita a emancipação humana da religião. Pelo contrário, Marx cita como exemplo a França, onde o fato do Estado não professar qualquer religião, declara uma religião da maioria. Cita também os Estados Unidos, que formava um Estado politicamente acabado, ao não professar nenhuma religião ou nenhuma religião estatal da maioria. Aliás, não dava destaque a um culto em detrimento de outro. No entanto, foi (é) um dos países mais religiosos que existiu naquela época (ainda hoje) dentro das nações capitalistas.
Ou seja, Marx constatava que liberando o Estado da religião, o homem não foi libertado da religião. A dialética da vida é que para o ser humano obter a liberdade religiosa, o Estado tinha de ser declarado ateu ou não religioso. Para se afirmar a liberdade religiosa, deve-se afirmar o seu contrário: o ateísmo de Estado. Portanto, a emancipação política da religião não envolve a emancipação humana da religião. Assim, fica claro que uma coisa é a emancipação política e outra a emancipação humana.
No tocante a afirmativa de que “a luta contra a opressão e a restrição da liberdade começa combatendo a que se exerce sobre si mesmo”, conecta-se com o pressuposto de que a liberdade individual somente é possível como realização coletiva. Mais uma vez explico por meio de outra famosa passagem de Marx.
A concepção materialista da história diz que “não é a consciência dos homens que determina sua existência, mas, pelo contrário, sua existência social lhes determina a consciência (…). Se em todas as ideologias os homens e suas circunstâncias aparecem de cabeça para baixo como em uma câmara escura, este fenômeno deriva tanto do processo vital histórico deles quanto da inversão dos objetos na rotina de seu processo vital físico”[2].
Ou seja, deve-se notar que Marx achava que a maioria do que pensam os seres humanos é uma percepção falsa, é ideologia ou racionalização. E mais, elas têm suas raízes em toda a organização social que norteia a percepção humana para certas direções e impede de dar-se conta de determinados fatos e experiências.
É exatamente a cegueira do pensamento consciente do ser humano que lhe impede de tomar conhecimento de suas verdadeiras necessidades e de ideais nele arraigadas, travando a emancipação. Só se a falsa percepção é transformada em verdadeira, isto é, só se tomarmos conhecimento da realidade, ao invés de deturpá-la por meio de idealizações, podemos também dar-nos conta de nossas realidades reais e verdadeiramente humanas, emancipando-nos.
A formação do ser humano para a emancipação significa proteger a sua introjeção contra parâmetros autoritários, contra o colapso da esperança (tão ao gosto dos pós-modernos) e contra a exposição ao trauma (tão ao gosto dos mecanicistas ou fatalistas). Assim, a relação entre o consciente e o inconsciente deve ser levada em consideração para a conquista da emancipação (e da liberdade, em linguagem mais corriqueira).
Então, poderiam me indagar, cadê o nexo da autolibertação (individual) com a libertação coletiva? Ora, sabemos todos que parâmetros são reproduzidos no processo de introjeção de modo que preservam o padrão de submissão e o comportamento autoritário. Aquele que é punido ou brutalizado e assimila o papel do sujeito pode querer assumir o papel oposto. É possível que esse seja o único papel que ele conheça. A recíproca também é verdadeira: o que não respeita a alteridade, que brutalizar o outro, apesar de sua intenção de fazer em nome da liberdade, não é livre e nem libertário – é o caso dos libertários sistêmicos, que não veem além da liberdade da empresa ou do seu microcosmo – religião, seita, família etc.
Com efeito, ao seu modo Marx afirma que
“a doutrina materialista da transformação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias têm de ser transformadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. (…) A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou autotransformação só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxis revolucionária”[3].
Isso reforça a tese de que a emancipação não se limita à autoemancipação (quem educa o homem não é apenas ele mesmo ou outro homem, um professor, mas sim a sociedade, que educa tanto pelo que faz, como pelas condições em que vive).
Deslocar o processo de emancipação da totalidade das relações, à moda positivista, e pensá-la como se ela se restringisse às quatro paredes da vida do próprio indivíduo ou à sua educação formal, ou ainda, achar que outro indivíduo seria capaz disso (educador, messias ou jornalista no caso do filme analisado), expressa uma concepção ingênua da emancipação (em linguagem vulgar, da liberdade) e da sociedade, pois são desconsideras as inúmeras variáveis, fatores e relações sócio-históricas que incidem sobre ela. O ponto chave aqui é entender que a emancipação só pode ser compreendida como práxis revolucionária.
A relação de classe entre Philomena e Sixsmith é uma relação intraclasse social (ambos trabalhadores). Entre um jornalista intelectual e formador de opinião pública (integrante da elite pensante da Inglaterra); portador de um humor seco que beira a arrogância; que é admirador da história Russa (seria a personagem ideologicamente de esquerda?) e fiel aos seus princípios e valores, que consegue dialogar com uma mulher de postura e gostos simples (que sempre viveu na mesma cidadezinha da Irlanda), com uma visão de mundo supostamente mais superficial do que a dele, com apelo literário para “romances de banca de revistas” – nas próprias palavras do jornalista.
Portanto, não se trata de entender o significado da mútua amizade e admiração que se estabelece entre as personagens. Para além da gratidão de Philomena em contar com a ajuda de Sixsmith para encontrar a história do filho perdido a mais de 50 anos atrás, ou mesmo de Sixsmith ter a oportunidade de se reencontrar na vida, diante da crise profissional que ele atravessa, por meio da história de Philomena, existe a representação escondida do antagonismo e da luta de classe presente na relação entre um homem crítico, secularizado aos direitos e valores da história social, que quer justiça; e uma mulher ainda religiosa, que deseja saber do filho. E mais, o estreitamento da potencialidade da emancipação.
Uma vez que a emancipação tem a ver com a totalidade social, deslocá-la dessas relações, transformá-la numa espécie de mera vontade ou de autoajuda é o mesmo que assumir ou decretar que os seres humanos são incapazes, incompetentes e que a emancipação é inalcançável. Igualmente, pensá-la como objeto exclusivamente econômico e/ou político é simples idealismo. A emancipação é una e íntegra, pois nela não existe propriamente uma divisão subjetiva/psicológica e econômica/cultural. Na verdade, a emancipação é uma unidade, uma totalidade, assim como a vida. Afinal, ela é compreensão da história baseada no fato de os seres humanos serem os autores e atores da sua história[4].
Em síntese do que foi apresentado, o filme Philomena mantém obscuro o antagonismo e a luta de classe, diante da mediação da instituição e da religiosidade. A crítica mais fácil (mas não por isso menos verdadeira ou que deva ser desconsiderada) vê apenas a opressão da igreja às mulheres irlandesas.
Ademais, muito embora o filme projete de maneira clarividente a opressão de gênero (diante do controle social do corpo, mente e sexualidade feminina), e se possa buscar enxergar (no filme) um protesto a alienação do ser humano, contra a sua perda de si mesmo e contra sua transformação em objeto (com ou sem religiosidade), minha crítica aponta que existe um completo desprezo à luta pela emancipação humana. A história do filme, baseada em fatos reais, negligencia a possibilidade de fazer a emancipação não apenas em si, mas para si; bem como que se libertar política, econômica e culturalmente das travas do atraso é condição para a superação de uma vida que possa ser enquadrada como vegetativa, emprestada ou imitativa.
Se o filme Philomena se mostra implacavelmente crítico para com a igreja católica na Irlanda, ele é lacunoso para com toda e qualquer crítica as “soluções” para o problema da existência humana que tentam apresentar propostas negando ou mascarando as dicotomias intrínsecas da sociedade. Ao final, o filme deixa a impressão de que a simples publicidade da história e o desmascaramento da igreja são elementos suficientes para o sentido de justiça. Qualquer coisa a mais é dispensável, pois os fatos ocorridos foram decorrência da fatalidade da vida, um acaso que poderia ocorrer com toda e qualquer outra mulher que vivesse no tempo e no lugar de Philomena. No final da narrativa cinematográfica, Philomena é uma mulher resignada. Ou seja, ao contrário do que possa aparentar, no filme Philomena à crítica ao controle social sobre a mulher irlandesa não revela uma profunda preocupação com o ser humano e com a realização de suas potencialidades.
Para os que comungam da filosofia marxista, a questão central é o da existência do ser humano individual real, que é aquilo que ele faz, e cuja “natureza” desabrocha e se revela na história. Ao contrário do liberalismo, individualismo e outras correntes, Marx vê o ser humano em sua plena realidade como membro de uma dada sociedade e de uma dada classe, auxiliado em seu desenvolvimento pela sociedade e, ao mesmo tempo, membro desta. A realização total da humanidade do ser humano e de sua emancipação das forças que o aprisionam está vinculada, segundo Marx, ao reconhecimento dessas forças e à mudança social baseada em tal reconhecimento.
A lição do velho barbudo é conhecida: ”Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”[5].
Nesse aspecto, o filme apenas arranha a superfície da questão ao se limitar criticar a igreja católica e sua respectiva hipocrisia e interesse econômico. A filosofia de Marx é de protesto. É um protesto impregnado de fé na humanidade, em sua capacidade para libertar-se e para realizar suas potencialidades. Por essa razão, para muitos espectadores do filme Philomena infectados com a mesma atitude contemporânea da protagonista de resignação e até com o ressurgimento do fundamentalismo religioso em sua nova faceta de pecado original, a filosofia de Marx parecerá obsoleta, fora de moda, utópica, desconexa com o próprio filme. Por isso que, mesmo sem saber, eles repelem a voz da fé nas possibilidades do ser humano e de esperança em sua capacidade para tornar-se aquilo que ele é potencialmente. Para outros, contudo, a filosofia marxista será uma fonte de novo discernimento e de esperança.
[1] MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: editorial boitempo, 2010.
[2] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 1º Ed. 1º reimp. São Paulo: editorial boitempo, 2009, p. 94.
[3] Ob. Cit. Apêndice. Teses sobre Feuerbach, n.3, p. 533 e 537.
[4] Ob.Cit. p. 87.
[5] Ob. Cit. Apêndice. Teses sobre Feuerbach, n.11, p. 534 e 538.
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