Daniela Mussi
Simón Bolívar e Francisco Goya, o político e o artista, viveram na mesma época. Bolívar comandou os exércitos em luta pela independência das colônias espanholas na América Latina, inspirado pela Revolução Francesa e, principalmente, pela figura de Napoleão Bonaparte. Goya, no mesmo período, pintou os desastres sofridos pelos espanhóis em virtude da guerra suscitada pela invasão napoleônica no país.
Aqui, ambos são pensados conforme sua posição. O político, com o auxílio do olhar apenas aparentemente “enciclopédico” de Marx, é indagado a partir da natureza de sua atividade dirigente. O artista, a partir da natureza de sua atividade estética. Apenas uma questão é compartilhada: como se relacionaram com aquilo que procuraram governar ou representar?
Símon Bolívar e o bonapartismo
Não é muito conhecido do público brasileiro um interessante verbete escrito por Karl Marx em 1858 para a New American Encyclopedia sobre Simón Bolívar (1783-1830). O pequeno artigo, feito para um projeto editorial ao qual contribuiu como correspondente, Marx inicia comentando aspectos biográficos do “Libertador” da Colômbia: sua origem nobiliária, a longa formação europeia (como a maioria dos jovens de sua classe) e o vislumbre pela figura de Napoleão.
Marx destaca, ainda, que a trajetória política de Bolivar não coincide com a de uma liderança popular mas, ao contrário, com a de um político preocupado com a garantia dos interesses econômicos da classe dominante da qual faz parte, oscilando sempre entre “a vida privada” e a participação nas questões políticas. Além disso, sinaliza, na vida política do “libertador”, incidentes nos quais – mesmo sem qualquer razão aparente – este abandonara suas tropas sem qualquer aviso durante a revolução pela independência nacional. O julgamento de Marx destaca que a vaidosa autoproclamação política, combinada ao abandono das preocupações administrativas mais básicas com o povo que acabara de “libertar”, em 1813, e somada a novas ameaças coloniais, fizeram de Bolivar um perfeito representante do bonapartismo.
É verdade que a análise de Marx possui traços eurocêntricos que revelam sua dificuldade de compreender a realidade da América Latina (cf. BIANCHI, 2010, p. 178-180). No entanto, apesar de pouco desenvolvida, a analogia entre Bolívar e Luís Bonaparte fornece algumas pistas teóricas interessantes para a compreensão do fenômeno bonapartista. Este é o argumento mais interessante do verbete. O bonapartismo aparece como resultado dos processos de luta, em que a liderança política se forja a partir de resíduos das antigas classes dominantes locais. Como não se conectam “organicamente” ao povo que pretende libertar, essas lideranças não poderia estabelecer com ele relações de lealdade e aliança permanentes. Por isso as disputas intestinais pelo poder político, a concentração inaudita deste, a perseguição aos adversários, as deserções e as traições, narradas por Marx, fizeram parte de sua história.
Não se pode esquecer que, escrito em 1858, os argumentos deste verbete estão em clara conexão com a análise que faz da ditadura de Luís Bonaparte na França. Bolívar seria, a partir desta pesquisa póstuma feita por Marx, um primeiro ditador bonapartista da história, forjado à quente nas franjas do primeiro Império napoleônico.
Uma característica bastante peculiar de Bolívar destacada por Marx e, possivelmente generalizável para a figura bonapartista, é a necessidade obsessiva de anunciar a intenção de resignar todos poderes atribuídos. A negação pública – seja explícita, seja gestual – da posição alcançada, pronta a receber com indulgência todos os apelos e concessões para ali permanecer, é típica deste tipo de liderança. Afinal, a sua própria presença é um lembrete – para as classes dominantes locais – de que este é o limite do seu próprio poder.
Bolívar foi destituído definitivamente em 1829 – um ano antes de morrer abruptamente – em um ambiente de insurreições e crise política, com a emergência de inúmeras facções políticas. Marx dá a entender que sua derrota foi resultado de um processo longo de desagregação política. O modelo, porém, sobreviveria ao tempo e espaço para ser descoberto algumas décadas mais tarde na figura de Luís Bonaparte.
As guerras napoleônicas sob o olhar de Francisco Goya
No mesmo período em que Bolívar se armava para lutar contra os espanhóis na Venezuela, Francisco Goya (1746-1828) compunha uma coleção de pinturas feitas sobre os horrores enfrentados na Espanha em virtude da invasão napoleônica, iniciada em 1808. Desde o início do conflito, sob encomenda de militares espanhóis, o pintor viajava para as zonas de combate com o objetivo de retratar algumas das principais cenas da guerra. Destas encomendas surgiram algumas telas famosas nos dias atuais, como El Tercero de Mayo 1808, que retrata os massacres que marcaram o início da invasão do exército napoleônico na Espanha.
Goya atuava profissionalmente como um pintor autônomo: recebia encomendas de quadros de famílias nobres, propunha seu trabalho para as cortes espanholas, chegou a pintar também sob encomenda para figuras do alto clero. Ao mesmo tempo, frequentava círculos intelectuais progressistas, impactados pelas ideias iluministas e pelo ideário da Revolução Francesa. Com o conflito, o já contraditório universo intelectual do pintor se converteu em um ambiente torturante, revelado paulatinamente em seu trabalho (cf. TODOROV, 2014).
O “terceiro de maio de 1808” retratado por Goya revela muito da trajetória pintor. Desde o início de sua carreira, Goya dedicou parte importante de sua obra à cultura e costumes populares (sobre isso se destacam, por exemplo, suas telas sobre as brincadeiras de criança nas ruas e sobre os jovens das classes populares, Majas e Majos), o que poderia passar despercebido por muitos hoje, visto como algum tipo de representação folclórica. Porém, o caráter incomum deste olhar, que perseguia um sujeito invisível, encontrando para ele formas de representação estéticas, criaram em Goya uma sensibilidade atípica em seu meio. Quando a guerra veio, seu pincel apontou novamente para os lugares aos quais este havia se acostumado a olhar. Contra todas as promessas das “luzes” que, até então, se promoviam como lanternas de um futuro promissor para a civilização, o horror e a violência se sobrepuseram.
Durante a invasão napoleônica, além das pinturas encomendadas, Goya realizou nesse período “Desastres da Guerra” (1810-1815), uma coleção independente de algumas dezenas de gravuras com legendas em que representou, consternado, aquilo que ao seu olhar revelara o ponto mais baixo ao qual a humanidade poderia chegar: o assassinato cruel, o escárnio, os estupros, a fome, os escombros, a animalização. Neste conjunto o olhar de Goya está inteiramente voltado para a violência exponencial que opunha soldados, sem que se revelasse qualquer “razão” ou argumento para tal. “Com razão ou sem ela”, declara, não há vencedores, apenas mortos. “Para isso nasceste”, escreve em outra gravura, em que uma pilha de corpos se avoluma.
Em outra gravura, intitulada por “Estragos da Guerra” que, de certa forma, sintetiza o conjunto, Goya representou o interior de uma casa destruída, em que todos os integrantes de uma mesma família aparecem mortos, os rostos em sinal de desespero e horror. Não é possível identificar no desenho um ângulo, um “ponto de fuga”, uma força gravitacional. É como se tudo flutuasse em um espaço desconhecido. Ao olhar para aqueles e aquelas a quem a guerra e a violência haviam destruído – e, definir, assim, a própria função da guerra e da violência na modernidade – Goya desafiava as próprias leis que organizavam a razão intelectual que o educara.
Referências bibliográfricas
BIANCHI, Alvaro. O marxismo fora do lugar. Política e Sociedade, v. 9, n. 16, p. 177-203, abr. 2010.
DRAPER, Hal. Karl Marx and Simon Bolivar: A Note on Authoritarian Leadership in a National-Liberation Movement. New Politics, v. 7, n. 1, p. 64-77, 1968.
MARX, Karl. Bolivar y Ponte. New American Encyclopedia. v. 3, Dec. 1857–Jan. 1858.
TODOROV, Tzvetán. Goya à sombra das luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
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