Sabrina Fernandes
O discurso do direito à cidade é múltiplo e flexível. Ele é o foco de livros de geografia crítica, figura em tópicos de discussão da política institucional, e possui uma ressonância legitimadora quando debatido em mesas de grandes congressos e seminários. Esse último caso foi visível em um seminário nacional realizado recentemente pelo Governo Federal e outras entidades juntamente às Nações Unidas. Enquanto o Ministério das Cidades, encabeçado por Gilberto Kassab e suas políticas desastrosas de desenvolvimento urbano, traçam uma posição destoante das necessidades da população, uma mesa dedicada ao debate do direito à cidade cumpre o papel de nos lembrar que, afinal, o conceito carrega importantes ideias que precisam ser adereçadas, ao menos no papel.
Farsa completa ou não, arranjos políticos como esse foram fomentados pelo crescimento do discurso do direito à cidade na academia e sua utilização quase que retórica por alguns atores e algumas organizações políticas, incluindo aquelas que se intitulam de populares mas pouco fazem pela construção do verdadeiro poder popular que transcende as limitações da política institucional e burocrática. Algo semelhante pode ser observado no V Fórum Urbano Mundial, também promovido pela ONU, em 2001 no Rio de Janeiro.
Da maneira como é empregado pelo poder hegemônico, o direito à cidade é impossibilitado de cumprir sua função como plataforma de lutas urbanas que visam a transformação da sociedade, pois representa apenas uma mera gestão sustentável e eficiente. É dessa maneira que o Estatuto da Cidade de 2001 trata do direito à cidade: não como propulsor da reforma urbana e assegurador das mudanças sociais necessárias para garantir direitos sociais à classe trabalhadora, mas como um plano de administração urbana que utiliza a propriedade e o capital como mediadores dos direitos (à terra urbana e à moradia, e demais).
O Estatuto, tal como o artigo 182 da Constituição Federal, propõe princípios limitadores da propriedade mas ainda assim afirmadores de sua existência. Esse é o direito à cidade pasteurizado, desprovido de toda a sua capacidade de contribuição para uma nova hegemonia. Trata-se de uma ferramenta retórica que promove uma determinada versão da tecnocracia social, a qual, falaciosamente, se dispõe a unir a eficiência do capital com um modelo “humanizador” de gestão de cidades.
A prática, porém, evidencia a utilização de diversos meios legais e instrumentos da política urbana para conciliar os interesses privados e do estado capitalista sob os olhos da população. Ferramentas como o plano diretor, as diversas estratégias de zoneamento urbano, e até mesmo fachadas democráticas instauradas na forma de orçamentos participativos são utilizadas para fortalecer o acesso de grandes construtoras a terrenos cada vez mais desejáveis e a expulsão da população de baixa renda sob a lógica de expansão urbana.
Esse continua sendo o direito do capital à cidade, ainda que adornado de expressões sociais democráticas que apenas servem o propósito de co-optar e apaziguar a crescente inquietação da sociedade em relação à moradia, serviços públicos, qualidade de vida e até mesmo a água, como é o caso de São Paulo e muitos outros estados. Afinal, empresas como o Shopping Eldorado, Banco Safra, e a Igreja Deus é Amor recebem descontos da Sabesp de acordo com o crescimento de seu consumo.[1] Enquanto isso, moradores de bairros nobres são levados a acreditar que o problema é a duração de seu banho, e à classe trabalhadora da periferia nem é dado o trabalho da propaganda da escassez de água: seu consumo não é apenas reduzido, é eliminado, e há tempos, clandestinamente. Como em Cochabamba e em tantos outros lugares onde a água se torna descaradamente a propriedade dos ricos, São Paulo tem demonstrado que a lógica da cidade elitista adiciona mais uma camada de marginalização de direitos básicos humanos já privatizados.
O que projetos de governo chamam de direito à cidade na verdade não passa de um conjuntos de direitos urbanísticos ligados ao mercado. Afinal, poucos são os resultados da construção de ciclovias quando as demais alternativas à hegemonia do automóvel pessoal continuam sucateadas e de custo cada vez maior para a população, como é o caso do transporte público.
Capital e espaço urbano
Então qual seria o verdadeiro direito à cidade? E, talvez mais importante, como é possível alcançá-lo? A falta de direito à cidade para a classe trabalhadora e precarizada não é um acidente de planejamento urbanístico, tampouco um erro político de um governante ou outro. O direito à cidade é violado a todo momento porque sua violação é gerada pela estrutura de poder social e econômico (e em parceria com tantas outras estruturas de opressão). Não é apenas a população pobre que tem menos direito à cidade, pois se adicionamos outros fatores de marginalização e opressão, vemos que a cidade pertence ao homem capitalista branco cis e hétero, enquanto mulheres, negros e negras, indígenas, e a comunidade LGBT são excluídos sistematicamente da possibilidade de uma vida digna na cidade.
Portanto, para se falar de direito à cidade, precisamos falar do capital e da forma como o capital interage com outras estruturas para organizar a cidade (ex: periferia negra vs. centro nobre branco). Henri Lefebvre argumenta que a problemática do espaço está diretamente relacionada ao crescimento das forças de produção e as diferentes possibilidades de intervenção que seguem desse fenômeno (Lefebvre, 1991, p. 90).
Ao colocar o capital em questão como produtor do espaço urbano, de maneira a sempre tencionar dialeticamente centro e periferia, o direito à cidade é duplamente política e ciência marxista da cidade. Essa dupla função delineia a preocupação de Lefebvre, que mesmo ao advogar, talvez de forma recuada, por um contrato social entre o estado e cidadãos para assegurar o direito à cidade, estabelece que essa política não pode ser contemplada pelo contrato rousseauniano de cidadania. Tal possibilidade apenas reafirmaria direitos meramente legais e civis, os quais se encaixam fora de um horizonte revolucionário como Karl Marx demonstra em A Questão Judaica (Marx, 1994).
A política do direito à cidade deve, ao questionar o capital, transcender qualquer política organizada pela propriedade, e assim não se contentar com a emancipação simplesmente política da sociedade (domínio do liberalismo) quando é possível e desejável lutar pela real emancipação humana. No entanto, a articulação de Lefebvre por garantias formais, como no contrato, contribui relutantemente para uma plataforma política que visa reduzir o direito à cidade a um conjunto de políticas urbanas públicas e legais.
Para combater o prejuízo político de tal articulação é necessária não apenas a devoção teórica à formulação do direito à cidade que nutre uma prática transformadora, como propõe Peter Marcuse em sua leitura de Lefebvre (Marcuse, 2009). É necessária também a existência de locutores do direito à cidade como canal revolucionário, para que quaisquer propostas e reformas sejam mais que projetos de gestão e verdadeiramente contribuam para a construção de uma nova hegemonia. Aqui entram os movimentos sociais, em diálogo com partidos e sindicatos, e a ideologia revolucionária de esquerda como locutores e atores do direito à cidade.
Marcuse avalia que não é possível abordar o direito à cidade sem a ligação direta com a prática revolucionária, sendo essa uma das razões por trás da fraca utilização do conceito por instituições nacionais e globais inseridas no status quo. O trabalho crítico teórico deve se unir à prática para politizar, processo que inclui tanto a política do dia-a-dia quanto estratégias organizacionais (Marcuse, 2009, p. 194). A politização do direito à cidade trata de uma nova formulação de sociedade (construção hegemônica) e da identificação de um inimigo em comum (necessária para a contra-hegemonia). Assim, é um projeto político que só pode ser acarretado por atores políticos também engajados em processos contra-hegemônicos e hegemônicos. Aqui entra a esquerda radical e revolucionária.
Existem os atores que também são locutores específicos na pauta urbana, como os movimentos que lutam na frente do transporte público e do passe livre, e os vários movimentos de moradia, e também os atores amplos como os partidos com projeto socialista que devem se inserir também nessa pauta não só devido à sua relevância mas também devido à ampla oportunidade de politização. Alguns movimentos tratam da pauta já no contexto de reforma urbana, e buscam fazer a ponte entre tal reforma e o socialismo através da busca pelo direito à cidade.
O entendimento que gera essa posição é simples: não há luta pelo direito à cidade sem valores socialistas e não há como alcançar o socialismo sem revolução na forma como o espaço (tanto urbano como rural) é produzido. Portanto, a produção do espaço urbano necessita de atenção dos movimentos sociais, partidos socialistas, e sindicatos, assim como o chão da fábrica e a disputa de consciência política da população.
Intransigência e direitos
É claro que o processo de construção do direito à cidade trará consigo algumas contradições, como na própria negociação entre direitos imediatos e a intransigência na visão de um horizonte final. Um dos exemplos é a atual situação de dependência de programas habitacionais, como o federal Minha Casa Minha Vida, que pouco fazem em relação à crise habitacional, pois beneficiam construtoras e mantêm as oligarquias do ramo satisfeitas com seus investimentos eleitorais. Os movimentos sociais por moradia, os legítimos que não atuam como cooperativas habitacionais dos governos, são forçados a negociar por maior acesso a tais programas, que em sua essência deveriam ser estendidos com facilidade a todos, ao mesmo tempo que travam lutas mais radicais contra a privatização das cidades.
Pequenas vitórias se concretizam quando, ao menos, consegue-se a edificação de um conjunto habitacional com mais qualidade, mais estrutura de qualidade de vida, e menos lucro para as construtoras, como é o caso do condomínio João Cândido em Taboão da Serra. São passos importantes que alimentam a luta de massas por um conjunto extenso de direitos, mas que devem ser sempre subordinados à lógica de que a luta meramente por unidades habitacionais é insuficiente, já que continua inserida no espaço da propriedade privada. A casa edificada precisa ser parte do processo de politização, de forma que qualquer avanço não seja ponto de descanso mas sim evidência de que a luta de classes é o caminho para a reforma urbana, que pavimenta a transformação do espaço pelo direito à cidade, cujo tensionamento da centralidade dialética gera excessos revolucionários na construção do socialismo.
Gramsci argumenta que a intransigência é a única maneira como a luta de classes pode se expressar (Gramsci, 2000, p. 43). É a intransigência em relação ao direito à cidade que mantém a ponte aberta entre a política diária das vitórias imediatas e a revolução que se faz necessária não só por uma totalidade de direitos sociais mas como também pela reformulação emancipadora das relações e forças de produção.
Referências bibliográficas
Gramsci, A. (2000). The Antonio Gramsci reader: selected writings, 1916-1935. (D. Forgacs, Ed.). New York: New York University Press.
Lefebvre, H. (1991). The production of space. Oxford: Blackwell.
Marcuse, P. (2009). From critical urban theory to the right to the city. City, 13(2-3), 185–197.
Marx, K. (1994). On the Jewish Question. In Selected writings. Hackett Publishing Company.
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