Patrick Galba de Paula |
Neste texto buscaremos apontar alguns aspectos fundamentais sobre o movimento atual da economia brasileira, em suas principais tendências, buscando elementos para caracterizar a natureza do “ajuste” atualmente defendido em uníssono tanto pelo governo, PT e aliados quanto pela imprensa empresarial, PSDB e o restante da oposição de direita.
A situação atual: “encolhimento” do PIB com taxa de desemprego quase estável
Partimos da hipótese de que a crise internacional que explodiu em 2008 e que segue atingindo todo o mundo seja resultado das contradições fundamentais do sistema capitalista e que sua expressão mais visível se dê em torno a um processo de queda da lucratividade, determinando redução dos investimentos feitos pelos capitalistas[1].
No contexto mais recente, a economia brasileira vem de três trimestres seguidos de resultados ruins no PIB, com quedas de 0,2 e 0,6 % no primeiro e segundo trimestres de 2014, ainda que não esteja tecnicamente em recessão devido à pequena alta de 0,1% no terceiro trimestre do mesmo ano.
Vários fatores podem explicar o resultado ruim do PIB no último período. Um dos aspectos mais citados é a queda acentuada dos preços internacionais das commodities (mercadorias primárias, em geral agrícolas ou minérios, não diferenciadas por qualidade, etc), especialmente relevante uma vez que já está bem estabelecido o reconhecimento de um processo de reprimarização (aumento do peso das mercadorias primárias) da economia brasileira, em especial da pauta de exportações. A isto se soma a (até aqui) paulatina redução do crescimento da economia chinesa, atualmente a principal “parceira” comercial do Brasil. A maior expressão destes aspectos se dá no déficit da balança comercial no ano de 2014 (o primeiro desde o ano 2000), que ficou em US$ 3,930 bilhões.
Mas um fator especialmente importante é a queda dos investimentos feitos pelos capitalistas. Só no terceiro trimestre de 2014 a queda dos investimentos (chamada de “formação bruta de capital fixo” pelo IBGE) foi de 8,5% em relação ao mesmo período do ano anterior. Este ponto em geral é descrito pelos “especialistas” na imprensa como um aspecto da crise política, da má gestão governamental e da falta de “incentivos” e de “competitividade” da indústria, numa explicação circular, uma vez que ignora o fato gritante de que grande parte das dificuldades enfrentadas pelo governo neste momento decorre justamente da situação ruim da economia.
A redução dos investimentos na verdade representa a síntese entre o ponto visto anteriormente (queda dos preços de produtos primários), e o da dinâmica mais geral do modo de produção capitalista. Os capitalistas fazem planos de investimento quando tem perspectiva de conseguir (ao menos) a mesma taxa de lucros que obteriam não-realizando os investimentos produtivos (ou seja, recorrendo ao mercado financeiro). Por outro lado, para viabilizar investimentos a taxa de lucros precisa ser maior que a taxa de juros cobrada pelos banqueiros pelo capital adiantado. Portanto, salvo explicações excepcionais, a queda dos investimentos geralmente é explicada evolução das taxas de lucros obtidas pelos capitalistas em relação ao capital adiantado (e pela perspectiva de sua evolução futura). O mais provável, portanto, é que uma evolução negativa da lucratividade esteja na origem da redução do investimento na economia brasileira.
Um aspecto especialmente discutido no último pelos analistas econômicos dos capitalistas tem sido a situação do emprego. Apesar dos números ruins do PIB a taxa de desemprego medida pelo IBGE tem se mantido quase estável. Chegou a 5,3 % em janeiro deste ano, após ter atingido 4,3% em novembro de 2014[2]. Este número tem chamado a atenção por que o esperado seria que, diante dos resultados ruins da economia houvesse uma piora substancial da taxa de desemprego, o que até agora não ocorreu. Mas isto não significa que não existam demissões.
As explicações apresentadas para esta situação em geral seguem a mesma linha: Além da queda da taxa de crescimento da população, o principal fator seria a redução da parcela da população disponível no mercado de trabalho causada pelas políticas sociais do governo. As políticas de transferência de renda (como o bolsa família), de aumento do salário mínimo e de incentivo ao estudo (como os programas de bolsas, etc) teriam influenciado no sentido de retirar uma parcela da população mais jovem e das mulheres do mercado de trabalho (para estudar, ou cuidar dos filhos, por exemplo). Com isto, o número total de pessoas procurando emprego teria se reduzido e, apesar da redução da economia, o desemprego não estaria aumentando.
A preocupação dos capitalistas com esta questão é tão grande que os “analistas” da imprensa já até calcularam em “quanto estaria” a taxa de desemprego sem as “desistências” do mercado de trabalho, chegando à conclusão que possivelmente seria o dobro da atual[3].
Opinamos que esta contradição posta pelo “encolhimento” da economia por um lado, e pela manutenção da taxa de desemprego em níveis relativamente baixos por outro, é o principal problema dos capitalistas brasileiros atualmente e o que realmente está por trás da monolítica unanimidade em torno à necessidade do “ajuste”.
O ajuste: nível de emprego, crise e taxa de lucros
A economia capitalista se caracteriza, entre outras coisas, pela existência de crises cíclicas. Em geral, as contradições acumuladas em um determinado período se expressam na forma de uma crise, que gera conseqüências tais do ponto de vista do sistema que colocam as condições para um novo ciclo de crescimento, ainda que a um enorme preço do ponto de vista humano.
Na situação atual, um mecanismo pelo qual a taxa de lucros dos capitalistas poderia estar se recompondo seria o de uma redução do nível salarial produzida por um aumento da taxa de desemprego, que seria uma conseqüência “natural” da redução do nível de emprego e do aumento da concorrência entre os trabalhadores pelos postos de trabalho resultante. É possível imaginar que uma redução no nível salarial médio, mantendo-se constantes os demais fatores, possa levar a uma recomposição da taxa de lucros incentivando uma retomada dos investimentos e do crescimento, ao menos no curto prazo.
Entretanto, como este aumento da taxa de desemprego não está ocorrendo e a lucratividade do capital em crise segue em baixa, não são feitos investimentos e a economia segue em uma tendência de estagnação. Do ponto de vista dos capitalistas algo precisa ser feito. É aí que entra em cena Chicago boy Levy, convocado pelo PT para salvar a lucratividade do capital que opera por essas bandas.
O plano de Levy parece a princípio contraditório: Cortar, cortar e cortar, inclusive os investimentos, além de aumentar impostos. O governo até agora (na “primeira fase” do plano) cortou cerca de R$ 57,5 bilhões do orçamento, sendo 31% do orçamento da educação (R$ 14,5 bilhões), R$ 3,1 bilhões do orçamento do MDS (responsável pelo “bolsa família”) e R$ 7,3 bilhões do ministério das cidades (responsável pelo “minha casa, minha vida”). Os cortes atingem em média 20,3% do orçamento dos ministérios. Por outro lado pretende reduzir gastos com direitos de trabalhadores (seguro-desemprego, abono salarial e pensão por morte) em cerca de R$ 18 bilhões e aumentar a arrecadação em quase R$ 26 bilhões com elevações de impostos e da alíquota de contribuição previdenciária dos empresários, somando no total R$ 111 bilhões, buscando um superávit primário (economia total do governo antes de considerar a dívida pública) de 1,2 % do PIB. Mas se o grande problema da economia é a falta de investimentos, como um plano de redução de investimentos do governo e de aumento de impostos poderia ajudar?
Uma resposta simplista a esta questão é considerar que o governo está simplesmente atendendo aos banqueiros, fazendo economia dar uma “demonstração de intenções” clara no sentido de garantir sua remuneração. Obviamente isto não deixa de ser verdade. Mas se a questão se resume a isto, então por que não há uma revolta dos capitalistas “produtivos”, ou seja, daqueles cuja riqueza está efetivamente envolvida no processo de produção, e depende dele? Estes, por mais que estejam na oposição ao governo (de forma cada vez mais radicalizada), em momento algum questionaram o “ajuste” de Levy. Uma explicação para este fato que supere o simplismo precisará levar em conta a relação entre o encolhimento da economia e a situação do emprego.
É um fato fácil de estabelecer que as políticas sociais do governo que estão relacionadas com a redução da quantidade de pessoas disponíveis no mercado de trabalho não poderiam ser simplesmente canceladas sem um enorme custo político. Portanto, ao elaborar seu plano, Levy e o governo precisaram lidar com o fato de que a recomposição da taxa de lucros precisaria vir por um caminho que não fosse o do cancelamento em massa das políticas sociais. O governo parece então ter optado por um caminho indireto, o de buscar recompor a taxa de lucros através de uma retirada da participação do Estado no investimento (inclusive das empresas estatais, haja vista o enorme programa de “desinvestimento” anunciado recentemente pela Petrobrás).
A redução substancial do investimento público tem como objetivo final recuperar a taxa de lucro, e pode ter como efeito, em alguma medida, uma retomada do investimento privado e certo crescimento da economia. Mas o meio escolhido para alcançar tal fim é o aumento da taxa de desemprego, buscando uma redução do nível salarial como possível decorrência.
David Romer, num post-scriptum de seu Advanced Macroeconomics (2012) no qual busca inventariar o tamanho do estrago sofrido pelos principais “modelos” da macroeconomia ortodoxa após a crise de 2008, afirma que as principais conquistas da política econômica ortodoxa teriam sido “o reconhecimento da existência de uma taxa natural de desemprego, e o consenso em torno a uma expectativa razoável para esta taxa natural” (Romer, 2012, p. 644). Ou seja, uma taxa de desemprego alta o suficiente para permitir um achatamento dos salários e impactar positivamente na taxa de lucros, mas não tão alta a ponto de gerar instabilidade social e política. Que não se tenha dúvida, portanto, de que é deste jeito que pensam os autores da cartilha do mainstream ortodoxo da economia burguesa, seguida por Levy e agora endossada pelo PT.
Obviamente existe uma preocupação com a inflação, especialmente dos financistas, já que a inflação elevada pode gerar ganhos para o setor produtivo em detrimento do setor financeiro, além de certa instabilidade social. Mas a inflação pode ser combatida por outros meios, como o controle de preços. O movimento atual do governo, ao contrário, tem sido o de garantir reajustes substanciais das tarifas públicas, do preço da gasolina, do transporte público, da energia e etc. Assim, tanto as características do “ajuste” quanto o comportamento do governo não indicam que seja a inflação o principal alvo do governo.
Este ponto fica mais claro quando observamos que o clamor por uma redução do nível salarial dos trabalhadores tem sido presença obrigatória em todas as reclamações de setores da burguesia em relação à situação atual da economia, que se expressa em diversas formas, desde a reclamação em torno à “falta de empregados domésticos”, até as referentes à falta de “competitividade no custo salarial da indústria”. De modo que o que fica claro é que se a política do ajuste não é questionada por nenhum setor capitalista, nem mesmo em meio a grave crise política enfrentada pelo governo e a polarização que a caracteriza, é justamente por se tratar de uma política que os unifica e joga apenas sobre os ombros dos trabalhadores, que perderão salário e emprego, o custo da crise.
Uma “necessidade” apenas do ponto de vista dos capitalistas
Mas ao contrário de que afirmam em uníssono os “especialistas” da imprensa este “ajuste” não é uma necessidade do país, ou da economia brasileira para qualquer retomada do crescimento. Em primeiro lugar, nada garante que o efeito da drástica redução do investimento público será o esperado, muito menos duradouro no médio prazo, dado o caráter mais estrutural do movimento da taxa de lucros. Mas ainda que se ignore estas dificuldades, tais medidas só poderiam ser consideradas necessárias partindo-se de que: 1) A forma de buscar uma retomada do crescimento parta necessariamente do investimento privado, determinado pela lucratividade, e não do investimento público, e 2) Que as medidas a serem tomadas neste sentido não possam prejudicar nenhum setor importante dos capitalistas, e sim apenas aos trabalhadores (no máximo, e eventualmente, alguns capitalistas “pouco eficientes”).
Ou seja, se a economia fosse organizada de outra forma, por exemplo, se a alocação de recursos se baseasse num planejamento racional, seria possível um aumento dos investimentos públicos nas áreas mais demandadas pela população mantendo ou ampliando o nível salarial de modo a aumentar o excedente total produzido pelo trabalho, que seria re-utilizado para os investimentos, em especial se estes investimentos lograssem aumentar a participação da indústria de bens de capital no PIB. O que impede isto numa economia como a nossa é o fato de que os recursos (empresas, máquinas, etc) são privados e sua utilização só se expande se isto for interessante, no que diz respeito à lucratividade, para os seus proprietários.
Um ajuste contra os trabalhadores
É apenas por isso que, na lógica destes proprietários, de seus especialistas e do governo, muitas pessoas precisam ser demitidas e terem suas vidas destruídas, para que muitas mais aceitem salários menores, de modo que os lucros de alguns subam e a realização de investimentos privados se torne interessante novamente.
A polarização vista atualmente na política institucional e nas ruas, ao contrário do que tentam apontar os analistas ligados ao PT, não decorre de um enfrentamento entre “ricos e pobres”, ou entre a “classe média paulista” e os inscritos no programa bolsa família. Ambos os lados, governo e oposição de direita, antevêem uma piora das condições de vida da população e buscam se posicionar diante disso. O governo busca partilhar o ônus político do ajuste, mantendo-se na defensiva. A oposição de direita busca manter a polarização eleitoral enquanto puder, dado que o movimento tendencial da economia brasileira é uma piora para os trabalhadores, e diante da possibilidade de que os próximos questionamentos ao governo venham de outra direção que não aquela de suas bases de apoio, além de precisar disputar com grupos da direita extra-parlamentar (por enquanto) os setores das classes médias que atualmente se mobilizam em grande número com grande ressentimento contra o governo. Mas apesar de todo este enfrentamento e de toda polarização, nenhum personagem dentro de nenhum dos campos em luta levanta a voz contra o “ajuste” do todo poderoso ministro Joaquim Levy.
A grande tragédia da classe trabalhadora brasileira no momento presente é que estejam se enfrentando nas ruas dois campos de massas populares capitaneados por setores que são a favor do ajuste que visa aumentar desemprego e reduzir salários, disputando apenas o controle de sua aplicação. Nestas circunstâncias, é tarefa fundamental da esquerda socialista e das organizações dos trabalhadores é construir um campo político amplo, que assuma a tarefa de explicar pacientemente para os trabalhadores a verdadeira natureza do “ajuste” e de organizar a resistência contra ele.
Referência:
Romer, D. (2012). Advanced Macroeconomics, 4th Edition, New York: McGraw-Hill, 2012.
[1] Para uma visão mais geral sobre a crise atual, ver outro texto do blog Convergência: Patrick Galba de Paula. Duas interpretações da crise, dois caminhos para a esquerda. Blog Convergência, 9 jan. 2015. Disponível em: http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=2791
[2] Obviamente as taxas medidas pelo IBGE podem não expressar o peso do emprego informal e de outras variáveis, mas nenhum destes aspectos parece ser especialmente relevante para a análise do ciclo de investimento.
[3] Ver aqui: http://bit.ly/1Bc7RcY
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