Martin Swayne
Introdução e tradução: Daniela Mussi
As greves no setor aéreo são sempre motivos de descontentamento para muita gente. Aeroportos parados, voos cancelados, atrasados, etc. Muito pouco se sabe, porém, das transformações pelas quais a indústria da aviação vem passando nas últimas décadas, no Brasil e no mundo.
No artigo abaixo, escrito para refletir sobre a tragédia que chocou o mundo com queda voluntariamente provocada de uma avião no Sul da França, Martin Swayne comenta as décadas de precarização sofridas pelos trabalhadores no interior das companhias aéreas.
O autor opina como a flexibilização nos contratos, a perda de direitos, o aumento da carga de trabalho, a falta de empregos e os baixos salários contribuíram para um ambiente onde a competição entre os pilotos por uma posição é a regra e a saúde mental se converte um tabu.
Mostra, portanto, o que não podemos mais ignorar: o impacto da precarização do trabalho neste setor, bem como os efeitos da destruição e degeneração paulatina da indústria de aviação. Aponta uma lição a ser aprendida com a tragédia da Germanwings: que lutar pelo trabalho digno é lutar pela vida.
Há algumas semanas, a trágica decisão de Andreas Lubitz de morrer e levar consigo dezenas de outras pessoas a bordo do Airbus 320 da Germanwings, que ele pilotava, dominou a cobertura da mídia internacional. Apesar da investigação oficial do acidente levar meses para ser concluída, as autoridades francesas rapidamente converteram esta em uma investigação criminal e liberaram informações parciais sobre o que se passou.
Sabemos que logo após o capitão abandonar o deck do avião, Lubtiz se trancou no interior do cockpit e redirecionou a aeronave para baixo. O capitão pode ser ouvido pedindo para entrar, em seguida tentando arrombar a porta. Lubitz permanece em silêncio. Investigadores dizem que Lubitz ainda estava vivo no momento da batida por que sua respiração pode ser ouvida.
Tão logo se tornou claro que este não se tratava apenas de um trágico acidente, mas uma consciente e bem sucedida tentativa de destruir a aeronave e seus passageiros, a história ficou mais complicada. Por que um jovem como Lubitz faria uma coisa dessas?
Esta não é a primeira vez que um piloto se suicida e mata passageiros. Há menos de dois anos, algo muito parecido aconteceu no voo 470 da Mozambique Airlines. A aeronave bateu no Parque Nacional de Bwabwata, na Namíbia, matando 27 passageiros e seis membros da tripulação. De acordo com o relatório da investigação, o capitão possuía “a clara intenção” de colidir o avião, e mudou os ajustes do piloto automático depois de trancar o copiloto para fora do cockpit.
Antes disto, em 1997, houve o caso do voo 185 da SilkAir, no qual o capitão mergulhou o avião no rio Musi, na região sul de Sumatra, na Indonésia. Em 1999, todos os 217 passageiros do voo 990 da EgyptAir morreram após um acidente semelhante. As causas destes eventos não foram determinadas de maneira conclusiva, mas a hipótese mais provável é que foram assassinatos suicidas, cometidos por um dos pilotos.
Mais do que qualquer outra indústria, a aviação se constrói com base na confiança. Os pilotos confiam nos mecânicos para que façam seu trabalho corretamente, confiam nos despachantes que planejam o voo, confiam nos controladores para organizar os voos, confiam nas equipes de segurança para que impeçam armas de embarcarem, confiam na tripulação para cumprir seu dever adequadamente, e confiam na pessoa que está ao seu lado para operar a aeronave com segurança.
Existe também a confiança entre passageiros e os pilotos. Aviação é uma das formas mais seguras de transporte – estatisticamente, o translado até o aeroporto é parte mais arriscada da viagem – mas mesmo assim é compreensível que provoque ansiedade entre os viajantes. Quando esta confiança tácita se rompe, o efeito é devastador.
O tabu da saúde mental
Poucos fatos concretos são conhecidos sobre a saúde mental de Lubitz. O jornal New York Times relatou que ele “possuía uma condição médica que ocultara de seus empregadores”. Investigadores encontraram uma declaração de um médico em sua casa que autorizava sua liberação do trabalho no dia do acidente. A mídia alemã reporta que o seu treinamento chegou a ser interrompido em 2009 para que ele recebesse tratamento para depressão. Seus empregadores na Lufthansa confirmaram que ele se afastou por um tempo do trabalho, mas sem revelar as razões para tal.
Este não é o lugar para especular a respeito do estado mental de Lubitz. Como trabalhadores em todas as indústrias, os pilotos lidam com tragédias pessoais e pressões no trabalho e em suas vidas pessoais. Quando você não está bem para voar, fisicamente ou mentalmente, as normas estipulam que você deve ficar em casa. Seria justo ficar, mas o machismo é forte na aviação e a maioria dos pilotos prefere não voar devido a problemas com uma gripe forte do que admitir que estão lindando com problemas de saúde mental.
Apesar da cultura da indústria da aviação ter melhorado nas últimas décadas, problemas de saúde mental permanecem como um enorme tabu. Um dos maiores problemas é que a maioria dos pilotos que vence os obstáculos para sentar naquela poltrona (ter habilidades, dinheiro, enfrentar realocações e encontrar um emprego na área) fará qualquer coisa para manter sua posição. Sem considerar situações de luto e divórcios, é um risco admitir para os seus colegas e empregador que você está passando por problemas que não são de natureza física. O medo de perder o emprego é muito real, chega a ser paralisante.
Dos pilotos comerciais é exigido o certificado médico Class1, que precisa ser renovado todos os anos (e mais regularmente na medida em que você envelhece). Ele está no topo dos testes de proficiência, em que um examinador verifica se você está apto para o emprego. Perder ou falhar uma única vez pode levar rapidamente ao fim da carreira e do sustento.
Naturalmente, as companhias aéreas selecionam candidatos que podem lidar com as situações de estresse e pressão ao voar. Lubitz era ele próprio um produto do Treinamento de Voo da Lufthansa, uma instituição prestigiada que usa testes com simuladores de voo e de habilidades. Este exame é um dos processos de seleção mais difíceis na indústria e possui uma taxa de aprovação muito baixa. No entanto, como todos os procedimentos de seleção existentes, o teste não averigua problemas de saúde mental. Os perfis psicológicos são feitos, mas simplesmente para verificar se a pessoa se encaixa no perfil cultural da empresa.
Não existe atualmente um sistema de suporte adequado para pilotos que sofrem problemas de saúde mental, mesmo aqueles resultantes do cansaço ou de uma variedade de causas existente em qualquer área trabalho. A percepção entre os pilotos é que quem pede ajuda é colocado para fora sem qualquer esperança de voltar. Esta pressão não favorece uma saúde mental adequada para quem está sentado nos controles de um avião.
Sonhos destruídos
A percepção popular é que ser um piloto é maravilhoso, um trabalho bem remunerado. A realidade para a maioria dos jovens pilotos certificados, porem, é que a menos que você consiga economizar ao longo dos anos enquanto trabalha em outra coisa, ou tenha pais ricos, seu endividamento acumulado será de U$100.000 ou mais.
Depois da certificação vem o estresse de conseguir um trabalho em um mercado supersaturado. Um numero expressivo de pilotos qualificados nunca conseguirá chegar ao deck do avião, já que os processos de recrutamento estão estagnados desde a recessão de 2008.
Se você tiver sorte suficiente para encontrar um emprego, ele provavelmente será em uma companhia aérea de passagens e serviços mais baratos, a chamada low cost, como a Ryanair, que está varrendo o mercado europeu. Neste caso, você terá que conseguir mais U$ 30.000 para pagar por sua qualificação específica, já que o tempo em que um empregador pagaria por isso está no passado.
Ou então prepare-se para lançar sua própria “empresa”, por meio da qual você oferece seus “serviços” na regra da auto-empregabilidade (sem pensão, sem seguro de saúde, sem carga horária mínima estabelecida) – tudo isto feito para você ser enviado a uma base qualquer das companhias aéreas europeias, para ser assediado pela administração, e para ser usado o máximo possível. Não gosta? Milhares de outros estão prontos para ficar no seu lugar.
Se você mora nos Estados Unidos, você vai operar aeronaves de pequeno e médio porte até acumular pelo menos 1.500 horas de voo, e então mudar para companhias regionais, em alguns casos mal recebendo o salário mínimo. No Aeroporto Internacional de Los Angeles existem até mesmo estacionamentos com casas móveis que abrigam pilotos e mecânicos.
Mais ou menos nos últimos dez anos, o fenômeno do “pagar para voar” jogou ainda mais sal na ferida. Este é um acordo absurdo na qual pessoas desesperadas com algum dinheiro e pouco bom senso pagam a companhia para sentar nos controles no deck da aeronave.
Companhias como a Eagle Jet se beneficiam das pessoas que não conseguem encontrar um emprego na área e tem acordos com certas companhias para oferecer o “treinamento da companhia” (algo que faz parte da profissão) e vender blocos de horas de voo (normalmente 100 à 500 horas, com preços que variam até U$ 60.000). Uma vez completadas as horas, você pode ser contratado e começar recebendo um salário por um ano ou mais na empresa, mas mesmo isso não é garantido.
Uma vez vencidos os obstáculos iniciais, pilotar pode ser uma profissão muito recompensadora – mesmo nas empresas low cost – e muitas pessoas terminam por ganhar bem para si mesmas, especialmente se conseguem se deslocar para empresas legacy, de melhor padrão, em companhias como a British Airways ou Aer Lingus. No entanto, um numero crescente de pilotos fica no meio do caminho e é forçado a procurar emprego fora da aviação.
As companhias low cost iniciaram uma corrida rumo à desregulação e as empresas legacy foram forçadas a seguir este padrão. Para entender como chegou-se a este ponto, é necessário voltar algumas décadas no tempo.
Em boa parte da Europa ocidental, a maior parte dos empregos da aviação costumava ser estatal, e a categoria fortemente sindicalizada. Pilotos eram vistos como embaixadores de seus países no mundo e aproveitavam posições bem pagas e cobiçadas.
Então veio a privatização e a desregulamentação. Governos passaram a vender seus investimentos para os acionistas públicos, e o lucro se tornou o único guia. Qualquer um poderia começar uma companhia aérea para voar no interior da União Europeia (UE). E eis que se descobriu que a aviação era uma indústria “vocacional”; as pessoas estavam dispostas a vender suas avós para crescer no ramo.
A expansão da UE nos países mais pobres auxiliou esta corrida pela desregulamentação, com o tráfego circulando nos dois sentidos. Os modelos de viagem para feriados mudaram do formato de saídas mais longas para folgas curtas e viagens espontâneas. A maior parte das companhias sofreu com isso e precisou responder. Elas perceberam que as tripulações aceitariam termos e condições piores nestas empresas de estilo vem-e-vai, então impuseram cortes de pessoal.
Este processo ainda está acontecendo na Lufthansa, o empregador de Lubitz. A Lufthansa é uma empresa nacional tradicional, mas para poder se manter competitiva em um mercado extremamente violento, ela resolveu se ramificar e desenvolveu uma subsidiária low cost, a Germanwings.
Os trabalhadores da Lufthansa e da Germanwings não são representados pelas mesmas mesas de negociação sindical coletiva, e estão sujeitos a um sistema de benefícios hierarquizado que separa os pilotos antigos das novas contratações. No último ano, membros do Vereinigung Cockpit, o sindicato dos pilotos, fizeram greve em oposição a esta disparidade, bem como aos planos da Lufthansa em expandir-se por meio deste modelo de fragmentação da empresa e não sindicalização da categoria.
Rejeitando o vácuo social
Não está claro o quanto Lubitz tinha consciência ou foi afetado por qualquer uma destas coisas. O que está claro é que ele vivia neste contexto social – caracterizado por sindicatos fracos ou inexistentes, condições de trabalho pobres, e por uma baixíssima situação moral – e que chegou a um nível patológico de alienação social.
O ponto não é justificar as ações de Lubitz, mas procurar entender por que um ser humano poderia se comportar desta maneira, bem como prevenir tragédias semelhantes no futuro. Nas últimas décadas, este se tornou o objetivo das investigações sobre acidentes na aviação: não sobrecarregar a culpa em um indivíduo particular, mas buscar o encadeamento de fatos que podem ensinar lições. De maneira semelhante, não deveríamos balançar os ombros e declarar Lubitz um “homem louco” ou uma “maçã podre” que vivia em um vácuo social.
Nos deveríamos, ao contrário, situar as ações de Lubitz em um contexto tanto de degradação do trabalho experimentada por pilotos, como de degeneração profunda da indústria da aviação. Análises ultra individualizadas das causas e do efeitos não vão nos levar muito longe.
(Publicado originalmente na Jacobin Magazine.)
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