Marcia Camargos
Polêmico, contraditório e estridente. Se Assis Chateaubriand Bandeira de Mello costuma ser caracterizado por tais adjetivos, não é de se estranhar que um filme sobre a sua trajetória de vida também o seja. A começar pelo tempo que levou para ficar pronto. Não se tem notícia, na historiagrafia da sétima arte, de uma produção que consumiu duas décadas para chegar aos cinemas. Neste sentido, o filme que teve a avant prémière no Cinemax do Shopping Eldorado, na capital paulista, numa exibição especial só para convidados, faz jus ao personagem.
Nascido em 4 de outubro de 1892 em Umbizeiro, na Paraíba, este misto de empresário, jornalista, mecenas e político que se fixou em São Paulo, projetou-se como um dos homens públicos mais influentes do país entre 1940 e 1960. Também advogado, professor de direito, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, além de senador da República entre 1952 e 1957, destacou-se como magnata das comunicações à frente dos Diários Associados, o maior conglomerado de mídia da América Latina. No seu auge contou com mais de cem jornais, emissoras de rádio e TV, revistas e agência telegráfica. Mas não foi só. Um dos articuladores e fundador, em 1947, do Museu de Arte de São Paulo (MASP), junto com Pietro Maria Bardi, tornou-se célebre pela falta de escrúpulos tanto nos negócios quanto no ambiente familiar. Para instituir a coleção do museu que resolveu implantar, não hesitava em recorrer aos métodos mais heterodoxos e, no limite, até mesmo criminosos, no afã de levantar verba destinada à construção do prédio e aquisição das obras de arte. Dispondo da primeira emissora de TV nacional, a Tupi, inaugurada em 1950, costumava estorquir as rodas endinheradas e ameaçar os opositores, granjeando poderosos inimigos. Odiado e temido, chamado de Cidadão Kane tropical, celebrizou-se por chantagear e insultar burgueses que não anunciavam em seus veículos ou por algum motivo não colaboravam espontaneamente em suas campanhas.
Crime e castigo
Com um elenco de estrelas globais do primeiro time, em interpretações magistrais, incluindo Leitícia Sabatella, Marco Ricca, encarnado o protagonista, Andrea Beltrão, Leandra Leal, Eliane Giardini, Walmor Chagas, José Lewgoy e Paulo Betti no papel chave de Getúlio Vargas, o drama dirigido por Guilherme Fontes, ele próprio ator, deu o que falar. Retratando o figurão, que passeia pela telona a partir de um AVC, delirando em um julgamento, onde antigos amores e desafetos se unem para o acerto de contas que precede o Juízo Final, o filme começou a ser produzido em 1995, sendo interrompido em 1999. Acabou engavetado devido à suspeita de que, nesta tentativa de lançar-se como diretor, Fontes tenha se envolvido em um grande escândalo de mau uso de verbas governamentais destinadas ao cinema e à cultura. Em 22 de fevereiro de 2008 a Controladoria-Geral da União (CGU) determinou que ele e sua sócia na firma, devolvessem aos cofres públicos o valor de R$ 36,5 milhões, após uma auditoria constatar irregularidade nas contas, ao longo do processo instaurado pela Ancine. O diretor estreante seria condenado a três anos de reclusão por sonegação fiscal na 19ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, mas teve a pena convertida em trabalho comunitário de sete horas semanais, além do pagamento de 12 cestas básicas de R$ 1 mil para instituições sociais do Estado. Em 2014, Fontes seria mais uma vez sentenciado a devolver R$ 66,2 milhões aos cofres públicos, acrescidos de multas, mas informou que pretendia recorrer da decisão.
“Aos amigos e aos fãs respondo mais uma vez: lutarei contra toda e qualquer violência contra minha pessoa. E esta me parece ser mais uma”, defendeu-se, em nota à imprensa, para acrescentar: “Mas vamos falar de flores: antes do Natal, iniciaremos o lançamento do filme. A partir de dezembro inicio o primeiro dos 10 previews oficiais que faremos em todo o Brasil”.
Para além destas coincidências que envolvem acusações sobre manipulação, desvio de verbas e muito debate, o filme traz outros traços em comum com o protagonista. Ele é exagerado, usa e abusa das riquíssimas reconstituições minuciosas, e decerto milionárias, que tanto devem ter pesado no orçamento e sangrado os cofres públicos, no setor de incentivo ao cinema. Não por acaso, na apresentação para uma plateia composta de intelectuais e outros formadores de opinião, Fernando Morais, em cujo best seller Fontes inspirou-se, comparou a verdadeira saga do longa à epopéia de Fritzcarraldo. Como se sabe, o dublê de louco e visionário irlandês, imortalizado por Werner Herzog e Klaus Kinski, na sua espetacular interpretação, enfrenta mundos e fundos para transportar a qualquer custo uma embarcação morro acima. Assim ele pretendia acessar uma área rica em seringais produtores de borracha, na Bacia Amazônica, num empreendimento fadado ao fracasso. Na ocasião, o escritor tinha a clara intenção de louvar a tenacidade de Fontes, que teria lutado como um tigre para transformar seu sonho em realidade. Mas após assistir ao drama de 102 minutos, as palavras de Fernando passaram a evocar a megalomania quase irresponsável que une Fritzcarraldo e Fontes. O primeiro, sacrificando vidas em nome do seu sonho maluco e o segundo, drenando dinheiro dos impostos para levar à tela um filme que poderia ter sido feito com menores recursos se a ambição não fosse desmedida. Explico: o diretor optou por uma linha alegórica e levemente barroca, em que Chatô surge como um cangaceiro não raro fazendo papel rocambolesco de palhaço,, num tom estriônico de folhetim televisivo.
Delírios retumbantes
Fanfarrão, legítimo representante da burguesia nacional, Chatô gostava de assumir a condição de provinciano que chegou ao centro do poder como uma espécie de bucaneiro político, um jacobino às avessas. E o filme mostra, sem meias tintas, a construção do seu império com base em interesses e compromissos políticos, incluindo uma proximidade tumultuada, porém rentosa, com o Presidente Getúlio Vargas. Exibe a face do homem promíscuo, de apetite sexual insaciável, que tomava injeções diárias de um produto antecessor do Viagra. Longe de qualquer noção de respeito, tratava trabalhadores com o mesmo autoritarismo sem limites de um capo da máfia do capitalismo mais selvagem. Todos ao seu redor, sem exceção, existiam apenas para servi-lo e atender aos seus caprichos. Com os filhos, suas relações foram igualmente conturbadas e repletas de grandes conflitos e separações radicais. Casou-se apenas uma vez, com Maria Henriqueta Barroso do Amaral, filha de um juiz, e com quem teve três filhos. Em 1934, aos 42 anos, desquitou-se e uniu-se a uma jovem de nome Corita, de apenas 16 anos. Abandonado pela mulher, Chatô chega a sequestrar a filha.
Como se fosse pouco, aproveitou-se da intimidade com Vargas para, durante o Estado Novo, arrancar dele a promulgação de um decreto que lhe daria direito à guarda definitiva da menina. Vitorioso, profere então uma frase emblemática do seu estilo personalista de anti-herói burguês: “Se a lei é contra mim, vamos ter que mudar a lei”.
Talvez devido à convivência diária com o Maquiavel tupiniquim, Fontes tenha assumido como seu o dinheiro público a que teve acesso para dar vazão aos delírios retumbantes do personagem, com o qual parece se identificar. Os excessos do protagonista não precisariam, necessariamente, escorrer para seu equivalente em película, que demandou quantias vultosas em cenários e figurinos de época. Sobram tomadas externas, com ruas, bairros e cidades reconstruídas, e falta uma certa coerência narrativa necessária ao se contar uma história. Vale lembrar que nem todos estão familiarizados com a trajetória de Chatô e seu respectivo período. Até sua caracterização, desde o início do filme, preso a uma cadeira de rodas devido ao seu estado de semi paralisia, após uma trombose tê-lo deixado capaz de comunicar-se apenas por balbucios e por uma máquina de escrever adaptada, confunde os mais incautos. Não poucos podem ser levados a acreditar que ele passou assim a maior parte da vida, quando, na verdade, o incidente ocorreu em 1960, oito anos antes da sua morte.
Entre inúmeros outros deslizes, tal detalhe desvirtua a realidade e compromete a trama, mesmo sendo esta, uma “fantasia bio-tropicalista”, como afirmou o crítico Aimar Labaki. Seja lá o que isto signifique, a meu ver Fontes ficou muito aquém das suas pretensões. Não inovou na linguagem nem teve a sábia humildade de seguir caminhos menos tortuosos para, numa segunda tentativa, quem sabe dar saltos mais ousados com maior segurança. Por enquanto, fica esta colagem que se perde entre a arrogância desmedida e o desejo de dar um passo maior do que as pernas. Não diria que, depois de 20 conturbados anos, a montanha tenha parido um rato, mas me recuso a taxar de genial uma produção pós moderna, tentando transitar entre Glauber Rocha, Oswald de Andrade e Almodavar, sem conseguir estabelecer um diálogo nem superar qualquer deles. Sem falar na imoralidade do fato de que, com o dinheiro gasto, seria possível realizar mais de 15 longa metrangens, em um país como o nosso, onde cineastas perambulam de chapeu em punho.
Em tempo: Fernando Morais pede para avisar que, por meio de uma notificação extrajudicial, dois netos de Assis Chateaubriand estariam tentando proibir a estreia do filme, sob a alegação de que, nele, o avô é acusado de matar o presidente da República e de seduzir e estuprar uma menor de idade. Nao sabemos o desfecho desta história, mas prevejo que não terá final feliz…
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