Frederico Costa |
O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno[…] Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde. Compreender o fenômeno é atingir a essência.
Karel Kosik
O senso comum, sob a divisão do trabalho típica do regime capitalista, procura esquartejar a obra marxiana em diversos momentos isolados. Marx torna-se economista, sociólogo, historiador, revolucionário ou filósofo, ao sabor dos seus intérpretes. Tal postura não é privilégio dos chamados “especialistas”, produzidos em série por uma universidade cada vez mais subordinada às necessidades do mercado. Até Franz Mehring, por exemplo, brilhante biógrafo de Marx[1] e membro destacado da ala esquerda da social-democracia alemã nas primeiras décadas do século XX, negava, “que o marxismo tenha alguma coisa a ver com a filosofia” (LUKÁCS, 1979: 31).
No entanto, não encontramos em Marx e Engels a perspectiva de estabelecer fronteiras rígidas entre os diversos campos do saber da realidade humana. Em suas obras as reflexões antropológicas, sociológicas, políticas, econômicas e até estéticas, estão profundamente vinculadas a uma malha de conexões que tem com cerne uma ontologia do ser social, fundada no trabalho como o motor primeiro do processo de autocriação do gênero humano. Daí Lukács afirmar que:
[…] qualquer leitor sereno de Marx não pode deixar de notar que todos os seus enunciados concretos, se interpretados corretamente (isto é, fora dos preconceitos da moda), são entendidos – em última instância – como enunciado sobre um determinado tipo de ser, ou seja, são afirmações ontológicas (idem, 1979: 11).
Explicitado o caráter ontológico das reflexões marxianas, fica mais evidente a utilização por Marx das categorias reflexivas fenômeno-essência, típicas da ontologia, para a apreensão da processualidade do real a ser desvendada.
A revolução teórica provocada por Marx ao demonstrar a radical historicidade do ser, em especial na esfera social, deu um novo enfoque à polaridade fenômeno-essência. Enquanto nas ontologias tradicionais ou não-críticas (aristotélica, medieval e moderna) o fenômeno tinha um estatuto periférico diante da essência, imóvel e anistórica (ordem cosmológica, Deus, natureza); para a ontologia materialista-dialética ou crítica o fenômeno e a essência têm o mesmo peso ontológico, diferenciando-se apenas na particularidade dos processos concretos: a essência é o locus da continuidade do processo, o fenômeno expressão da singularidade dos momentos do processo[2].
Como o propósito de Marx em O Capital foi “por a descoberto as leis do movimento que regem as origens, o desenvolvimento, a decadência e desaparecimento de uma forma social dada de organização econômica” (MANDEL, 1985: 10), não poderia deixar de trabalhar com as categorias de fenômeno e essência.
É o que procuraremos demonstrar com relação ao estudo da mercadoria feito por Marx em O Capital.
O ponto de partida: a mercadoria
Marx inicia o estudo do modo de produção capitalista pela mercadoria. Tal escolha não é arbitrária. Antes de tudo, é uma exigência ontológica. Para compreender os fundamentos da sociedade moderna deve-se partir dos homens reais e de suas relações concretas. E, o traço mais característico e cotidiano do capitalismo é o domínio universal das relações monetário-mercantis, que perpassam todos os aspectos da sociabilidade burguesa. Praticamente tudo é passível de tornar-se mercadoria: legumes e máquinas, pregos e fábricas, livros e milhões de outros objetos. De fato, as pessoas encontram-se imersas num oceano infindável de mercadorias. Portanto, as mercadorias são a partícula mais comum e elementar da riqueza da sociedade burguesa, ou seja, a mercadoria é a célula econômica do capitalismo. Daí o início de O Capital ser enfático:
A riqueza em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’ e a mercadoria individual como sua forma elementar. Nossa investigação começa, portanto, com a análise de mercadoria (MARX, 1996: 165).
Ao analisar a mercadoria, Marx inicia com uma impostação ontológica ao dizer que, “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo” (1996: 165). Depois, exprime que, a mercadoria, por suas propriedades, pode satisfazer as necessidades materiais ou espirituais como objeto de consumo ou meio de produção. Pois, cada objeto externo “é um todo de muitas propriedades e pode, portanto, ser útil, sob diversos aspectos” (1996: 165). Porém :
Descobrir esses diversos aspectos e […] os múltiplos modos de usar as coisas é um ato histórico. Assim como também o é a descoberta de medidas sociais para a quantidade das coisas úteis. A diversidade de medidas das mercadorias origina-se em parte da natureza diversa dos objetos a serem medidos, em parte de convenção (1996: 165).
Noutras palavras, revela-se o caráter essencialmente histórico do mundo dos homens e do seu metabolismo com a natureza. As qualidades dos objetos externos já existem em seu em-si, independente da vontade humana, a maleabilidade dos metais ou a capacidade alimentícia de alguns cereais, por exemplo. E, é pela atividade humana que são conhecidas suas qualidades e os modos de a usarem, sendo fruto de uma atividade histórica. À medida que a sociedade se desenvolve e as capacidades humanas se ampliam, os homens conhecem melhor as propriedades das coisas e descobrem os métodos mais variados da sua utilização. Daí a diversidade de medidas das mercadorias ser a plasmação da causalidade natural (“natureza diversa dos objetos”) e da atividade humana orientada (“convenção”).
Ressaltado o caráter histórico da utilidade dos objetos externos, Marx passa para a definição de valor de uso ou bem, como a utilidade de uma coisa determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, que não depende de se a apropriação de suas propriedades úteis custa ao homem muito ou pouco trabalho, realizando-se somente no uso ou no consumo. E que:
Os valores de uso constituem o conteúdo material da riqueza qualquer que seja a forma social desta. Na forma de sociedade a ser por nós examinada, eles constituem, ao mesmo tempo, os portadores materiais do – valor de troca (MARX, 1996: 166).
Na economia mercantil-capitalista o valor de uso: 1) não serve para satisfazer as necessidades do seu produtor, mas de outros membros da sociedade; 2) só pode realizar suas qualidades depois de passar através do processo da troca; 3) é o portador material do valor de troca da mercadoria.
Até aqui, Marx movimenta-se na esfera fenomênica, na superfície da economia capitalista, contudo ao dizer que:
O valor de troca aparece, de início, como a relação quantitativa a proporção na qual valores de uso de uma espécie se trocam contra valores de uso de outra espécie, uma relação que muda constantemente no tempo e no espaço (1996: 166).
Fica claro que a expressão “aparece, de início” refere-se ao superficial, à esfera da aparência do processo a ser apreendido, o mecanismo oculto, que faz com que os objetos externos se tornem mercadorias. Por isso, MARX diz que a relação mercantil, “parece […] algo casual e puramente relativo; um valor de troca imanente, intrínseco à mercadoria” (1996: 166). Porém, olhando a coisa mais de perto, nota-se que a aparente casualidade do é devida a sua variabilidade no tempo e no espaço. Eliminemos a mudança no tempo e no espaço. O que fica?
[…] primeiro: os valores de troca vigentes da mesma mercadoria expressam algo igual. Segundo, porém: o valor de troca só pode ser o modo de expressão, a “forma de manifestação” de um conteúdo dele distinguível (idem, 1996: 166).
Do que foi dito, fica demonstrado de que não há casualidade no valor de troca, ela é pura aparência. Mas, o que é que se manifesta sob a forma de valor de troca? Demos a palavra a Marx:
Tomemos ainda duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. Qualquer que seja sua relação de troca, poder-se-á, sempre, representa-la por uma equação em que dada quantidade de trigo é igualada a alguma quantidade de ferro, por exemplo, 1 quater de trigo = a quintais de ferro. Que diz essa equação? Que algo em comum da mesma grandeza existe em duas coisas diferentes, em 1 quater de trigo e igualmente em a quintais de ferro. Ambas são, portanto, iguais a uma terceira, que em si e para si não nem uma nem outra. Cada uma das duas, enquanto valor de troca, deve, ser redutível a essa terceira (1996: 167).
Essa terceira coisa que deve ser “algo comum, do qual eles representam um mais ou um menos” (MARX, 1996: 167), não é nenhuma das propriedades corpóreas da mercadoria por que estas só conferem utilidade à mesma, tornando-a valor de uso. E:
é precisamente a abstração de seus valores de uso que caracteriza evidentemente a relação de troca das mercadorias. Dentro da mesma um valor de uso vale exatamente tanto como outro qualquer, desde que esteja disponível em proporção adequada (MARX, 1996: 167).
Abstraindo-se do valor de uso das mercadorias resta uma propriedade que é comum a todas, a de serem produtos do trabalho. Porém, ao se abstrair o valor de uso das mercadorias, suas qualidades sensoriais se apagam, não são mais coisas úteis produzidas por trabalhos específicos:
Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados, e desaparecem, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferencia-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato (idem, 1996: 168).
Chega-se assim ao trabalho abstrato, “o qual constitui a substância dos valores de troca, é trabalho humano igual, dispêndio da mesma força de trabalho do homem” (idem, 1996: 168). Assim, chegamos ao fim do movimento dialético que foi da aparência das mercadorias – valor de uso e valor de troca -, se deteve no valor de troca, aparentemente casual e relativo, para compreendê-lo enquanto manifestação do valor, que tem como substância o trabalho abstrato.
Conclusão
Esse movimento que vai do aparente ao essencial, do abstrato ao concreto, embora seja subjetivo, expressa relações reais, ontológicas, pois as categorias são formas de ser.
Essa postura filosófica que nasce da inversão materialista da dialética hegeliana está presente no conjunto da obra O Capital, que é construído onto-metodologicamente sobre o par reflexivo fenômeno-essência presente nos processos do ser social capitalista. Daí a presença constante de termos que expressão tal conexão como: mundo da aparência/mundo real, aparência externa dos fenômenos/lei dos fenômenos, existência positiva/núcleo interno, movimento visível/movimento real interno, representação/conceito, falsa consciência/consciência real.
Referências Bibliográficas
LESSA, S. Lukács e a ontologia: uma introdução. Outubro, Revista do Instituto de Estudos Socialistas, São Paulo, 5: 83-100, 2001.
LUKÁCS, G. Ontologia do ser social. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
MANDEL, E. El Capital, cien años de controversias en torno a la obra de Karl Marx. México: Siglo Veintiuno editores, 1985.
MARX, K. O capital. Crítica da Economia Política. Vol 1, Tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
MEHRING, F. Carlos Marx, el fundador do socialismo científico. Buenos Aires: Editorial Claridade, 1943.
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[1] Ver Franz MEHRING, Carlos Marx, el fundador del socialismo científico, 1943.
[2] Sobre as categorias fenômeno e essência na perspectiva da ontologia marxista ver Sérgio LESSA, Lukács e a ontologia: uma introdução, 2001, p. 92-94.
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