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TEORIA

A Pedagogia das Escolas Ocupadas e a esperança secundarista nas escolas técnicas e estaduais: Muito além da merenda!

Michelangelo Marques Torres  |

“Uh, bateu a onda forte. É escola ocupada na Zona Sul e na Zona Norte”

“Não dá pra aprender com fome”

“Indignação gera ocupação”

Palavras de ordem dos estudantes secundaristas em escolas ocupadas

O ano de 2016 parece ter iniciado em ambiente explosivo, em clima de ondas fortes: confluência de crise econômica, política e social em contexto de amplas lutas sociais. Os governos de colaboração de classes de Lula/Dilma deram continuidade à política econômica que imperialismo impôs aos Estados nacionais, chegando ao limite de seu ciclo e regulação social. No campo educacional, a situação dramática da educação pública se agrava com os imperativos do ajuste fiscal decorrentes da política econômica neoliberal. Em perspectiva comparada, os investimentos de recursos financeiros na educação pública, em todos os níveis de ensino, são pífios em relação a outros países1. Agrava-se o quadro, especialmente quando se leva em conta as degradantes e pracarizadas condições de trabalho docente, com níveis de adoecimento laboral incomparáveis. Os modelos privatistas e de gestão empresarial do ensino, a exemplo do Plano Nacional de Educação em vigência, fortalecem a mercantilização do ensino e a lógica do privatismo. Nesse sentido, parece explodir a luta em defesa da escola pública de qualidade.

A exigência pela participação ativa na política e o descontentamento generalizado com aspectos do regime explodiram nas jornadas de junho de 2013. Nos últimos dias, em verdade desde fins de 2015, ganha visibilidade na juventude um antigo método de luta, desta vez impulsionado pelos estudantes em suas próprias escolas: o método de ocupações. Os estudantes secundaristas vêm desafiando os governos e divide o apoio popular. A juventude descobre a dimensão de sua força à medida em que se põe em movimento. A valentia dos estudantes de SP, RJ, CE, MG e outras localidades (que ganham amplitude, inclusive internacional, como é o caso do Chile e Paraguai), é a sua principal arma. E parecem ganhar confiança em si mesmos a cada nova ocupação, seguida da repressão policial truculenta que não os dispersa.

O contexto

No ano de 2014, o Governo tucano enfrentou uma longa greve de professores e funcionários técnico-administrativos do Centro Paula Souza2, sendo obrigado a implantar um plano de carreira para a categoria negociado com o SINTEPS (o sindicato dos trabalhadores do Centro Paula Souza), ainda que com aspectos defasados em relação às reivindicações da categoria, conforme anunciou a Oposição Sindical. Já em 2015, o mesmo antidemocrático Governo Alckmin enfrentou uma das mais longas e desgastantes greves do professorado da rede pública estadual, derrotando o movimento docente dirigido pela APEOESP. Na sequência, o então secretário de Educação Herman Voorwald anunciou uma nefasta medida de “reorganização do ensino” que previa o fechamento de sala de aulas, transferência de estudantes entre unidades, demissão de professores (especialmente os “categoria O”3) e superlotação de salas de aula, sobretudo na modalidade EJA. No entanto, o movimento de ocupações de escolas, que em SP chegou a centenas unidades ocupadas, animado por estudantes secundaristas, derrotou a medida governamental4, caindo o próprio secretário de Educação e membros de sua gestão.

Em 2016, a juventude retomou as mobilizações em torno de pautas democráticas contra os projetos governamentais de desmonte e precarização do ensino público. No caso de São Paulo, os estudantes secundaristas se dispuseram a sair das salas de aulas. Inicialmente com marchas e atos públicos de rua, desembocaram uma retomada da onda de ocupações estudantis de escolas públicas, desta vez envolvendo Escolas Técnicas (gerenciadas pelo Centro Paula Souza) e escolas da rede estadual (sob administração da Secretaria de Educação). No dia 28 de abril, após uma manifestação contra a máfia da merenda5 realizada na Avenida Paulista e região central de SP, a sede administrativa do Centro Paula Souza foi ocupada espontaneamente pelo movimento estudantil, reivindicando merenda/refeição nas unidades de ensino, melhores condições de infraestrutura e contra os cortes orçamentários na educação pública. Na sequência uma série de ocupações em Escolas Técnicas e estaduais se desencadearam dia após dia.

No caso das Etecs, a expansão e interiorização desenfreada, de maneira eleitoreira, sem o acompanhamento das devidas condições necessárias para a implementação de novas unidades, fez a rede duplicar nos últimos anos. De 2006 a 2014, o número de Escolas Técnicas estaduais, em SP, saltou de 126 para 217 unidades. Qual a mágica da expansão quantitativa sem qualidade, senão a precarização das condições de trabalho docente e dos funcionários técnico-administrativos, as parcerias público-privadas e o sucateamento de investimento em muitas das unidades?

As ocupações, além de reivindicarem merenda nas escolas, denunciam o desvio de verbas orçamentárias – como o roubo de merenda – na gestão de Geraldo Alckmin (PSDB), o qual, imediatamente, enviou o secretário de Segurança Pública para repreender os estudantes ocupados, por meio da Tropa de Choque e do comando da Polícia Militar, ainda que sem ordem judicial. Sem sucesso na empreitada, o governo acionou novamente a justiça e conseguiu a ordem de reintegração da sede administrativa do CPS permitindo o uso de armas letais na desocupação. Mas os estudantes foram fortes, não arredaram o pé. As ocupações parecem se estender para outras escolas, à escala de dezenas.

Até o fechamento deste artigo haviam sido ocupadas 20 escolas em SP, incluindo a referida Sede Administrativa do CPS, diretorias de ensino da rede estadual e escolas técnicas e estaduais. O Estado do RJ dispunha de mais de 70 escolas ocupadas em apenas um mês. As ocupações avançavam em demais estados, como já era o caso do Ceará e Minas Gerais. Os estudantes universitários também seguiram a onda de ocupações de universidades estaduais, como o caso da Unicamp, na Faculdade de Educação, logo após a recusa do secretário de Educação em dialogar com o movimento estudantil.

A juventude secundarisrta, ansiosa por reinventar a metrópole, não confia nos governos do PSDB de Alckmin nem no PT de Dilma, rechaçando com razão, inclusive, o aparelhamento de organizações que compõe o núcleo central de apoio ao governo do PT6 ou da Oposição de Direita. Trata-se de um elemento progressista, mas que se confunde, por vezes, com o “fora partidos” e “fora organizações”, configurando, de tal modo, um instinto não-progressivo, cujo comportamento pode fragilizar o movimento. Ainda que muitos dos jovens demonstrem a preocupação de que não querem ser dirigidos por aparelhos políticos, discursando no intuito de que não há lideranças ou direções, é importante se ter clareza que o apoio das bandeiras da esquerda é fundamental no intuito de ajudar os estudantes secundaristas a encontrar e fortalecer sua própria auto-organização. Contudo, o questionamento a direções não pode servir de argumento para desqualificar o movimento de ocupação de escolas, como querem alguns. As ocupações são também espaços de aprendizado coletivo e de manifestação de posições políticas. Não há luta social que não seja política. Sendo assim, o apoio das bandeiras de esquerda apenas fortalece as ocupações, como as organizações políticas classistas e independentes de governos e patrões, movimentos populares, organismos de direitos humanos, assessoria jurídica popular e imprensa. As ocupações estudantis não estão isoladas das demais lutas sociais. A pauta em defesa da educação pública de qualidade para as famílias dos trabalhadores é parte da luta pela transformação da sociedade e pressupõe o questionamento dos ditames do capital no campo educacional.

Como lembrou, certa vez, Lenin (1986), “(…) em primeiro lugar, estão a ver, é preciso fechar os olhos ao facto de que os estudantes não estão cortados do resto da sociedade e por isso reflectem sempre e inevitavelmente todo o agrupamento político da sociedade”. Por isso, os estudantes secundaristas devem ter o apoio de todos aqueles e aquelas que lutam por outra ordem social. Importante se tirar propostas unificadas do movimento de ocupações secundaristas e avançar na construção de organismos democráticos de representação das escolas mobilizadas enquanto interlocutor com o governo e a sociedade. E que as decisões passem pelo crivo das assembleias estudantis. Mas para que se fortaleça de fato, é preciso se interligar o movimento estudantil com outras lutas em curso, inclusive em unidade com outros setores.

O desmonte da escola pública e a ofensiva neoliberal na educação representa uma vitória do capital em oposição aos interesses dos trabalhadores e de seus filhos. A escola pública regular, convertida em depósito de seres humanos, e o ensino técnico e profissional, conversor de força de trabalho aligeirada e semi-qualificada conforme os interesses do mercado flexível (que requer o ensino por competências e habilidades), constituem o projeto do capital em sua fase contemporânea de crise. No caso das Escolas Técnicas estaduais, em que o vestibulinho seleciona um perfil estudantil não-periférico nas melhores escolas7, preparar-se-ão os estudantes para o vestibular universitário competitivo, reforçando, assim, o dualismo estrutural na educação brasileira – em que os filhos dos trabalhadores são “preparados” para o mercado e os filhos da classe média e dos setores privilegiados ingressam no ensino superior. No caso da periferia e do povo pobre, se quiserem estudar numa faculdade, a juventude trabalhadora terá que estudar em instituições privadas e em período noturno, com duvidosa formação de qualidade, e compatibilizar o tempo de estudo com o de trabalho, geralmente precarizado.

O ponto de partida: a indignação

A transitoriedade da impaciência para a inquietação, e desta para a indignação, é latente na juventude secundarista e nas novas gerações. É isso que os põem em luta pela escola pública e por uma nova forma de participação política. É sabido que a radicalidade estudantil emerge de tempos em tempos (lembremos Maio de 1968 na França, as assembleias livres e ocupações estudantis pós-25 do abril português; no caso brasileiro, vale a lembrança da presença da juventude na campanha pelas Diretas Já, no “Fora Collor” e nas jornadas de junho de 2013 – em que foram protagonistas). No período recente a juventude se apresenta como protagonista de inúmeras lutas sociais, como o caso da luta pelo “passe livre” e o movimento de ocupações de escolas por secundaristas, para ficarmos com dois exemplos emblemáticos.

A autodeterminação dos estudantes contagia. Há uma disposição de luta que emerge espontaneamente junto com a coragem de enfrentamento que a geração de seus pais parece desconhecer. A luta pela merenda e o descontentamento com o escândalo de desvio de verbas públicas é apenas a fagulha, a gota d’água. A juventude luta pela escola pública de qualidade, por uma escola democrática e participativa, por outros modelos de gestão, contra o governo que não a representa. Desconfiam da imprensa burguesa e de lideranças em negociações com o governo8. Influenciados por movimentos autonomistas, de caráter neoanarquista, se propõem a fugir dos métodos de organização tradicionais da esquerda. Realizam jograis, assembleias livres, reivindicam a não-representação de lideranças e princípios de auto-gestão, mobilizam-se pelas redes sociais, refutam a imprensa midiática (preferem dialogar com a chamada “imprensa livre” e alternativa). As ocupações são organizadas por comissões eleitas em assembleias. As entradas e portarias são fiscalizadas por estudantes responsáveis pela comissão de segurança. Inúmeros estudantes de outras escolas aparecem para integrar o grupo, em solidariedade. Há equipes responsáveis pela comunicação. As redes sociais e os aplicativos de celulares cumprem um papel fundamental na divulgação de informações e criação de redes de solidariedade. Criação de pequenos organismos decisórios independentes de democracia direta ocorrem cotidianamente. Trata-se de uma verdadeira escola de organização. É dessa experiência prática compartilhada “no chão da escola” e das ocupações que germina a possibilidade e necessidade imperiosa de se criar seus próprios organismos de decisão, vislumbrando a possibilidade (no plano do imaginário-ação), dos próprios trabalhadores se auto-organizarem em seus próprios organismos e conselhos populares.

Muitos professores e membros da comunidade escolar assistem desconfiados a luta das novas gerações, sem entende-las. Esquecem a assertiva segundo a qual os indivíduos são produtos da educação e das circunstâncias, e que a mudança de circunstâncias e da educação são determinadas pelos homens, pressupondo a necessidade de que “o próprio educador precisa ser educado” (MARX, 1982). A pedagogia das escolas ocupadas explicita o ensinamento de que a velha escola já não interessa. Os velhos métodos de ensino carecem de atualização. A tradicional gestão das unidades escolares sucumbiu. O modelo das políticas neoliberais na educação não serve. Por isso os estudantes convocam a necessidade de apoio e solidariedade de seus professores.

A dificuldade de entender a luta das novas gerações advém da força da alienação da vida resignada. Como observou o filósofo húngaro Mészáros (2008, p.17):

Vivemos atualmente a convivência de uma massa inédita de informações disponíveis e uma incapacidade aparentemente insuperável de interpretação dos fenômenos.

Vivemos o que alguns chamam de “novo analfabetismo” – porque é capaz de explicar, mas não de entender -, típico dos discursos econômicos.

Não é só pela merenda

Desde 2008 o número de greves no país tem sido progressivo, aproximando-se do ciclo de paralisações de trabalho do fim dos anos 1980, em que o país conheceu a onda grevista mais extraordinária de sua história. Adentramos possivelmente em um novo ciclo de lutas. Da educação à construção civil. Dos petroleiros aos metalúrgicos. Dos garis aos bancários. Dos trabalhadores do telemarketing aos terceirizados. Do movimento pela redução da tarifa de transportes à juventude secundarista.

Os jovens secundaristas sabem que é preciso lutar, e que é possível vencer. E a disposição de luta dessa garotada impressiona e contagia, enchendo-nos de esperança, pois não estão sozinhos nessa batalha que, de fato, não é só por causa da merenda.

Uma reflexão se impõe de maneira imperiosa: após o enigma de junho de 2013 a juventude não será mais a mesma. Há um novo ciclo de revoltas populares, em que velhas formas de luta combinam-se, não sem atritos, a métodos inéditos. E a esquerda marxista precisa, num esforço reflexivo e organizativo, aprender com as novas lutas que surgem e criar pontes de unidade entre estudantes e trabalhadores. Trata-se de um desafio espetacular, o que pode gerar uma síntese explosiva e cheia de esperanças para a transformação da ordem social quando as lutas em curso encontrarem a direção e o programa revolucionários que os levará a vitória, sem a ilusão em negociações acertadas. Ao fim e ao cabo, trata-se de uma luta permanente e combinada. A hipótese mais sugestiva parece apontar para a nova situação concreta segundo a qual podemos já ter iniciado um novo ciclo de lutas operárias, estudantis e do conjunto dos trabalhadores assalariados no país, e que cada vez mais assume potencialidades em escala global, ainda que com intensidades variadas. Estaríamos na iminência de novas situações extraordinárias? A história é um campo aberto de possibilidades.

Referências:

LENIN, V. As tarefas da juventude revolucionária. In: Obras Completas. Vol 1. Lisboa: Edições Avante-Prograsso, 1986.

MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. Editorial “Avante!” – Lisboa: Edições Progresso Lisboa – Moscovo, 1982.

MÉSZÁROS, Ístvan. A educação para além do capital. 2ªedição. São Paulo: Boitempo, 2008.

Notas:

1GODEIRO, Nazareno; GURGEL, Amanda. A quem serve a crise da educação brasileira? Uma análise da realidade educacional no Brasil e no RN. São Paulo: Sundermann, 2015.

2Segundo o sindicato da categoria foi a maior greve da história do Centro Paula Souza, não em extensão (a greve se estendeu de 17 de fevereiro a 28 de março de 2014), mas em adesão de unidades em todo o Estado (chegando, em seu auge, a adesão parcial ou total de 110 unidades – entre Etecs e Fatecs). Conferir: Jornal do Sinteps, n.66, maio/2014 (disponível em: http://www.sinteps.org.br/download/publicacoes/Jornal%20Sinteps%2066%20-%20Maio%202014.pdf). Durante a greve, vale lembrar, houve o corte de ponto dos trabalhadores grevistas e inúmeras medidas de práticas anti-sindicais por parte do governo Alckmin.

3Categoria “O” refere-se a uma das modalidades do regime de contratação temporária de docentes na rede estadual de ensino paulista, em oposição a forma de contratação de professores efetivos. Tal regime não pressupõe plano de carreira nem a proteção de direitos trabalhistas de um servidor público estatutário, uma vez que os docentes, enquadrados nessa condição, recebem remuneração relativa apenas as horas trabalhadas no período de seu contrato de caráter temporário limitado ao ano letivo, sem vínculos trabalhistas, como o direito às férias remuneradas (recebem apenas proporcional) ou recolhimento de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

4Importante frisar que nos primeiros meses letivos de 2016 o governo segue realizando “às escuras” a reorganização do ensino.

5Menção às denúncias de fraude em licitações de compra da merenda escolar, reveladas pelo Ministério Público e pela Polícia Civil. Desde o início de 2016 houve denúncias, inclusive, de falta de oferta de merenda nas escolas estaduais e Etecs (muitas destas nunca sequer ofereceram o direito à alimentação estudantil).

6O que indica a urgência das entidades estudantis burocratizadas e governistas a romper com sua paralisia diante dos governos petistas.

7“A Etesp é a 5ª melhor escola na classificação geral de públicas e privadas de todo o Estado e a 5ª melhor escola pública do País. No ranking geral, está em 43º lugar entre as 26.099 escolas que participaram do exame em todo o Brasil. No Estado de São Paulo, é a primeira melhor escola pública. Das 50 melhores escolas estaduais brasileira, 37 são Etec, 5 são escolas técnicas ligadas a universidades e 7 estaduais de outros Estados. Em São Paulo, entre as 50 escolas públicas com melhor desempenho, 43 são Etecs. (…) Na capital paulista, todas as dez melhores escolas públicas são Etecs”. Reportagem “Desempenho Etec no Enem 2010”, disponível em: http://www.redenoticia.com.br/noticia/2011/desempenho-etecs-no-enem-2010/36554.

8Em 2015, houve o caso emblemático em que organizações estudantis localizadas no campo governista (de defesa do governo Dilma), como a UMES e a UPES, na esteira da UJS, se dispuseram a negociar com o governo e propor um acordo por fora dos interesses dos estudantes e das ocupações de escolas, sem passar pela base dos estudantes mobilizados em assembleia democrática.