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BRASIL

Cid Benjamin: Doze pitacos sobre a questão da corrupção

Cid Benjamin
Protesto em Brasília. Foto Antonio Cruz / Agencia Brasil

Protesto em Brasília. Foto Antonio Cruz / Agencia Brasil

A esquerda nem sempre tem tratado a questão da corrupção de forma adequada. Depois de tê-la abordado durante muito tempo a partir de um viés udenista, como fez o PT em seus primórdios, agora com frequência não percebe a importância que ela assumiu na luta política cotidiana e foge do assunto, como faz o PT hoje.

Os presentes pitacos, escritos a partir da provocação de um amigo que publicou um alentado artigo sobre o tema, têm um objetivo modesto: apenas trazer rápidas reflexões a respeito. Como se trata disso, e não de um trabalho de mais fôlego, ele não é uma contraposição ao artigo. São apenas rápidas reflexões para enriquecer o debate.

  1. Para início de conversa, é preciso lembrar que o debate sobre corrupção hoje no Brasil está contaminado pela degeneração do Judiciário, que tem escancarado seu caráter de classe ao agir politicamente sem qualquer prurido, seja protegendo tucanos e assemelhados, seja forçando a barra para, por exemplo, inviabilizar a candidatura de Lula, ao condená-lo sem provas, para ficar apenas nesses exemplos.
  2. Dito isso, é bom se ter presente que o maior problema da corrupção não é que ela retire recursos que poderiam ser utilizados nas áreas sociais. Claro que isso ocorre e é grave. Mas o pior é que a corrupção contribui para desmoralizar a prática política, passar a ideia de que ela é uma atividade suja e fortalecer a noção, já existente no imaginário popular, de que todos os políticos são corruptos. Isso afasta as pessoas, fazendo com que se desinteressem da política, e joga água no moinho do conservadorismo, pois se não há interesse pela política é difícil que haja mudanças na sociedade.
  3. Alguns responsabilizam as denúncias de corrupção pelo enfraquecimento da política. É errado. O que enfraquece a política não é o combate à corrupção ou a denúncia dela, mas a sua existência. A denúncia só não contribui para o saneamento do cenário político se o discurso se esgota nela, ou se é posta em primeiro plano, transformando-se na questão central. Mas ela deve ser, sim, um elemento da prática da esquerda, devido ao papel deletério que a corrupção traz para a política em geral e a consciência das pessoas.
  4. Se é verdade que o combate à corrupção na forma como é feito muitas vezes “despolitiza a política”, o maior problema não está na denúncia, mas na existência, em si, da corrupção. Ela é o ponto de partida. Desgasta a política e faz com que muita gente se afaste dela, vendo-a como algo sujo. Esse efeito deletério na percepção das pessoas em geral a respeito da política é gravíssimo. Serve para ajudar a que as coisas fiquem como estão, favorece o conservadorismo. Este é um problema que não deve ser ignorado. A corrupção é, em si, portanto, despolitizadora. Por isso, mais do que por outra razão até, é importante que seja combatida seriamente. Esse combate é uma espécie de ponto de partida para limpar o terreno e para que as questões substantivas e programáticas assumam o centro do debate, como interessa aos que lutam por transformações sociais.
  5. Assim, não basta que a esquerda, ao tratar do tema, afirme que – claro!! – é contrária à corrupção. Ora, quem não diz isso? Quem seria a favor? É preciso ir além dessa declaração vazia. É preciso deixar claro, além de dizermos que não apoiamos a corrupção, o que propomos. É preciso que – garantido o devido processo legal – os corruptos sejam, sim, investigados e punidos de forma exemplar.
  6. Mais: no debate é necessário ir além dos procedimentos tipificados no Código Penal. Estes últimos são passíveis de punição no plano legal. Mas, deve-se levar em conta também – e criticar – relações promíscuas estabelecidas entre determinados personagens e o grande capital, mesmo que elas não configurem um crime. Assim, não é crime, para ficar só neste exemplo, que um ex-presidente tenha despesas pessoais pagas por uma empreiteira, como foi o caso de Lula, que teve sua mudança de Brasília para São Paulo bancada pela OAS, depois de deixar a chefia do Executivo. Mas não este é um tipo de relação aconselhável. Favores desse teor são impróprios e quem os aceita deve ser criticado politicamente, ainda que não possa ser alvo de uma ação penal.
  7. Na prática, não serve muito a associação que muita gente de esquerda faz entre capitalismo e corrupção, como que naturalizando a existência dessa última numa sociedade capitalista. Ora, no capitalismo a forma pela qual o capital se apropria do excedente é, por excelência, a mais valia. A burguesia rouba (pra usar uma expressão mais direta) essencialmente por esse mecanismo, não por meio da corrupção tal como a conhecemos. Esta última seria, por assim dizer, um desvio, uma deformação. Aliás, não se deve perder de vista que há sociedades capitalistas com índices de corrupção relativamente pequenos, se comparadas com a média mundial (Japão e países escandinavos, por exemplo). E houve sociedades “socialistas” (ou em que havia “estados operários degenerados”) em que já se tinha corrupção e, depois, com a restauração, hierarcas do partido supostamente comunista se transformaram em verdadeiros capos mafiosos do capitalismo. Deram um banho de corrupção nos velhos burgueses.
  8. Assim, a associação corrupção/capitalismo tem pequena sustentação na vida real. Nem todas as sociedades capitalistas são igualmente corruptas e nem todas as sociedades pós capitalistas estão livres da corrupção. Além disso, a associação tem quase nenhuma serventia na política prática. Até porque não é uma explicação que podemos dar à sociedade na luta política concreta.
  9. O PT – ou, pelo menos, parte de seus dirigentes – prestou um enorme desserviço à esquerda ao se “lambuzar”, para usar a expressão do ex-ministro Jacques Wagner. Até então, as principais figuras da esquerda tinham cometido erros políticos, mas nunca haviam se degradado moralmente e enveredado por esse caminho. Quando parte de seu núcleo dirigente se corrompe, o PT dilapida um capital político importante que não era só dele, mas de toda a esquerda. Afinal, qualquer pessoa sabe, por intuição que seja, que não se pode ser socialista se não se é republicano. E nunca é demais lembrar uma frase de Pepe Mujica: “Se alguém quer enriquecer, que o faça. No capitalismo isso é permitido. Mas que o faça longe da política”.
  10. Quem pretende lutar por transformações não pode perder de vista a luta política na sociedade. Um processo de transformações, seja de caráter reformista, seja de caráter revolucionário, pressupõe a disputa pela hegemonia na sociedade (até mesmo um processo armado não dispensaria essa disputa). Isso tem uma consequência: só se deve fazer o que possa ser assumido e defendido publicamente. Na luta armada contra a ditadura, por exemplo, assaltavam-se bancos, mas (independentemente da correção ou não da linha política desses revolucionários) se podia defender a legitimidade dessas ações.
  11. O dito acima não significa que toda e qualquer ação política hoje tenha que se limitar aos marcos legais. Pode-se, em certas circunstâncias, desenvolver ações que firam a lei (determinadas ocupações, por exemplo). Afinal, a democracia é construída também alargando-se seus limites e, às vezes, forçando os marcos legais, de uma forma plebeia. Mas – atenção! – é preciso que essas ações possam ser sustentadas como algo legítimo. E, como sustentar como legítimo a corrupção? Ela é indefensável. Seja se desvia dinheiro para um partido, seja, ainda com mais razão, se vem para engordar as contas bancárias de dirigentes. Assim, a corrupção praticada por setores da esquerda no Brasil é um problema sobre o qual ainda se terá que prestar contas à sociedade. A cobrança vai continuar pairando sobre suas cabeças. E, não nos iludamos, as consequências disso não atingem apenas as determinadas correntes e acabam respingando em toda a esquerda.
  12. Assim, no Brasil a questão da corrupção segue sendo um problema para a esquerda explicar. É um mau caminho tentar fugir do debate.

 

Foto: Protesto em Brasília. Antonio Cruz/Agência Brasil