Sostenes Brilhante, de Feira de Santana (BA)
“É fértil ainda o ventre do qual saiu a coisa imunda”
Bertolt Brecht
O assassinato da companheira Marielle Franco; além de todo seu caráter simbólico: a execução de uma militante negra, LGBT, socialista; coloca patente às tendências imanentes à conjuntura que estamos vivendo. Diante disto, urge uma reflexão sistemática e que, lastreada nas tradições marxistas de análise dos tempos da luta de classes, venha responder a questão mais urgente de nosso tempo: em que situação da luta de classes nos encontramos?
Neste sentido, devemos nos situar no âmbito da totalidade histórica que é o modo de produção capitalista, unificado via mercado mundial, mas termos claro os ritmos desiguais e combinados das diversas conjunturas nacionais que funcionam como refrações particulares da etapa histórica que estamos atravessando.
Conforme elaboração do MAIS, estamos dentro de uma etapa histórica defensiva caracterizada pela dissolução da URSS e dos regimes que, grosso modo, o trotskismo identificou historicamente como Estados operários degenerados ou burocratizados. Esta etapa histórica se caracteriza em geral pela crise de direção revolucionária, pelo recuo na consciência das massas e por uma derrota histórica dos trabalhadores que se reflete no avanço sobre terras, direitos, patrimônios dos trabalhadores, um processo que lastreado na falência do stalinismo e da social-democracia europeia, além de suas variantes periféricas do nacionalismo pequeno burguês, e que desde meados dos anos 1970 até a sua consolidação nos anos 1990 consolidou as características históricas desta etapa.
Obviamente que, dentro desta etapa existiram situações de signo contrastante, desde situações reacionárias até situações revolucionárias. Para citar exemplos basta ficar em momentos como a guerra da água na Bolívia, o Argentinazo (onde em menos de uma semana vários presidentes se sucederam), a derrota da tentativa golpista contra Hugo Chavez na Venezuela em 2002 e, mais recentemente, a Primavera Árabe e as greves gerais gregas. Podemos dizer que ocorreram muitas lutas e algumas delas criaram situações que levaram os regimes a uma situação de crise orgânica, para usarmos um conceito de Gramsci.
No entanto, o signo da etapa segue vigente, isto por que uma alternativa revolucionaria organizada, não se colocou com peso de massas em nenhuma destas crises, estas crises foram de modo geral capitalizadas pela via institucional do regime, onde agrupamentos reformistas como o peronismo na Argentina, o petismo no Brasil, ou neorreformistas como o Syriza na Grécia utilizaram da insatisfação das massas para seus objetivos burocráticos de conciliação de classes.
Com a crise de 2008 a “onda progressista” da qual o governo de Lula e Dilma, Nestor e Kristina Kirchner, Evo Morales,e ate mesmo Hugo Chavez representam momentos, começou a esboroar vitima de suas insuperáveis contradições, contradições esta que sempre foram colocadas por diversos grupos revolucionários, que no entanto nunca conseguiram até o momento se constituir numa real alternativa de direção para a classe operária, o conjunto do proletariado/precariado e vastos setores populares urbanos e rurais.
Tendo em vista tais elementos que hoje se desenvolvem na conjuntura mundial onde, aliado a crise do capitalismo que não encontra saída econômica, assistimos a um ataque sistemático seja ao que restou do Estado de Bem-Estar Social (welfare state) na Europa ou EUA, seja aos poucos direitos conseguidos na periferia capitalista pelas massas trabalhadoras. Podemos diagnosticar uma avanço conservador que não se dá sem movimentos em sentido contrário (como a emergência de tensões dentro dos velhos aparatos reformistas, caso da Inglaterra ou de uma partido burguês com base popular como o Partido Democrata dos EUA) mas vem colocando organizações filofascistas em ascenso em todo o mundo, inclusive disputando a própria classe operária desiludida com a falência do reformismo.
De junho de 2013 ao golpe parlamentar, caminhos e descaminhos
O atual regime político brasileiro, uma democracia blindada de tipo periférico, cujo histórico de emergência se dá nos limites da crise da ditadura militar seguiu a longa tradição brasileira de estabelecer um regime autocrático-burguês. Este regime no entanto se encontra tensionado pelas lutas populares da década de 1980, que se consagraram em muitas concessões relativas a direitos sociais, que em que pese sua baixa efetividade, se encontram inscritos na Constituição de 1988.
A década de 1990 assiste a emergência da contrarreforma do Estado, já com a oposição petista tendo se colocado como “fiel” do regime em questão e se postulando a gestor da massa falida da larga crise social que a Era FHC estabeleceu entre nós.
Os treze anos do governo do PT representaram a completa absorção deste partido a institucionalidade burguesa, Lula se orgulha até hoje de que em sua era os banqueiros nunca foram tão ricos, assim como os latifundiários e industriais. Gestou-se portanto a situação típica das democracias blindadas onde no dizer de Felipe Demier, os dois partidos principais concordam no essencial e as demandas mesmo que reformistas das massas não encontram representação real pela via institucionalizada do regime.
Em nome da concertação social, da liberdade dos mercados, do pagamento em dia dos juros da dívida, o governo do PT procedeu uma grande operação de pacificação e normalização dos movimentos sociais e das organizações dos trabalhadores, através da cooptação transformista de seus dirigentes, de pequenas concessões e políticas compensatórias foi gestado o consenso ativo e passivo das massas populares, as organizadas e as desorganizadas.
Junho de 2013 expressa a emergência de uma fissura neste gigante de pés de barro, um gigante cuja aparência imponente (o país do futuro que deu certo, onde os pobres estavam virando uma nova classe media), diante da mais severa crise do capitalismo desde 2008, não tinha como manter os interesses conflitantes acomodados.
Inicialmente, junho de 2013 tomou de surpresa a todos, até mesmo as organizações revolucionarias que viram surgir algo há muito esperado mas que se demonstraram incapazes de disputar a direção das massas do precariado que emergiam insatisfeitas com os limites burocráticos impostos pela direção petista a luta por direitos.
Junho de 2013 funcionou também como um alerta para a burguesia, que ate então estava comodamente situada dentro do bloco no poder que alguns autores denominaram “frente neodesenvolvimentista” e administrava seu Estado através da frente popular lulo-petista. O PT e outros partidos da ordem foram abalados pelo clamor das ruas, em nome das promessas de um futuro que nunca chegara, eles queriam ver “a saúde padrão FIFA” finalmente na vida cotidiana, exatamente por isto Junho de 2013 criou um novo cenário, mesmo que a situação de instabilidade tenha se fechado em pouco tempo. Como disse Gramsci, enquanto o velho esta morrendo e o novo tarda em nascer “surgem os monstros”.
A situação reacionária no bojo da qual nos encontramos emergiu a medida que a burguesia diante da crise econômica cada vez mais forte, e da crescente fragilização do PT perante suas próprias bases, resolveu buscar uma saída que abandonasse o modelo de neoliberalismo aggiornado praticado pelo petismo no poder.
Nas eleições de 2014 ficou claro que a burguesia já tinha como opção preferencial, naquele momento pela via “normal” do calendário eleitoral, um deslocamento do petismo e a recomposição do bloco no poder a partir da velha direita, armada com uma plataforma de austeridade e redução de direitos como panaceia para a crise.
Esta plataforma que viria a se consolidar posteriormente na chamada “Ponte para o Futuro” responde a uma necessidade histórica da classe dominante brasileira, visando se relocalizar no marco do mercado mundial esta classe opta, para aqueles que tinham alguma duvida, por reprimarizar a economia, rebaixar de forma brutal os custos da força de trabalho e renunciar a qualquer tipo de opção industrial nacionalista, indo no sentido de uma “burguesia compradora” (no limite do processo a reversão neocolonial significa a redução da burguesia associada atual a uma mera gerência do capital imperialista e focalização em “comoddities”, mas só no limite) e como corresponde a tradição da “autocracia burguesa” aprofundando os elementos de segregação social e racial que existem em nossa realidade.
Neste contexto é que devemos entender a emergência do processo de golpe parlamentar, midiático e judicial que corresponde a atuação orquestrada da Lava Jato,dissidência do bloco no poder (setores burgueses e seus partidos tradicionais aliados do petismo), velha direita, nova direita (MBL, Revoltados Online, o partido midiático capitaneado pela Rede Globo, com base social na classe média alta (pequenos burgueses, alta burocracia estatal de alto escalão), este bloco compósito inicialmente unido sob a bandeira udenista de “combate a corrupção” e espumando anticomunismo raivoso. Tais elementos não chegaram a formar um bloco coeso, ao contrario para uns tratava-se de “estancar a sangria”, para outros de “moralizar a politica” e para outros de colocar na agenda do dia um ajuste severo, esta a pauta da burguesia é aquela que encontra maior realização.
Do outro lado o petismo demonstra se incapaz de reagir, seja por sua adesão a via institucional a ponto de jamais recorrer a mobilização de suas bases, senão de forma muito tímida, seja pelo desgaste relativo que sofria frente aos trabalhadores.
A esquerda socialista ao longo deste período apesar da política adequada de alguns grupos em enfrentar o golpe parlamentar sem capitular ao petismo, não consegue se tornar uma alternativa de massas e dai a derrocada petista corresponde o fortalecimento da ultra direita.
A crescente atuação de setores do aparato burocrático do Estado (Lava Jato) de forma relativamente autônoma evidenciava a existência de uma crise ao nível do regime, crise esta cuja saída ainda não foi de todo encontrada. As contradições atuais não nos permitem dizer que houve naquele momento ou até agora a consolidação de um novo bloco no poder. Estamos num período de crise do regime, de crise econômica e de crise das organizações dos trabalhadores.
Governo Temer, o projeto de aprofundamento da reversão neocolonial, ataque aos direitos e a onda conservadora
O governo Temer significa a busca da burguesia de uma saída tanto ao nível da conformação de um novo bloco no poder que responda a sua necessidade de longo prazo de se relocalizar nos marcos do mercado mundial, quanto na busca de corrigir algumas disfuncionalidades do regime poítico brasileiro mantendo o essencial do mesmo. Até o momento porem apesar de relativo sucesso na pauta ele não conseguiu cristalizar uma nova correlação de forças, dai a crise do regime persistir e os conflito intraclasse dominante, com as contradições entre setores da burocracia estatal e da “velha casta política”, apesar do acordo de fundo sobre o ajuste econômico.
O governo Temer inicia sua pauta de retrocessos e para isto escalou um ministério branco, hétero, conservador e reacionário ao extremo. A política de Temer é guiada pelo seu interesse imediato de permanecer no poder e de evitar a “sangria”, unidos na sagrada família da corrupta casta política o horizonte deste setor é o de sua reprodução fisiológica no aparato estatal, isto vem a calhar a burguesia, única força efetiva de sustentação do mesmo, a medida que o governo Temer deve aplicar no prazo mais curto de tempo um ajuste que reconfigure as relações de exploração no Brasil, o regime de acumulação de tipo precário e flexível que implica em fulminar os parcos direitos e serviços sociais que estão a disposição dos trabalhadores.
A PEC da Morte e a terceirização irrestrita, mais a reforma da CLT comprovam que esta agenda até agora avança sem uma resistência capaz de lhe fazer frente, aqui cumpriria discutir o papel das burocracias reformistas, que preferem negociar a mobilizar suas bases para uma luta verdadeira contra os ajustes, o desmonte da greve geral do dia 30 de junho tem este significado.
Na ausência de uma alternativa viável de enfrentamento ao ajuste o fortalecimento da ultra direita, da criminalização e persecução estatal aos que lutam, o fechamento policialesco do regime, a crescente ofensiva sobre as liberdades democráticas e de organização, além da ofensiva sobre garantias individuais em processos judiciais indicam a determinação das distintas frações burguesas em se valer do poder de fogo do aparato repressivo.
Defendemos que a partir de 2015 estamos no marco de uma situação defensiva, que agora nos parece se aproximar de uma situação reacionária. Não devemos ser impressionistas com a realidade, para isto devemos nos perguntar se tais elementos nos permitem caracterizar a situação já como plenamente reacionária.
Uma situação defensiva se caracteriza por uma falta de confiança das massas em sua capacidade de lutar, mesmo que seja pelos direitos mínimos, neste contexto é bem provável que os revolucionários não encontrem grande eco nas massas, e por isto precisamos estar atentos a realidade, estarmos a altura desta realidade significa sermos capazes de sentir a pulsação da história, as mutações na conjuntura, na psicologia das classes como diria Trotsky, pois estes são fatores que podem permitir cumprir nossos objetivos estratégicos de construir o partido revolucionário e mobilizar as massas para fazer a revolução.
A crescente blindagem do regime, caracterizado por expedientes autocráticos ao nível político (restrições eleitorais impedindo por menor que seja a visibilidade da esquerda contra a ordem, lei antiterrorismo e sua efetiva utilização crescente no ataque as liberdade de organização dos trabalhadores, bonapartizacão de setores do aparato policial e judicial no âmbito da Lava Jato, ataques as garantias processuais do réus, condenação sem provas do maior líder reformista da historia do pais,a principal organização operaria de tipo socialdemocrata como alvo principal de linchamento judicial e midiático, a intervenção militar como aceleração da política de guerra as drogas e o genocídio da juventude negra, a crescente onda conservadora no âmbito dos valores implicando no aprofundamento do feminícido e na homofobia, as restrições as liberdades democráticas como o ataque a liberdade de pensamento em torno das disciplinas sobre o golpe de 2016, e agora por fim uma execução política de uma militante socialista) deve nos alertar para o que está por vir.
O fortalecimento de Jair Bolsonaro e sua ideologia filofascista ainda não caracterizam, é certo, a existência organizada do fascismo entre nós, mas os atuais ataques em Rio Grande do Sul a caravana de Lula indicam que não estamos longe disso, precisamos o quanto antes repensar a política de segurança coletiva e individual dos militantes e ativistas, cercar de solidariedade todos os atacados pela ultra direita (sejam stalinistas, reformistas, revolucionários ou não), precisamos convocar todas as organizações por uma Frente Única contra os ajustes e contra os ataques repressivos que emergem do aparato estatal ou de grupos de ultra direita.
Fica claro que fatos como a confirmação da candidatura de Boulos e Guajajara, a existência de muitas lutas no ultimo período desde as lideradas pelas mulheres, os LGBT e os negros, passando pela greve de 28 de abril demonstra que a classe trabalhadora ainda não está derrotada, ainda é possível barrar a emergência de uma situação reacionária, dai que o MAIS deve multiplicar seus esforços, ao lado de toda a esquerda socialista pela construção de uma Frente Única contra os ajustes e contra a escalada autocrática.
A guisa de conclusão podemos observar que a conjuntura aberta a partir do golpe de 2016, tem aprofundado os ataques e a escalada reacionária, a resistência ainda não tem estado a altura daquilo que precisamos seja para barrar o ajuste seja para barrar a onda conservadora. Trata se de uma conjuntura que se retroalimenta, os ataques destroem as condições mínimas de um consenso social do tipo “esperança na cidadania salarial”, em uma realidade já extremamente marcada pela segregação socio-racial as reformas em curso tendem a tornar explosivo o cenário da luta de classes, a burguesia com a interdição da candidatura Lula pela via judicial deixou expresso seu intento de afastar qualquer possibilidade de “compromissos provisórios” com a conciliação de classes (agora é guerra é o lema deles), resta portanto o fortalecimento do aparato repressivo judicial/policial e o incentivo ainda que velado aos grupos de ódio proto e filofascistas.
Estamos portanto diante de uma encruzilhada histórica, uma “esquina perigosa” da história para citar Valério Arcary. As lutas do próximo período podem tanto nos fazer avançar no sentido de apontar uma saída para os trabalhadores (e este deve ser o objetivo de todo nosso esforço) quanto nos levar mais a fundo na barbárie. As cartas estão lançadas, cumpre a nós seguir os passos de Leon Trotsky que, mesmo na hora mais trágica de sua vida, soube manter viva a bandeira da Revolução Proletária e sua crença inabalável no futuro socialista da humanidade, esta fé inabalável ele nos transmitiu ao dizer “A vida é bela. Que as gerações futuras a livrem de todo mal e opressão, e possam desfrutá-las em sua plenitude….”
EDITORIAL
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