Por: George Pinheiro, de Fortaleza, CE
Em 2016, eu morava no bairro do Antônio Bezerra, perto da favela da Bubu, Zona Oeste de Fortaleza, fronteira com o município da Caucaia, o segundo mais populoso da região metropolitana da capital cearence.
Não rara as vezes, pegava um atalho e caminhava até a escola em que trabalhei por durante sete anos. Por sinal, o lugar em que guardo os principais afetos da minha vida profissional. Sim. Apesar da narrativa midiática de reduzir a periferia ao mundo do crime, nos bairros pobres e periféricos encontramos um vida que vai muito além dessa campanha ideológica.
Além da Bubu, passava pela comunidades do Canal, Sossego e Plástico. Delas, provinham boa parte das matrículas da unidade de ensino em que lecionava.
Assim como todas as periferias do Brasil, além das várias igrejas evangélicas, mercearias, pequenos negócios, bares, carrinhos de espetinho, tapioca, quitandas de prato-feito no início da noite, a quase ausência do Estado se combina com uma gente que dá um duro danado para sobreviver.
Conheci várias dessas pessoas. Dentre elas, muitas mães da meninada para quem ensinava. A preocupação de quase todas era a mesma: “Meu filho está se comportando? Como está o boletim dele(a), professor? O senhor acha que ele(a) vai ficar de recuperação? Professor, eu quero que ele estude para ser gente e ficar longe das coisas erradas da vida”, exclamavam.
E das reuniões de pais, ou melhor, de mães, que participei, tomei nota de uma quantidade sem fim de dramas e estórias de vida interrompidas pela violência urbana.
Pois bem, ao longo da caminhada que fazia, me chamava a atenção uma pichação com os seguintes dizeres: CV + PCC + Plástico + Sossego = Paz. Já pertinho da escola, na esquina de um beco, tinha escrito: “É proibido fazer uso de drogas na presença de crianças”.
Essas são algumas das marcas da existência do tráfico no bairro – a criação de leis próprias em cada novo território de atuação e a associação de grupos locais as maiores facções do crime organizado, o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital.
Conforme reportagem da UOL, estima-se que o Ceará tem cerca de três mil filiados ao PCC, atrás somente de São Paulo (berço da organização) e Paraná.
Nos últimos cinco anos, o tráfico foi melhor se organizando, espalhando-se pelo Interior do estado, recrutando mais gente, gerindo o negócio das drogas de maneira mais “profissional”, aumentando sua receita, respeito e poder em quase todos os bairros da periferia de Fortaleza.
Voltando ao ano de 2016, ele foi marcado pela redução do número de homicídios. O governo Camilo Santana (PT) apontava essa queda como fruto do programa “Em defesa da vida”, que dividiu o estado em áreas de policiamento com metas de redução do crimes aferidas diariamente.
Porém, o governador, o comando da Secretaria de Segurança Pública, os estudiosos do fenômeno da violência no meio acadêmico e, principalmente, a população que vive na periferia sabiam que os números de 2016 eram reflexo do que, popularmente, ficou conhecido como “pacificação” – um acordo por cima, entre PCC e CV, que envolvia uma divisão de responsabilidades no que tange fornecimento de armas e logística de distribuição das drogas. A ação conseguiu centralizar a maioria dos grupos e chefes locais do tráfico.
O objetivo era reduzir as disputas territoriais, diminuir o número de crimes cometidos nos bairros para facilitar o comércio das drogas e aumentar a receita proveniente do negócio.
Ocorre que, desde o fim de 2016, PCC entrou em guerra com o CV e a FDN (Família do Norte), facção aliada do Comando Vermelho. E, com o aumento das tensões, deu carta branca para a GDE (Guardiões do Estado), sua facção aliada no Ceará, para promover o terror dentro e fora dos presídios.
No entanto, o poder bélico do Comando Vermelho é reconhecidamente alto. E a ruptura entre as facções gerou um estado de guerra generalizada nos bairros e nas prisões.
A bárbara chacina nas Cajazeiras, bairro da periferia de Fortaleza, mais especificamente na comunidade Che Guevara, que deixou entre 14 e 18 mortos e quase duas dezenas de feridos, e a chacina da cadeia pública de Itapajé, município distante 118 Km de Fortaleza, com 10 mortos, só podem ser entendidas como parte desse contexto e cenário de guerra interna entre as facções pela disputa e controle do tráfico.
Em meio à tragédia humana, as declarações do secretário de Segurança Pública do Ceará, André Costa, e do governador Camilo Santana (PT) são terríveis.
Numa entrevista coletiva, o secretário comparou a chacina do bairro Cajazeiras com as ações que ocorrem nos Estados Unidos. “São situações em que pessoas entram num local, tem tiroteio e se mata dezenas de pessoas. É difícil de evitar e a população sabe”, declarou o secretário.
A fala da autoridade máxima da segurança pública cearense soou como uma piada de mau gosto. Trata-se de um misto de deslealdade intelectual, irresponsabilidade e insensibilidade. O que está por trás dela é uma tentativa sutil de minimizar a tragédia que se abateu sob a vida de dezenas de famílias.
O raciocínio de chefe da segurança pública pode ser interpretado assim: acontecem chacinas e atentados no primeiro mundo. Portanto, o que se passou aqui faz parte de um fenômeno mundial. Então, tudo está sob controle. Detalhe: o tudo está sob controle é uma expressão do secretário e do governador utilizada nas coletivas e entrevistas.
O que significa estar tudo sob o controle??? É preciso começar a refletir sobre falas que são naturalizadas.
Para o secretário e governador, está tudo sob controle, porque na Aldeota, Meireles, Varjota, Cidade dos Funcionários, Parquelândia, Água Fria e outros bairros nobres de Fortaleza não ocorrem chacinas.O tudo sob controle é seletivo. Ambos naturalizam os assassinatos na periferia. Essa é a questão. Trata-se de racismo e discriminação institucionais.
Vidas periféricas valem menos, comovem menos e ainda dão ibope em programas policiais. E a bancada da bala – muitos apresentadores do espetáculo da banalização da vida – sedenta por carnificina, defensora fanática de leis mais duras, da redução da maioridade penal e do encarceramento em massa fortalece o discurso da militarização da vida cotidiana.
Em meio a críticas justas ao Governo Federal, ao anúncio de uma força tarefa para investigar as chacinas e ao pedido de ajuda da área de inteligência da Polícia Federal, não foi adotada nenhuma ação de solidariedade mais efetiva por parte do Governo do Estado às famílias das vítimas.
O governador, por sinal, entende que a resolução do problema da violência urbana passa pelo investimento massivo no aparato repressor. Seu maior orgulho, na área da segurança pública, está estampado nas traseiras dos coletivos: a interiorização do RAIO (Ronda de Ações Intensas e Ostensivas) em todo o Ceará.
Enquanto isso, os números da violência urbana no Ceará há tempos dizem que estamos vivendo uma barbárie.
No ano passado, o Ceará registrou 5.134 assassinatos ante 3.047 em 2016. O crescimento é de 50,7%, informou o jornal Estado de São Paulo. O maior aumento ocorreu em Fortaleza, que registrou crescimento de 96,4% na quantidade de homicídios. No ano passado, foram registrados 1978 homicídios ante 1007 em 2016.
De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância, Fortaleza é a capital onde se mata mais adolescentes de 12 a 18 anos.
O relatório “Trajetórias Interrompidas”, elaborado pelo Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, aponta que, na capital cearense e em mais seis cidades do estado, há uma matança cotidiana de um grupo especialmente vulnerável, os adolescentes com menos de 19 anos.
Eles não querem afirmar o óbvio: a política de “guerra às drogas” faliu. E, desgraçadamente, sua continuidade vem acompanhada do discurso da banalização da vida na periferia e da desumana comoção seletiva.
Foto: Local onde 14 pessoas foram assassinadas, em Fortaleza. | Sindicato dos Policiais Civis de Carreira do Estado do Ceara (Sinpol-Ce)
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