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EDITORIAL

Violeta: um grito musical de insubmissão e rebeldia universal

Violeta com a sua militância por vezes crítica e autónoma em relação ao seu partido, o Partido Comunista do Chile, foi uma lutadora incessante ao longo da sua vida contra todo o tipo de injustiças. Artigo de Roberto Santandreu. Publicado originalmente no Esquerda.net

Fulgor e morte de Joaquín Murieta é o título da única obra de teatro escrita por Pablo Neruda. As duas primeiras palavras sintetizam e definem de forma acertada o que foi Violeta Parra e o que significou para a minha geração a vida vivida com a intensa paixão que se formou na família Parra. Com um pai professor de música sempre à beira da pobreza e uma mãe camponesa que reproduzia as riquezas do folclore chileno e indígena, Violeta, assim como as suas irmãs e irmãos, entre os quais se destacam Hilda, Nicanor e Roberto herdaram essa criatividade e a força telúrica.

O fulgor de Violeta inicia-se em tenra idade, aos doze anos, quando compõe as suas primeiras obras. Aos vinte interpreta tonadas, boleros, corridos com a irmã Hilda. Trabalha em circos, tabernas e teatros para poder pagar as suas despesas e alimentar os filhos.

A sua consciência social provém de estar sempre submergida no povo chileno. O seu contacto permanente com as populações e as vivências das injustiças faz com que emerja com toda a força um grito musical de insubmissão e rebeldia universal.

Violeta apaixonada mil vezes, triste e feliz, sofrida e angustiada, a partir de 1953 participa em programas de rádio enviando ao povo chileno uma clara mensagem de consciência social que começa a reconhecer o seu valor como artista.

Esta mulher do povo com uma formação escolar básica foi contratada pela Universidade de Concepción para realizar uma investigação sobre o folclore chileno do sul do país. Com o apoio da universidade funda e dirige o Museu da Arte Popular de Concepción.

O seu fulgor projecta na minha geração um período histórico peculiar, o início do século XX, que foi o culminar de um largo processo de consciência e luta das diferentes camadas da sociedade chilena, desde a classe operária, aos mineiros, pescadores, camponeses, sectores da pequena burguesia e aos estudantes. Refiro-me ao período da presidência de Eduardo Frei, em 1964 até ao triunfo, a 4 de Setembro de 1970, de Salvador Allende.

Quando era estudante, a música de Violeta alimentava-nos a luta contra o governo reformista de Eduardo Frei. Frequentemente comparo o que significou Violeta Parra na sociedade chilena com José Afonso na sociedade portuguesa. Sendo muito diferentes, no grau de instrução e na forma musical, existe um elo de ligação ineludível: a utilização da palavra e da música como instrumentos de conscientização. Ambos tiveram uma enorme influência nos músicos que os seguiram.

Na minha juventude frequentei assiduamente a emblemática Peña de los Parra fundada por Violeta na rua Carmen, 340 em Santiago. A Peña era orientada pelo seu filho Ángel Parra. Havia um pequeno estrado com uma ou duas cadeiras. Aí se interpretava música de Violeta e de compositores e cantautores: Patricio Manns, Victor Jara, Gilbert Favre (companheiro de Violeta) e naturalmente o próprio Ángel Parra, além de alguns grupos como os Curacas. Com um copo de vinho de baixa qualidade e uma empanada na mão, ouvíamos silenciosamente e de forma quase sagrada, com cara compungida, a música que Violeta tinha criado.

Fulgor, sim, de uma mulher extraordinária, difícil de enquadrar no seu género: poeta, compositora, autora, interprete, pintora, ceramista, tecelã e música. Violeta múltipla; Violeta única; Violeta mulher; Violeta total

Fulgor, sim, de uma mulher extraordinária, difícil de enquadrar no seu género: poeta, compositora, autora, interprete, pintora, ceramista, tecelã e música. Violeta múltipla; Violeta única; Violeta mulher; Violeta total.

Uma breve antologia de autoria de Alfonso Alcalde cita o meu amigo Eduardo Bonati, pintor chileno, que diz com sentimentos de culpa: “Falimos como seres humanos quando há uns anos as tapeçarias de Violeta Parra estavam penduradas na Feira de Artes Plásticas e nós passávamos em frente e não fomos capazes de participar, de querer ter essas coisas. Agora todos queremos ter uma tapeçaria de Violeta Parra.”

Violeta com a sua militância por vezes crítica e autónoma em relação ao seu partido, o Partido Comunista do Chile, foi uma lutadora incessante ao longo da sua vida contra todo o tipo de injustiças. O seu fulgor contagiou grande parte da sociedade chilena e contribuiu de forma decisiva para a mudança que foi possível com a eleição de Allende e o período revolucionário que acabou com o golpe de estado de 1973. Não desisto em fazer uma tradução livre de uma canção de Violeta que reflecte o combate de toda uma vida, É uma referência através à luta do movimento operário na altura de Arturo Alessandri, presidente liberal, no ano de 1925.

A canção intitulada Os famintos pedem pão diz-nos:

“Enviaram-me uma carta
Pelo correio cedo,
nesta carta dizem-me
que caiu preso o meu irmão,
e sem lástima, com algemas,
pela rua o arrastaram, sim.

A carta diz o delito
que Roberto cometeu:
ter apoiado a greve,
que já se tinha resolvido,
se por acaso este é um motivo,
presa também vou, sargento, sim.

Eu que me encontro tão longe,
esperando uma notícia,
vem-me dizer a carta
que na minha pátria não há justiça,
os famintos pedem pão,
chumbo lhes dá a milícia, sim.

Desta forma pomposa,
querem conservar o seu posto
os de abanico e fraque,
sem ter conhecimento,
vão e vêm da igreja,
e esquecem os mandamentos, sim.

Ter-se-á visto, insolência,
barbárie e aleivosia
de apresentar a espingarda
e matar a sangue frio
quem não tem defesa,
com as mãos vazias, sim.

A carta que recebi
pede-me resposta,
e eu peço que se propague
por toda a população
que o “leão” é um sanguinário
em toda a sua geração.

Por sorte tenho guitarra
para chorar a minha dor,
também tenho nove irmãos
fora o que me prenderam,
os nove são comunistas.”

https://www.youtube.com/watch?v=NUAfWKLX438

Hoje celebramos o centenário do seu nascimento. Violeta Parra acompanha as grandes figuras da literatura, das artes e da política do Chile: Vicente Huidobro, Gabriela Mistral, Pablo Neruda, que lhe dedicou alguns poemas, Luís Emilio Recabarren, Roberto Matta, Claudio Arrau e Salvador Allende.

Neste centenário muitas mudanças se deram no Chile que tem tido uma trágica história.

Apesar do restabelecimento da democracia após a ditadura militar, as causas que levaram Violeta a fortalecer a sua luta ainda hoje subsistem, sendo o meu país uma das nações com maiores assimetrias e desigualdades no mundo. O povo Mapuche continua a lutar pelo reconhecimento dos seus direitos ignorados ao longo de cinco séculos.

O canto de luta de Violeta Parra e o seu legado poético perduram.

“Entrou Violeta Parrão
violeteando a guitarra,
guitarreando o guitarrão,
entrou a Violeta Parra”
de Pablo Neruda

4 de Outubro de 2017

Artigo de Roberto Santandreu para esquerda.net