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EDITORIAL

Sionismo, antissemitismo e a Declaração Balfour

 

Cumprem-se hoje cem anos desde a Declaração Balfour, pela qual a Inglaterra se comprometia com o estabelecimento de um lar nacional judaico na Palestina. Na opinião de Edward Said, intelectual e ativista palestino que ela foi um exemplo óbvio de modelo de imperialismo, “(a) por uma potência europeia, (b) sobre um território não-europeu (c) em claro desprezo pela presença e pelos desejos da maioria nativa que vivia no território, e (d) tomou a forma de uma promessa sobre o mesmo território a outro grupo estrangeiro, de forma que esse grupo estrangeiro pudesse, de forma quase literal, tornar esse território um lar nacional para o povo judaico”.
E a Palestina é hoje totalmente dominada pelos sionistas, que enfrentam a determinada resistência do povo palestino. Para tentar desmoralizar essa resistência, que se estende a um movimento de solidariedade em todo o mundo, os governos que apoiam o regime sionista tentam insinuar que o movimento antissionista seja antissemita. Chegou-se ao absurdo de acusar Moshe Machover, um veterano judeu antissionista, de expressar ideias antissemitas, desculpa pela qual foi expulso do Labour Party na Inglaterra. Depois de uma vitoriosa campanha, o partido o readmitiu nesta semana, sem no entanto, se desculpar pelo que foi feito. Uma vitória muito importante em uma data muito simbólica. O texto de Gilbert Achcar que publicamos explica as origens do sionismo  a partir da obra de seu fundador, Theodor Herzl, e expõe os pontos em comum que contém com o raciocínio antissemita. (Editoria Internacional)

 

Por Gibert Achcar. Texto publicado originalmente em Open Democracy em 2 de Novembro, 2017

Uma complementariedade entre o desejo antissemita de se livrar dos judeus e o projeto sionista de enviar todos os judeus para a Palestina parece ser ignorada, por exemplo, por Theresa May.

Quase um ano atrás, em 12 de dezembro do ano passado, a primeira-ministra Theresa May discursou no Almoço Anual dos Amigos Conservadores de Israel nesses termos: “Em 2 de novembro de 1917, aquele que era então Secretário de Relações Exteriores, Arthur James Balfour, escreveu: ‘O governo de Sua Majestade vê com bons olhos o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judaico e utilizará seus melhores esforços para facilitar a realização desse objetivo, …’”

A primeira-ministra leu todo o texto da carta a que me irei referir mais adiante. Ela disse depois: “É uma das cartas mais importantes da história. Ela demonstra o papel vital da Grã-Bretanha em criar uma pátria para o povo judeu. E é um aniversário que marcaremos com orgulho.”

Ela agregou: “Nascido de tal carta e dos esforços de tantas pessoas, há um admirável país.” Um país, Israel, que a Primeira-Ministra descreve como “uma vibrante democracia, um bastião de tolerância, um motor de empreendimento e um exemplo para o resto do mundo em superar a adversidade e desafiar as desvantagens.”

A primeira-ministra, então, aproveitou a oportunidade de seu discurso para atacar o Labour Party sobre o tema do antissemitismo. Isso ocorreu uns dias após um evento similar organizado pelos Amigos do Labour de Israel: “Compreendo que este almoço tem muito que se emular nas cenas extraordinárias do evento dos Amigos do Labour de Israel. Ele começou, de forma não usual, com Tom Watson cantando a plenos pulmões o Am Yisrael Hai. A audiência acompanhou a voz do barítono que tomava conta do palco. ‘Am Yisrael Hai – o povo de Israel vive.’ É um sentimento com o qual todos nesta sala concordam de forma completa. Mas preciso dizer: todo esse karaokê pode fazer com que se ignore o antissemitismo.”

Theresa May continuou exaltando as suas próprias realizações como Ministra e as de seu partido e governo ao combater o antissemitismo (e associando-o com o antissionismo). Seu discurso apoiou-se, portanto, no que todos que conheçam as reais circunstâncias da Declaração Balfour podem identificar como uma contradição gritante.

Edwin Samuel Montagu foi o único membro judeu do gabinete liderado por David Lloyd George, a que pertencia Balfour, e somente o terceiro membro judeu do ministério na história. Eis aqui o que ele comentou sobre o rascunho da carta de Balfour quando o recebeu em agosto de 1917: “Quero registrar minha visão de que a política do governo de Sua Majestade é antissemita e como resultado disso será um ponto de apoio para os antissemitas em todos os países do mundo.”

Montagu comentou: “parece inconcebível que o sionismo seja oficialmente reconhecido pelo governo britânico, e que o Sr Balfour seja autorizado a dizer que a Palestina seja reconstituída como o ‘lar nacional do povo judeu”. Não sei o que isso implica, mas imagino que signifique que os muçulmanos e os cristãos devem dar lugar aos judeus e que os judeus devem ser colocados em todas as posições preferenciais e devem ser particularmente associados à Palestina da mesma forma que a Inglaterra o é com os ingleses e a França com os franceses, e que os turcos e outros muçulmanos na Palestina serão considerados como estrangeiros, da mesma forma que os judeus serão tratados de aqui em diante como estrangeiros em todos os países, menos na Palestina.”

Ele acrescentou então, ironicamente, como ele provavelmente considerava que seria: “Talvez a cidadania deva ser dada somente como resultado de um teste religioso.” Esta última sentença se provou realmente profética, pois a concessão de cidadania no estado de Israel se tornaria inseparavelmente vinculada à identificação religiosa como judeu.

Pode-se compreender a preocupação de Montagu com os muçulmanos e cristãos na Palestina – eles constituíam mais de 90% da população local naquele tempo – mas deve-se perguntar por que ele considerava “a política de Sua Majestade como “antissemita”. O tema se torna claro se lermos todo o texto de seu memorando ao Gabinete.

Referindo-se a duas publicações daquele tempo, o jornal conservador The Morning Post, que se distinguiria em 1920 por publicar um capítulo da notória falsificação antissemita conhecida como os Protocolos dos Sábios de Sion, e um semanário notoriamente antissemita chamado The New Witness, Montagu escreveu: “Posso entender facilmente que os editores do Morning Post e do New Witness sejam sionistas, e não me surpreende em nada que os não-judeus da Inglatera possam dar as boas-vindas a esta política.”

Montagu estava apontando a complementariedade entre o desejo antissemita de se livrar dos judeus e o projeto sionista de enviar todos os judeus para a Palestina. Ele conhecia muito bem esse fato que a primeira-ministra Theresa May parece ignorar: que o próprio Secretário de Relações Exteriores Britânico Arthur Balfour foi influenciado pela corrente antissemita conhecida como “sionismo cristão”, a corrente que apoia o “retorno” dos judeus à Palestina. O verdadeiro objetivo desse apoio – não declarado na maior parte dos casos, mas às vezes declarado – é o de se livrar da presença judia em territórios com maioria cristã. Os sionistas cristãos veem o “retorno” dos judeus à Palestina como o cumprimento da condição da Segunda Vinda de Cristo, que será seguida do Julgamento Final que condenará os judeus ao sofrimento eterno no Inferno, a não ser que se convertam ao cristianismo. Essa mesma corrente se constitui hoje na mais forte defensora do sionismo em geral e da direita sionista em particular.

De fato, quando ele próprio foi Primeiro-Ministro, entre 1902 e 1905, Arthur Balfour promulgou em 1905 a Lei de Estrangeiros, cujo objetivo era impedir a imigração para a Grã-Bretanha de refugiados judeus que fugiam do mortífero antissemitismo que florescia no império russo. A clara continuidade entre esse fato e a carta da qual a primeira-ministra se orgulha não poderia escapar à compreensão de Edwin Montagu. O ministro judeu era particularmente consciente do fato que os sionistas contavam com os antissemitas para realizar o seu projeto de estabelecer um estado sionista na Palestina.

A clara visão de Theodor Herzl

Ninguém foi de fato mais claro sobre isso do que o próprio Theodor Herzl, o fundador do movimento sionista e autor de seu manifesto, Der Judenstaat (O estado dos judeus), que foi traduzido em inglês como o Estado Judaico. No prefácio a esse livro, Herzl afirmou abertamente o seguinte: “Tudo depende de sua força propulsora. E qual é sua força propulsora? O sofrimento dos judeus.”

Herzl continuou na mesma linha e com ainda maior franqueza na introdução de seu livro, dirigindo-se aos judeus laicos “assimilados” na Europa Ocidental que queriam se livrar dos judeus pobres da Europa Oriental e aos que ele não hesitava em descrever como “antissemitas de origem judaica” sem intenção pejorativa:

Os ‘assimilados’ poderiam se beneficiar ainda mais do que os cidadãos cristãos pela partida dos judeus religiosos; para eles seria livrar-se da rivalidade desconfortável, incalculável e inevitável do proletariado judaico, conduzido pela pobreza e a pressão política de lugar em lugar, de país para país. Esse proletariado flutuante se tornaria fixo. Muitos cidadãos cristãos – que denominamos de antissemitas – podem opor forte resistência à imigração de judeus estrangeiros. Os cidadãos judeus não podem fazer isso, ainda que isso os afete de forma bem mais diretamente; porque sobre eles sentem primeiro que todos a intensa competição dos indivíduos que exercem sua atividade nos mesmos setores econômicos que eles e que, além disso, introduz o antissemitismo em lugares em que não existe, ou o intensifique onde ele existe.

Os ‘assimilados’ dão vazão a essa injustiça secreta por meio das instituições ‘filantrópicas’. Eles fundam sociedades de emigração para os judeus imigrantes. Há um contrassenso nisso e que seria cômico, se não se tratasse de seres humanos. Porque algumas dessas instituições de beneficência são criadas não a favor, mas contra, os judeus perseguidos, elas foram criadas para despachar essas pobres criaturas tão rápido como possível. E, dessa forma, muitos amigos aparentes dos judeus resultavam, depois de uma inspeção cuidadosa, ser nada mais do antissemitas de origem judaica, disfarçados em vestes de filantropos. Mas as tentativas de colonização realizada inclusive por homens realmente bondosos, por mais que essas tentativas tenham sido interessantes, foram até hoje fracassadas. Essas tentativas foram interessantes, porque representavam em pequena escala as práticas predecessoras da ideia de um estado judaico.”

Esse novo projeto concebido por Herzl em substituição aos projetos coloniais “filantrópicos” fracassados que ele menciona, iria mudar de ações beneméritas para uma atividade política integrada no marco colonialista europeu, que tinha como objetivo fundar um estado judaico que pertenceria a esse marco e o reforçaria.

Para isso, Herzl compreendeu que os antissemitas cristãos seriam seus mais fortes apoiadores. Seu principal argumento, na seção do segundo capítulo de seu livro, denominada “O Plano”, é o seguinte: “A criação de um novo estado não é ridícula nem impossível. … Os governos de todos os países assolados pelo flagelo do antissemitismo se interessarão vivamente em auxiliar-nos para obter a soberania que queremos”.

Tudo que era necessário era selecionar o território em que o projeto sionista iria se materializar:

“Neste caso, dois territórios são considerados, a Palestina e a Argentina. Em ambos os países, importantes experiências de colonização foram feitas, ainda que sob princípios equivocados de uma infiltração gradual dos judeus. Uma infiltração está fadada a terminar mal. Ela continua até o ponto que a população nativa se sente ameaçada e força o governo a impedir um maior afluxo de judeus. A imigração  é,  por consequência, inútil, a não ser que se baseie na supremacia assegurada. A Sociedade dos Judeus irá negociar com os atuais donos da terra, colocando-se sob o protetorado das potências europeias, se elas se mostrarem favoráveis ao plano.”

Ao final do último capítulo de seu livro, em que explicou os “Benefícios da emigração dos judeus”, Herzl tranquilizou aqueles aos que ele se dirigia dizendo que os governos iriam prestar atenção a seu projeto “voluntariamente ou sob pressão dos antissemitas”.

Vocês podem agora compreender por que Edwin Montagu denunciou o projeto da Carta de Balfour como o produto de um acordo entre o movimento sionista e os antissemitas britânicos; por que ele afirmou categoricamente que “a política de Sua Majestade é antissemita e como resultado se tornará um ponto de apoio para os antissemitas em todos os países do mundo.”

Uma terrível trajetória

O gabinete de David Lloyd George  tentou suavizar as preocupações de Montagu sobre o destino da maioria não-judaica na Palestina e o destino dos judeus que não estivessem dispostos a tornar colonizadores na Palestina ao agregar ao seu compromisso de  “utilizar seus melhores esforços para facilitar a realização” do objetivo de “estabelecimento de um lar nacional para o povo judeu”, o dispositivo de que seria “claramente compreendido que nada seria feito no sentido de prejudicar os direitos religiosos e civis das comunidades não-judaicas existentes na Palestina, ou os direitos e o status político desfrutados pelos judeus em qualquer outro país.”

Conhecemos a terrível trajetória do governo britânico para manter esses dispositivos que estavam em completa contradição com o compromisso central da malfadada carta, assim como com seu verdadeiro espírito.

Que a Primeira-Ministra Theresa May, um século depois, possa considerar a infame Declaração Balfour como um motivo de orgulho, quando declarava sua satisfação pela posição de seu partido e seu governo contra o antissemitismo, é realmente uma razão de desalento pelo baixo nível do atual governo de Sua Majestade e de seus redatores de discursos.

Apresentado na palestra “A Declaração Balfour, um século depois” organizada pelo Centro de Estudos Palestinos na SOAS, Universidade de Londres, em 26 de outubro de 2017.