Por Henrique Canary, Colunista do Esquerda Online
Relatos de distintas fontes descrevem o fato de que, logo depois que foi informado do ataque nazista à URSS, em 22 de junho de 1941, Stalin se trancou em seu sítio e não conversou com ninguém por 3 ou 4 dias. Assim, nos primeiros momentos da guerra, os generais do Exército Vermelho não contaram com nenhuma orientação do todo-poderoso secretário-geral, que se encontrava paralisado, atônito, incrédulo da “traição” alemã.
Stalin havia firmado um pacto de não-agressão com Hitler em 1939. Depois da assinatura do acordo, todos os partidos comunistas do mundo foram instruídos a reconhecer na Alemanha uma nação amigável e amante da paz, da qual nenhuma ameaça deveria ser esperada. Segundo a visão de Stalin, o verdadeiro perigo da guerra provinha dos países imperialistas democráticos, como França, Inglaterra e Estados Unidos.
A confiança de Stalin em Hitler parecia ser sincera. Em 20 de junho de 1941, portanto dois dias antes do ataque, Leopold Trepper, chefe da espionagem soviética na Europa, alertou Stalin sobre a iminência de um ataque alemão. Em resposta a Trepper, Stalin declarou: “Admira-nos que um veterano da informação como Trepper se deixe influenciar pela propaganda inglesa. Pode repetir-lhe a minha convicção: a guerra do leste não rebentará antes de 1944”. Stalin recebeu informações similares de Richard Sorge, espião soviético residente no Japão, mas também as ignorou. O resultado da credulidade stalinista todos conhecem: milhões de mortos e dois longos anos de ocupação alemã e derrotas em seu próprio território, antes que a correlação de forças começasse a mudar em favor do Exército Vermelho.
Parece ser uma verdadeira mania e uma tradição stalinista esta de chamar os inimigos de “amigos” e acreditar neles fielmente. Nascido e criado nesta “tradição”, Putin agiu da mesma forma arrogante e ingênua que seu antecessor georgiano. Para quem acompanha a imprensa russa, é incrível a mudança de tom. Até quarta-feira, Trump era adorado em todos os programas de TV e na imprensa escrita russa. Agora, as palavras mais pronunciadas são “traição”, “ameaça à paz”, “golpe pelas costas” etc etc etc. O golpe é mais duro ainda porque a eleição de Trump contra Hillary Clinton foi uma evidente vitória política do presidente russo.
Segundo todas as evidências de que dispomos até agora, o ataque norte-americano à Síria parece ter pego realmente a Rússia de surpresa. Putin permanece calado, falando apenas por meio de seu porta-voz, do primeiro-ministro e do ministros das Relações Estrangeiras. Na reunião do Conselho de Segurança da ONU que discutiu o caso, o representante russo Vladimir Safronkov estava visivelmente irritado, sem uma linha de intervenção clara, a não ser o “parem com isso imediatamente”, enquanto sua colega norte-americana Nikki Haley fez um discurso cínico, em tom professoral, quase debochado. O governo turco, que vinha em curso de aproximação com os russos, também deu meia-volta e apoiou entusiasticamente o ataque de quinta-feira.
A guinada de Trump coloca Putin numa situação bastante delicada. É verdade que não houve perda de pessoal ou equipamentos russos e que mesmo os danos à base de Al Shayratal foram relativamente pequenos, considerando a quantidade de mísseis lançados. De um modo geral, o ataque americano foi bastante ineficiente, pelo menos do ponto de vista militar. Nesse sentido, Putin ainda tem alguma margem de manobra antes de ser obrigado a tomar qualquer medida real. Mesmo assim, o caso é complicado. A Rússia vinha aumentando o tom no terreno internacional, apresentando-se como uma potência militar pujante e modernizada, com grande poder de ataque, defesa e deslocamento. Em todo o discurso ufanista russo, os sistema de defesa anti-aérea “S” era e é a grande estrela. E foi justamente este sistema que, mesmo com o aviso de duas horas de antecipação dado aos russos, permaneceu inoperante, enquanto os tomahawks cruzavam o céu da Síria. Foi uma inatividade calculada? A defesa contra os mísseis norte-americanos sairia muito cara aos russos? Ou o cálculo foi militar, e chegou-se à conclusão de que não seria possível interceptar mísseis de cruzeiro naquelas condições? Seja como for, a fragilidade da Rússia foi exposta: diplomática e militar.
O episódio todo demonstra que a nova repartição do mundo não será feita com apertos de mãos entre chefes de Estado em algum encontro de cúpula no litoral francês. Haverá luta, fogo e sangue. A maior potência mundial está fragilizada, mas segue viva. Ela sabe que terá que ceder, mas vai resistir para ceder o menos possível. Ela decai vindo de um patamar muito superior, enquanto as outras ascendem desde um patamar muito inferior. Enquanto eu escrevo e você lê este artigo, os vários lados fazem as contas: onde, quando e qual a dimensão do conflito? Mas o conflito mesmo parece cada vez mais provável. Ao mesmo tempo, o “onde”, o “quando” e a dimensão fazem muita diferença. Fazem toda a diferença, por exemplo, hoje para o povo Sírio. A guerra é brincadeira de criança e distração juvenil até o momento em que ela começa de verdade. E a má notícia é que ela nem começou.
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