A experiência psicoterapêutica/psicanalítica tem demonstrado largamente que os traumas sublimados costumam cobrar um preço alto pelo seu não enfrentamento e elaboração, condições sine qua non para lidar com ou superar a dor. Quando esse processo não acontece devidamente, o trauma encontra seus mecanismos para dizer que ali está, preservado no seu profundo incômodo, podendo se transformar numa “bomba” para indivíduos e coletividades inteiras, pois os traumas são também coletivos ou quando individuais podem ter sérias consequências coletivas. Essa brevíssima digressão de quem não é especialista (e me perdoem ou corrijam meus amigos(as) psi), mas sob forte inspiração de Maria Rita Kehl, ajuda a pensar o tema da inflexão histórica traumática que representou o golpe militar de 1964, com apoio de segmentos da sociedade civil, destacadamente do meio empresarial e seus aparelhos privados de hegemonia. E, especialmente, nos ajuda a pensar o significado da fraca elaboração coletiva nacional do Brasil do Ame-o ou Deixe-o, com seus exílios, torturas, mortes, censuras e usurpações.
Nesse momento há importantes análises e resgates históricos sobre essa questão: livros, HQs, seminários. E temos obras de referência inescapáveis como a Ditadura do Grande Capital, de Octávio Ianni, os vários trabalhos de René Dreifuss e Sônia Mendonça sobre a ditadura e o empresariado; a Pequena História da Ditadura Brasileira, de José Paulo Netto; obras de Dênis de Moraes; a última parte de A Revolução Burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes; dentre muitos outros cuja leitura e conhecimento é imprescindível.
Mas nosso foco aqui, tentando contribuir para uma elaboração coletiva sobre esse tema no tempo presente, tão delicado para as liberdades democráticas no Brasil, é sobre a importância de não fazermos qualquer concessão ao esquecimento, já que essa postura permite que o trauma desencadeie reações bárbaras daqueles(as) que reivindicam hoje a selvageria política, econômica e social da ditadura militar. Pesquisa de opinião recente da Folha de São Paulo nos conta que eles, felizmente, não são maioria e que a data fatídica do golpe de 1964, que uns insistem em chamar de “revolução”, deve ser desprezada (1). No entanto, 28% da população brasileira pede celebração! Os Clubes Militares e organizações similares se preparam para a festa por sobre os esqueletos e escombros da ditadura – ossaturas nunca encontradas; obras faraônicas que locupletaram as empreiteiras, algumas sequer concluídas; superexploração da força de trabalho brasileira; subserviência aos Estados Unidos etc. E, em nome do barulho dos viúvos da ditadura – a maioria são mesmo homens e ousaria a hipótese de que são majoritariamente brancos -, que se tornaram poder federal entre 2019 e 2022 em mais uma “página infeliz da nossa história”, e realizaram uma tentativa golpista de se perpetuar no poder, cujo ápice foi o infame 8 de janeiro de 2023, alguns pedem o silêncio para não estimular a “polarização”. Lamentavelmente essa foi a postura do governo federal que negociou com as melindrosas cúpulas militares não realizar as “descelebrações”. Foram proibidos eventos do governo federal alusivos ao Golpe de 64 previstos pelo Ministério dos Direitos Humanos comandado pelo respeitado Silvio Almeida, onde destacava-se o lançamento de um museu alusivo ao tema nos moldes dos que já existem em outros países da América Latina como o Chile e Argentina. Neste passo, os militares renunciaram a ordens do dia laudatórias dos anos de chumbo nos quartéis (veremos até onde irão cumprir). Desta forma, o governo eleito contra o neofascista e seus elogios a torturadores como Carlos Brilhante Ustra, e que desejou publicamente que a ditadura tivesse matado e sumido com 30 mil pessoas, optou pelo silêncio. Ainda que compreendamos que o Brasil está sob a sombra do golpismo neofascista que não foi totalmente para as cordas (e, sobretudo, grades), essa não foi uma decisão compatível com a defesa intransigente das liberdades democráticas e com a necessária e tão adiada elaboração desse passado que insiste em retornar como farsa ou tragédia, pesando sobre os vivos, aqui parafraseando Marx em seu brilhante 18 de Brumário.
Vale dizer que, oficialmente, na ditadura pós-64, foram 434 mortos e/ou desaparecidos. E lembrar que as juntas militares receberam oficialmente 6 mil denúncias de tortura, mas apurações das Comissões da Verdade em vários níveis apontam para mais de 20 mil denúncias. A nossa “transição transada” da ditadura para a redemocratização foi marcada pela impunidade dos crimes cometidos naqueles anos entre 1964 e 1984, pelos que se impuseram no poder pela violência institucionalizada. A lei de anistia nos trouxe “a volta do irmão do Henfil” e tantos e tantas outras, mas a transição controlada com mão de ferro, deixou essa gente dos porões, dos paus-de-arara e da usurpação dos recursos públicos à solta. Nessa condição, eles empreenderam ao longo dessas quatro décadas a construção de seu ressurgimento no cotidiano da população brasileira com seu velho discurso reatualizado de “Deus, Pátria e Família pela Liberdade”, agora mediado pelos mercadores da fé, milícias, narcomilícias e toda sorte de arrivistas e suas expressões políticas e econômicas.
O Brasil precisa de memória, justiça e verdade, não de esquecimento e silêncio. Senão, vejamos. No presente, nos deparamos com situações como: o Congresso Nacional ameaçando dar guarida a um investigado mandante do assassinato político de Marielle Franco e Anderson Gomes, o deputado Chiquinho Brazão; instituições policiais em conluio com o crime organizado e que não apuram assassinatos; o sumiço de Amarildo; a absolvição dos policiais que arrastaram Cláudia; o gás em Genivaldo, morto pela PRF; a tortura normalizada nas instituições carcerárias brasileiras; dentre tantas outras, pois uma lista definitivamente não caberia nessas linhas. Esses casos são expressões da ausência de elaboração coletiva do trauma daquela ditadura pós-64, valendo dizer que muito do que temos hoje corroendo e dilacerando o cotidiano da população brasileira nasce com ela, como revelam vários estudos e trabalhos jornalísticos amplamente reconhecidos. Porém, é preciso ir um pouco mais longe e dizer que a ditadura aprofundou elementos de nossa dolorosa formação social marcada por outros períodos de ataque às liberdades democráticas como a ditadura varguista (1937 -1945); pela escravização a partir da diáspora africana, já que no cotidiano quem é mais encarcerado, empobrecido e assassinado são negros e negras; pelo extermínio dos povos originários do Brasil. Ou seja, o silêncio encobriu e encobre a violência que vem de cima – das classes dominantes, proprietárias, e do Estado gestor de seus “negócios comuns” – sobre as maiorias nas cidades e também no campo, com assassinatos seguidos dos que lutam pelo acesso à terra. Portanto, não é surpreendente chegar aonde chegamos, nesse tempo de “perigo na esquina”, no qual setores das Forças Armadas brasileiras querem manter seus privilégios e poderes, e constituir-se como um suposto poder moderador, tese que não se sustenta na Constituição de 1988 e é reivindicada nas hostes militares e bolsonaristas.
Não podemos nem devemos fazer qualquer concessão ao esquecimento nesse momento histórico brasileiro. É hora de fortalecer as inúmeras marchas e atividades previstas para os dias 31 de março e 1 de abril. O neofascista que se diz anarco-capitalista, Javier Milei, da Argentina, colocou em questão os números espantosos da ditadura que lá se instaurou em 1976, e recebeu uma monumental resposta das ruas. Não tenho ilusões de que as nossas serão tão fortes, mas nessa breve nota quero afirmar que os/as que lá estarão são o melhor do Brasil neste presente arenoso, que entendem que sem memória, justiça e verdade, a construção do futuro se torna ainda mais difícil.
Notas
1 Conferir em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/03/datafolha-para-63-data-do-golpe-de-1964-deve-ser-desprezada.shtml
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