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MUNDO

Portugal: o que aconteceu nas eleições legislativas e o que fazer agora?

Abrem-se debates à esquerda. Este texto, escrito ainda no calor do momento, é um contributo inicial a uma discussão, que não pode ser evitada nem apressada, sobre as causas da viragem à direita, a enorme irrupção do neofascismo e as tarefas para a esquerda.

Por Manuel Afonso, de Portugal

As eleições de 10 de março foram as mais marcantes das últimas décadas. Assinalam um novo momento da vida política. Uma nova etapa, mais dura para as classes populares e mais exigente para a esquerda – uma etapa defensiva.

Uma grande viragem à (extrema) direita

Sem aprofundar o tema, há que lembrar que não é possível compreender estas eleições sem ter como ponto de partida esta intervenção anormal, de cariz justiceiro, marcadamente política, do MP articulado com a comunicação social, na e contra a «normalidade democrática». Sem ser preciso entrar em teses «conspirativas», é evidente que esse acontecimento marca as eleições, influencia os seus resultados e, mesmo que não tenha articulação direta com o crescimento da extrema-direita, tem causas comuns e converge objetivamente com ele.

A 10 de março, confirmou-se uma grande viragem à direita polarizada pela extrema-direita. Não uma tradicional «mudança de ciclo», mas uma situação nova em que um partido neofascista desequilibra toda a correlação de forças, abrindo um novo momento de cariz reacionário.

A 10 de março, confirmou-se uma grande viragem à direita polarizada pela extrema-direita. Não uma tradicional «mudança de ciclo», mas uma situação nova em que um partido neofascista desequilibra toda a correlação de forças, abrindo um novo momento de cariz reacionário. A vitória da direita, ainda que ofereça o governo à AD e à Iniciativa Liberal (IL), é conseguida pela dinâmica explosiva do Chega.

Face a 2022, as direitas ganham mais de 1 milhão de votos, alcançando um resultado apenas comparável com a maioria absoluta de Cavaco Silva (sem extrema-direita) em 1991 e muito acima da vitória de Passos e Portas em 2011. O Partido Socialista (PS) perde meio milhão de votos num cenário de maior participação eleitoral, o seu pior resultado do século. A subida dos partidos à esquerda do PS, fica muito aquém do que o PS perde – as esquerdas mais o PS perdem mais de 350 mil votos. O crescimento do Chega é sem dúvida o dado mais importante destas eleições: são 750 mil votos a mais, alcançando mais 1 milhão e 100 mil votos. O facto de o aumento da participação eleitoral quase coincidir com o do Chega (ainda assim, aquém) autoriza a conclusão de que muito deste provém da abstenção, mas não todo.

Este cenário configura uma nova correlação de forças política em que o elemento dominante é a força e a dinâmica de crescimento da extrema-direita e uma direitização da sociedade que parece ser mais estrutural do que conjuntural – o que não significa irreversível. A esquerda de conjunto sai enfraquecida e assinala-se que os resultados que o Bloco e PCP tiveram em 2022 não foi momentâneo, e que abriu espaço ao crescimento assinalável do Livre. Trata-se de uma nova configuração política nacional, mais defensiva e até reacionária que tende a acentuar-se. A resistência a essa ofensiva reacionária, na qual se podem acumular forças para inverter o ciclo, traça as tarefas da esquerda e das lutas sociais para o próximo período. Vejamos agora com mais atenção alguns dos dados e das pistas políticas que eles nos dão.

AD e IL

A AD tem uma vitória política e irá formar governo. É beneficiária direta da viragem à direita e emerge (temporariamente) de uma crise prolongada da direita tradicional. Mas será provavelmente uma vitória de Pirro como a maioria absoluta provou ser para o PS. O resultado da AD foi em linha com a soma de PSD e CDS em 2022 e teve menos votos que em 2015, 2011, 2009, 2005 e 2002. É provável que a governação que agora se inicia, com uma oposição à extrema-direita, abra uma crise de grandes dimensões na direita tradicional, possibilitando a sua ultrapassagem pelas novas direitas radicais.

A IL mantém o número de eleitos e ganha mais 40 mil votos face a 2022. Num cenário de voto útil à direita e com uma liderança mais fraca e desconhecida, mostra uma resiliência importante, que pode ser explicada pelo financiamento milionário que lhe provêm das elites (diretamente ou via o instituto + Liberdade), mas também pelo avanço da ofensiva ideológica ultraliberal entre setores das classes médias qualificadas, em particular os mais jovens. Ambos são fatores marcantes de uma viragem «sociológica» à direita que alça agora os ultraliberais ao governo.

O que explica o crescimento do Chega?

Como já foi dito, o crescimento do Chega é o grande fator destas eleições. Tal era previsível e já o tínhamos assinalado há muito. Abre-se uma discussão sobre as causas desse crescimento, para a qual já demos antes alguns contributos.

A primeira explicação está nas elites: o financiamento do Chega e a promoção das ideias de extrema-direita com a conivência e/ou participação de parte dos média, assim como a ação do poder judiciário e das polícias contra a «normalidade democrática» são faces de uma mesma viragem nas alturas. A crise de 2008 levou a um impasse nos ritmos de crescimento capitalista, sobretudo na Europa, que nunca foi retomado. A elite exige ajustes ainda mais profundos do que os que foram feitos no período da Troika para poder competir com outras nações (semi) periféricas na captação de capital estrangeiro (daí a obsessão com a competição da Roménia, a Polónia, etc.). Os mecanismos tradicionais de gestão burguesa da vida política não têm permitido superar esse impasse – veja-se os queixumes das elites sobre os «políticos», a sua dificuldade em «fazer reformas», o peso do Estado (social), os resquícios de fiscalidade progressiva, as greves, etc. Isso leva a uma aposta em formas mais extremas de combate político pró-capitalista, abrindo espaço (e os cofres) para o Chega.

Ao mesmo tempo, a crise de 2008, e depois a pandemia e a crise inflacionária, deixaram marcas nas classes médias e reconfiguraram as classes trabalhadoras. A crise não superada dos serviços públicos, e o avanço do privado na saúde, educação e outras esferas antes garantidas por provisionamento público, «divorciaram as classes médias do Estado social» – e, desta forma, da referência no regime democrático-liberal. Ao mesmo tempo, fenómenos como a especulação imobiliária, enquanto esmagaram as classes populares, criaram uma camada social privilegiada, desejosa de acabar com todos os mecanismos de solidariedade e direitos laborais e sociais – ou seja, esmagar o «socialismo» e a «extrema-esquerda».

Esta pressão, vinda de cima, atinge também as classes populares. A sucessão de crises operou uma engenharia social de larga escala que mudou as classes populares. Mais gente viu-se obrigada a autoempregar-se; centenas de milhares de trabalhadores foram excluídos da contratação coletiva; avançou a uberização e a entrada no país de centenas de milhares de novos trabalhadores migrantes (sem integração social por políticas públicas e representação democrática) fragmentaram a classe trabalhadora. Na ausência de mecanismos de representação social, contratação coletiva, disputa ideológica antirracista e mobilização de classe unitária, os trabalhadores menos oprimidos veem as novas vagas, racializadas e ultraexploradas como competidores. Um longo lastro de racismo, xenofobia e ciganofobia sistémicos, nunca combatidos pelo Estado e pouco contrariados por parte da esquerda, pôde ser ativado politicamente, como nunca antes, por um partido neofascista.

Assim, a viragem à direita e a irrupção da extrema-direita resultam das profundas mudanças sociais no país (e no mundo) herdadas da soma de crises que vêm de 2008. Uma burguesia insatisfeita com a governação tradicional; novas e velhas classes médias afastadas do Estado social; uma classe trabalhadora fragmentada política e socialmente; a herança colonial e racista, sempre presente, mas agora empolada  – eis os ingredientes da viragem à extrema-direita.

Como sempre na história, só a mobilização popular, e em particular proletária, pode alterar o cenário. A reconstrução de um bloco político das classes populares, em luta por direitos sociais e laborais, liberdades democráticas e atravessado por uma perspetiva antirracista e anticapitalista, é a única forma de enfrentar a extrema-direita. Trazer para o centro da luta de classes os setores mais exploradores e marginalizados –  periféricos, racializados, migrantes, femininos, proletários – em aliança (e não em oposição) com os setores «tradicionais» da classe trabalhadora será determinante para encurralar a minoria reacionária, travar a viragem à direita e iniciar o contra-ataque.

Esquerda: resultados e tarefas

O PS foi um dos derrotados das eleições. Golpeado pela intervenção do Ministério Público, não soube (ou não quis) rearmar-se para uma nova fase. Incapaz de um balanço crítico do costismo e de soluções de esquerda para a habitação, os salários e os serviços públicos, o PS teve uma campanha zigzagueante. Perdeu quase meio milhão de votos, mas ficou acima do resultado de Costa em 2015. Quando forem escrutinados os votos da emigração, o PS pode ficar empatado com a AD. Com o Bloco, PCP, Livre e PAN, teria mais deputados que a AD a IL juntas. Mas Pedro Nuno Santos jogou cedo a toalha ao chão. Assume a derrota antes de tempo e diz votará contra o próximo orçamento de Estado. Contudo, sem se reposicionar à esquerda, com um novo programa e rompendo com o legado da maioria absoluta, esse reposicionamento ficará incompleto e dificultará aquilo por que grande parte do «povo de esquerda» anseia: um campo amplo de oposição à direita que responda na habitação, salário e serviços públicos. Limitar-se a esperar pela crise da direita não é uma estratégia suficiente, mas parece ser a de Pedro Nuno Santos.

O Livre foi um dos grandes vencedores da noite, quase que triplicou a votação e multiplicou por quatro a representação parlamentar. Torna-se um interlocutor incontornável na esquerda, com resultados muito próximos do Bloco e, sobretudo, do PCP. O seu crescimento é uma refração da viragem à direita da sociedade. Setores que antes seguiriam Bloco e PCP, perante a ofensiva mediática contra os «estremos», procuram uma alternativa de centro-esquerda. Ao mesmo tempo, expressa um voto contra o PS, o que é progressivo. Assinala, ao mesmo tempo, um afastamento de setores médios de esquerda do Bloco e do PCP. Sem nunca deixar de dialogar com essa base – e portanto, com o Livre – o caminho para a esquerda combativa é o de reforçar as suas raízes nos setores mais explorados e periféricos da classe trabalhadora e da juventude.

A CDU, reduzida ao PCP, teve o seu pior resultado de sempre, uma tendência que vem de trás. Conseguiu mobilizar a sua base própria, mas não mais do que isso. Há que assinalar que esta fragilização do PCP não expressa uma reorganização positiva pela esquerda, mas antes a face mais vísivel do risco da marginalização da esquerda combativa. É, portanto, negativa. Ao mesmo tempo, o PCP preserva capacidade de mobilização e influência social, pelo que nós, no Bloco, tendo as nossas justas críticas, temos de construir diálogo e alianças para a luta social também com o PCP.

O Bloco de Esquerda resistiu de forma positiva às dificuldades destas eleições e à pressão do voto útil, tendo crescido 30 mil votos e preservando os cinco deputados. A campanha combativa, que gerou uma simpatia popular mais ampla que a votação, e motivou uma ofensiva da direita e dos média, foi correta. Foi acertado identificar a direita e o neofascismo como principais inimigos, sem abdicar de um duro balanço do Governo PS. Foi, num cenário difícil, provavelmente a campanha da esquerda em muitos anos que mais apontou baterias ao grande capital – na questão da habitação, dos juros, das rendas monopolistas, do salário e da saúde privada. As votações mais altas em zonas periféricas e proletárias, assim como o retorno recebido nas ruas, mostram que essa postura abriu diálogo com a população mais explorada (como revelam até alguns estudos de opinião). Nem tudo isso reverteu em votos, mas colocou o Bloco numa melhor posição para responder à perda de base eleitoral e social, aprofundando a sua influência nos setores mais precários da população.

Unidade: uma necessidade existencial

O debate sobre as novas tarefas da esquerda, e em particular do Bloco começa agora. Ficam aqui alguns apontamentos. O primeiro é que há que resistir aos apelos para a moderação: dirão que não podemos propagar o «ódio aos ricos»; que há que deixar de falar da extrema-direita; abandonar a luta feminista, antirracista e LGBT; ser menos «populistas», etc. O crescimento do Livre contribui para essa pressão; assim como a possibilidade (que não pode ser descartada) de unidades pontuais com o PS para combater a direita. Mas é essencial manter a postura anticapitalista demonstrada na campanha. A máxima flexibilidade tática não deve ser confundida com moderação programática. Pelo contrário: há que aprofundar a elaboração programática, em particular sobre a articulação dos eixos classe, raça e género, na senda de construir uma unidade mais ampla das classes populares assente nos seus setores mais explorados. Outros temas merecem mais atenção e centralidade, nomeadamente a luta por Justiça Climática, não como uma forma de alarmismo catastrofista, antes como uma visão global de transição ecossocial em todas as instâncias da vida – focada, naturalmente, na rápida redução de emissões.

O centro da tática será, mais do que nunca, o combate à direita e ao neofascismo. Apesar de isso ser algo óbvio, é normal que os perigos com que nos deparamos não estejam suficientemente nítidos. A luta contra o neofasismo é a tarefa histórica que nos coube viver. O neofascismo, o Chega e afins, representam um projeto de subversão das conquistas democráticas, de esmagamento da esquerda e subordinação absoluta de quem trabalha –  não são uma mera direita radicalizada, mas uma ameaça existencial.

O centro da tática será, mais do que nunca, o combate à direita e ao neofascismo. Apesar de isso ser algo óbvio, é normal que os perigos com que nos deparamos não estejam suficientemente nítidos. A luta contra o neofasismo é a tarefa histórica que nos coube viver. O neofascismo, o Chega e afins, representam um projeto de subversão das conquistas democráticas, de esmagamento da esquerda e subordinação absoluta de quem trabalha –  não são uma mera direita radicalizada, mas uma ameaça existencial. Não há luta sindical, social, climática ou contra a guerra que possa contornar isso. A reafirmação de uma esquerda anticapitalista de combate, a disputa e organização das classes populares são caminho. Mas o determinante é unir todos os explorados e oprimidos através da unidade das organizações que os representam – a esquerda política, social e sindical. As unidades com pontuais com o PS, serão necessárias, mas sempre subordinadas a uma estratégia à esquerda.

Concluindo, a ameaça às classe trabalhadoras e à esquerda é existencial. Não que estejamos perante um esmagamento iminente – temos forças acumuladas para lutar. Mas o acantonamento, a autoafirmação marginal, à espera de dias melhores, é mais desistência que perseverança. É necessário recompor um campo amplo à esquerda – à esquerda do PS, mesmo sem excluir unidades com ele. A tarefa é travar, o quanto antes, a ascensão da extrema-direita e acumular forças para uma contra-ofensiva à esquerda. Pode levar tempo, mas é o único caminho. Estas eleições mostram que nem Bloco nem PCP, menos ainda o Livre, o farão sozinhos. A unidade das esquerda, na lutas sociais, mas também na disputa política global, com mobilizações e iniciativas políticas públicas conjuntas, são os primeiros passos a dar. Recompor um campo das esquerdas e do setores populares para resistir e contra-atacar é a tarefa deste ciclo político. O risco de ficar para trás é a marginalidade ou a ultrapassagem. A unidade das esquerdas – a chamada tática da Frente Única – pode tomar várias formas e há que debater como se pode efetivar taticamente a cada momento. Mas é incontornável.

Juntos para resistir, unidos para contra-atacar, à esquerda, sem cedências nem sectarismos

Original em O que aconteceu nas eleições legislativas e o que fazer agora?