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MUNDO

Quando “nunca mais” se torna um grito de guerra

Em uma guerra israelense que foi adaptada a um modelo do Holocausto, é obsceno que um apelo para parar de matar mais seja agora lido como fracasso moral.

Por Natasha Roth-Rowland. Com tradução de Waldo Mermelstein, do Esquerda Online.
Chaim Goldberg/Flash90

Um comboio de tanques israelenses ao pôr do sol perto da fronteira sul de Israel com Gaza, 12 de outubro de 2023.

Em uma entrevista de 60 minutos, menos de uma semana após o ataque do Hamas ao sul de Israel, que matou mais de 1.400 israelenses e viu mais de 200 sequestrados para a Faixa de Gaza, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que o movimento islâmico palestino “se envolveu em uma barbárie que é tão relevante quanto o Holocausto”. A avaliação se somou a um rol de declarações de políticos e comentaristas israelenses, americanos e de outros países, que vincularam explicitamente os massacres de 7 de outubro ao genocídio nazista, seja citando os ataques como a maior perda de vidas judaicas desde a Segunda Guerra Mundial, seja retratando o Hamas como sucessores nazistas ou nazistas.

A enviada por Biden para monitorar o antissemitismo, Deborah Lipstadt, por exemplo, tuitou no dia seguinte ao ataque que este foi “o ataque mais letal contra judeus desde o Holocausto” e, pouco tempo depois, o Museu do Holocausto dos EUA publicou um tuíte semelhante. Políticos israelenses também ajudaram a impulsionar esse discurso. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse ao chanceler alemão Olaf Scholz na semana passada que “o Hamas são os novos nazistas (…) E assim como o mundo se uniu para derrotar os nazistas… o mundo tem que estar unido atrás de Israel para derrotar o Hamas.” Netanyahu expressou sentimentos semelhantes ao presidente francês, Emmanuel Macron, na terça-feira.

O valor retórico de carimbar seus inimigos como nazistas – o que a  direita israelense e seus apoiadores frequentemente fazem quando se fala em falar sobre palestinos – é a maneira como sugere, implícita ou explicitamente, que há apenas um curso de ação lógico, até mesmo moral: a eliminação completa dos designados como nazistas e de qualquer pessoa que seria considerada afiliada a eles.

Assim o discurso atual é inundado de apelos descarados por genocídio e limpeza étnica, emitidos a partir de um leque angustiantemente amplo de fontes, e alimentado pela ideia de que, nas palavras de  um colunista do jornal mais lido de Israel, “o Hamas e os habitantes de Gaza são a mesma coisa”. 

De fato, a invocação constante do Holocausto parece ter feito pouco para sensibilizar aqueles que pedem a destruição de Gaza para as lições do Holocausto. Além das exigências de assassinatos em massa vingativos e das abundantes referências aos palestinos como “animais”, imagens nazistas também têm circulado entre hasbaristas (1) nas redes sociais; em um desenho que poderia ter saído direto de Der Stürmer (2), uma bota das IDF (Forças de “Defesa” de Israel é retratada prestes a pisar em uma barata com a cabeça de um combatente do Hamas.

Palestinos procuram sobreviventes após ataque aéreo israelense em Khan Younis, sul da Faixa de Gaza, em 14 de outubro de 2023. (Atia Mohammed/Flash90)

A ironia é transparente e grotesca: o próprio tipo de propaganda obscena que ajudou a alimentar atrocidades inimagináveis está sendo adotado para, ostensivamente, evitar uma repetição dessa mesma história – e justificar os assassinatos em massa e punições coletivas a uma etnia que estão em curso.

É cruel, num momento em que há uma preocupante deterioração do conhecimento sobre o Holocausto, testemunharmos que a memória do Holocausto esteja sendo aplicada como uma faca de dois gumes. O que deveria ser um conjunto universalista de lições aplicadas a atrocidades em todos os lados está sendo distorcido para validar objetivos violentos e etnonacionalistas. Como enfatizaram as centenas de manifestantes judeus e os que se associaram a eles que lotaram o Capitólio dos EUA na semana passada para protestar contra a guerra de Gaza, “nunca mais significa nunca mais para ninguém”.

De fato, se o legado do Holocausto for interpretado no sentido de dar a Israel carta branca para enjaular, bombardear, matar de fome, desidratar e, de outra forma, exercer poder necropolítico sobre os 2,3 milhões de palestinos em Gaza – quase metade deles crianças – então “nunca mais” não soa apenas como falso. Torna-se um apelo à violência descontrolada, um grito de guerra numa campanha de retaliação que visa a eliminação.

Essa “holocaustização” do que está acontecendo em Israel-Palestina coloca a todos nós – judeus, palestinos, aqueles na região e na diáspora – em um precipício perigoso. Operar nesse quadro, segundo a sua lógica interna, é condenar-nos a uma guerra de soma zero, cujos termos são claros e devastadores: um conflito que só pode ser resolvido pela aniquilação de um lado ou de outro. É uma receita para o derramamento de sangue perpétuo – uma exortação, nas palavras de Netanyahu, a “viver para sempre pela espada”.

Não é preciso ir muito longe para encontrar evidências de que essa mentalidade está a caminho de ter uma aceitação mais ampla. O Departamento de Estado dos EUA instruiu seus diplomatas a evitar o uso de palavras como “cessar-fogo” ou “desescalada”. Um venerado grupo judeu de 122 anos em Boston acaba de ser  expulso da organização judaica da cidade depois de participar de um protesto pedindo um cessar-fogo. Em uma guerra que foi adaptada a um modelo do Holocausto, um apelo para parar de matar mais agora é interpretado como fracasso moral.

Um menino palestino carrega uma criança enquanto foge de um ataque aéreo israelense na Cidade de Gaza, em 11 de outubro de 2023. (Mohammed Zaanoun/Activestills.org)

Qual é, então, o objetivo aqui? Quanta ruína em Gaza, que está se espalhando para a Cisjordânia, é considerada necessária? E mesmo quando a matança em massa terminar, o que fazer? Enquanto não houver uma solução política – uma opção que este enquadramento do Holocausto torna impossível – a violência catastrófica persistirá. E vai, como a história recente mostrou, piorar muito.

É verdade, como observou Adam Shatz  na London Review of Books, que há mais do que mero cinismo em jogo nas comparações do Holocausto que proliferam à nossa volta, sobretudo pelos israelenses e pelos próprios judeus da diáspora: como ele bem aponta, os ataques do Hamas iluminaram “a parte mais brutal da psique [dos judeus]: o medo da aniquilação”. A ativação desse medo está agora sendo exacerbada por relatos ameaçadores de ataques antissemitas em vários países, de violência interpessoal a sinagogas sendo atacadas e até parcialmente destruídas.

Esse reconhecimento, no entanto, não diminui os perigos de retratar os militares israelenses como estando presos em uma luta à morte contra um mal extremo. Além disso, dada a enorme assimetria entre as capacidades militares israelenses e palestinas, e o fato de Israel ser apoiado por uma superpotência global, só há um lado nesta equação que está sendo ameaçado de potencial genocídio, os palestinos.

Isso em nada contradiz o fato de que, como o Hamas impiedosamente demonstrou em 7 de outubro, os judeus israelenses estão pagando cada vez mais um preço pelos contínuos abusos  de Israel. Como meus colegas Meron Rapoport  e Amjad Iraqi escreveram na revista +972, os ataques dissiparam definitivamente a ilusão de que Israel pode para sempre subjugar, segregar, deslocar e executar sumariamente palestinos com uma reação mínima. Mas, por mais assustadores e chocantes que tenham sido os ataques de 7 de outubro, eles não são um indicador de que os judeus – em Israel ou em qualquer outro lugar – enfrentam a violência em massa apoiada pelo Estado da maneira que os palestinos o fazem e o tem feito há décadas.

Os palestinos, sobretudo os de Gaza, estão sob a ameaça muito real de uma segunda Nakba, se é que a Nakba tenha em algum momento terminado. Os ecos de 1948 estão em todo lado: mais de 7.000 palestinos mortos em três semanas de ataques aéreos israelenses e 1,4 milhão de deslocados; bairros arrasados e “cidades de barracas”; conversas sobre expulsões em massa para o Sinai e a disputa política sobre o destino de potenciais refugiados. Aqui, a história se repete. Além disso, assim como as comunidades judaicas em todo o mundo, as comunidades muçulmanas também estão enfrentando um aumento nos crimes de ódio violentos.

Há, portanto, duas questões imediatas em jogo: acabar com os bombardeios a Gaza e garantir a libertação de reféns israelenses e outros mantidos em cativeiro lá. Invocar o Holocausto nas atuais circunstâncias terríveis não nos aproxima desses objetivos – apenas os afastam ainda mais. Pode dar a ilusão de conceder autoridade moral e clareza aos procedimentos, mas em uma guerra que já matou mais de 8.000 pessoas cujo número segue crescendo, tais afirmações são enganosas na melhor das hipóteses e cínicas, na pior. Certamente, com toda a discussão atual sobre o Holocausto, poderíamos honrar seu legado melhor do que desta forma 

Natasha Roth-Rowland é editora e escritora da  Revista +972 Magazine. Ela é doutora em História pela Universidade da Virgínia e escreveu sua dissertação sobre a história da extrema direita judaica em Israel-Palestina e nos Estados Unidos. Natasha anteriormente passou vários anos como escritora, editora e tradutora em Israel-Palestina, e agora em Nova York.

Este artigo foi produzido em parceria com a Diaspora Alliance
Notas
1 Nota da edição brasileira do EOL: Este termo se relaciona com hasbara, que é explicação em hebraico e se refere à propaganda israelense para defender as ações do estado.
2 Nome de semanário nazista que existiu na Alemanha de 1923 até o final da II Guerra