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Problemas práticos da intervenção parlamentar revolucionária

Por Gloria Trogo e Vinícius Zaparoli

No final de 2021, publicamos uma primeira reflexão sobre a atuação parlamentar dos socialistas em nosso tempo. Nosso objetivo era apenas começar um debate coletivo sobre esse tema tão importante e quase nunca discutido entre nós marxistas revolucionários.

Agora, a propósito do aniversário de cinco anos da Resistência (corrente interna do PSOL), nossa intenção é desenvolver um pouco mais a discussão, tratando, dessa vez, dos problemas práticos que surgem a partir da nossa intervenção cotidiana nas Casas legislativas.

Nossa referência teórica para pensar essa questão são as teses O partido comunista e o parlamentarismo, escritas na forma de resoluções e aprovadas no 2º Congresso da Internacional Comunista em 1920. Com o presente texto, queremos fazer o esforço de comparar as conclusões dos bolcheviques com a pequena e inicial experiência de nossa corrente.

O coração das Teses

Para os bolcheviques, o Parlamento era “um instrumento de mentira, de fraude, de violência e um moinho exasperante de palavras”. Em linhas gerais, o que podemos dizer da validade dessa visão em perspectiva histórica? O Parlamento foi protagonista de mudanças sociais significativas durante o século XX? Foi o contrário? Foi se adaptando e se consolidando como uma poderosa máquina de contenção social? Nos momentos mais agudos da luta de classes, foi no Parlamento que se gestaram grandes transformações ou ele foi um palco de golpes e retrocessos?

Pensamos que, nesse ponto, confirmou-se a hipótese das Teses:

“Perante as devastações, as pilhagens, as violências, os atos de banditismo e as destruições levadas a cabo pelo imperialismo, as reformas parlamentares, desprovidas de espírito de continuidade e estabilidade, concebidas sem um plano de conjunto, perderam toda a eficácia prática para as massas trabalhadoras.”

A verdade é que as reformas parlamentares não só foram desprovidas de continuidade e estabilidade como também estão cada vez mais raras e, pior ainda, o Parlamento se transformou num palco de aprovação das contrarreformas. Portanto, se é verdade que, no começo do século XX, a atividade parlamentar já representava uma atuação no “campo do inimigo”, hoje ela é ainda mais marcada pela posição defensiva. Atuando na contracorrente, os parlamentares da esquerda encontram-se em ínfima minoria nas Casas legislativas.

A indagação que surge dessa constatação é: como o Parlamento pode ser um ponto de apoio para a retomada das lutas populares em prol de uma transformação radical do sistema? Essa é uma pergunta central para nossa atuação parlamentar cotidiana. Acreditamos que as resoluções da Internacional Comunista, embora elaboradas há mais de cem anos, dão um caminho para respondê-la, como podemos ver nos trechos a seguir:

“11) A tribuna do Parlamento burguês é um desses pontos de apoio secundários. Em nenhum dos casos se pode invocar contra a ação parlamentar o fato do Parlamento ser uma instituição do Estado burguês. Com efeito, o Partido Comunista não se encontra aí para desenvolver uma atividade orgânica, mas para ajudar as massas, do interior do Parlamento, a destruir pela sua ação independente o aparelho de Estado da burguesia e o próprio Parlamento.
12) Esta ação parlamentar que consiste, essencialmente, em utilizar a tribuna parlamentar para fazer a agitação revolucionária, para denunciar as manobras do adversário, para agrupar em torno de certas idéias as massas prisioneiras de ilusões democráticas e que, sobretudo nos países atrasados, voltam ainda os seus olhares para a tribuna parlamentar, esta ação deve estar totalmente subordinada aos objetivos e às tarefas da luta extraparlamentar das massas. A participação nas campanhas eleitorais e a propaganda revolucionária de cima da tribuna parlamentar têm uma importância particular para a conquista política dos setores da classe operária que, como as massas trabalhadoras rurais, permaneceram até então afastadas da vida política.”

Em nossa opinião, está aí o núcleo central das Teses, seu coração: a compreensão de que a intervenção parlamentar é um ponto de apoio secundário para a intervenção política na luta de classes. Aliás, não só secundário, mas também subordinado à ação direta no movimento de massas. Dito de outro modo, um entendimento de que a atuação no Parlamento é tática e deve estar sempre a serviço da mobilização, da auto-organização e do aumento do nível de consciência da classe trabalhadora.

Essa compreensão contida nas Teses mantém sua vitalidade até hoje em dia, uma vez que combina a nossa estratégia (ajudar as massas a destruir pela sua ação independente o Estado capitalista) com as tarefas preparatórias dos períodos em que a tomada do poder não é uma possibilidade concreta.

A tarefa dos revolucionários no Parlamento hoje

A definição de que a atuação parlamentar é tática, secundária e subordinada em relação à atuação extraparlamentar é fundamental, mas não encerra a nossa discussão. A partir daí, precisamos debater qual é a tarefa dos revolucionários no Parlamento hoje, ou seja, os objetivos políticos dessa intervenção no momento presente, na atual etapa da luta de classes.

No artigo Reflexões acerca das “Teses sobre o parlamentarismo”, Henrique Canary aponta uma direção para respondermos a essa questão. Ele diz:

“Do exposto até aqui, conclui-se que a atuação parlamentar revolucionária no século 21 deve levar em consideração o caráter prolongado da luta por dentro do parlamento. Não estamos em uma situação como a descrita pelas ‘Teses’, uma espécie de antessala da tomada do poder. Em um certo sentido, nossa atuação parlamentar se aproxima mais do que era a atuação parlamentar na época da I Internacional (…).”

Depois, conclui como seria essa intervenção, atualizando para nosso tempo o que significa usar os parlamentos burgueses para a agitação política revolucionária. Abaixo, a síntese de tal atualização:

“Esse é o tamanho do retrocesso que vivemos: voltamos a um nível de consciência de classe comparável ao da aurora do movimento operário, quando este apenas despertava. Por isso, a tarefa dos parlamentares revolucionários, além de muitos outros elementos, deve consistir em um diálogo permanente com as massas que ainda nutrem esperanças e ilusões nas instituições parlamentares. Segue sendo necessário destruir o parlamento e substituí-lo por um Estado soviético. Mas, para isso, é preciso acessar as massas, entrar em contato com suas necessidades presentes, seu real estado de ânimo e consciência. Essa tarefa pode e deve ser feita também por fora do parlamento, mas o parlamento é uma ferramenta poderosa que precisa ser utilizada pelos revolucionários.”

Pensamos que o trecho acima dá a dimensão real do enorme desafio que temos pela frente: realizar uma atuação socialista no Parlamento quando a revolução não é parte do horizonte político da maioria do proletariado. Podemos apostar que serão muitos anos de intervenção parlamentar, sob pressões da institucionalidade e riscos de adaptação, mas sem a qual não é possível ampliar a influência das ideias (da política e do programa) socialistas entre o povo explorado e oprimido, sujeito da transformação social a que aspiramos.

Problemas práticos da atuação parlamentar revolucionária

Nas teses bolcheviques, há pontos que tratam das medidas políticas que eles julgavam necessárias para garantir uma atuação revolucionária no Parlamento. Tais medidas referem-se a problemas práticos cotidianos que os partidos e correntes políticas enfrentam ao se depararem com o desafio triplo de atuar no Parlamento, intervir no movimento de massas e construir suas organizações.

Entre esses aspectos concretos, estão a escolha das candidaturas, o controle coletivo sobre os mandatos e a atitude (comportamento) do parlamentar revolucionário. De acordo com as Teses, o tratamento correto dessas questões é imprescindível para suportar as pressões e os riscos que citamos anteriormente.

Com certeza, as orientações presentes na resolução de 1920 não podem ser diretamente transferidas para a atualidade. Essas questões precisam ser mediadas pela situação política e pelo estágio de construção dos partidos socialistas. No entanto, seu sentido geral e sua essência são um guia ainda útil.

A escolha das candidaturas

Para os bolcheviques, as medidas para assegurar uma intervenção revolucionária no Parlamento começavam com a escolha do parlamentar, ou seja, das suas candidaturas, como podemos ver na seguinte passagem:

“O partido comunista em seu conjunto e seu Comitê Central devem estar seguros, desde o período preparatório anterior às eleições, da sinceridade e do valor comunistas dos membros do grupo parlamentar comunista. (…) Os Comitês Centrais só devem aprovar as candidaturas de homens que durante longos anos tenham dado provas indiscutíveis de sua abnegação pela classe operária.”

Segundo as Teses, só poderiam ser candidatos militantes provados, por muitos anos, na luta de classes e que gozassem da confiança da organização. Os membros da Internacional Comunista pensavam assim, provavelmente, porque os parlamentares eram os principais porta-vozes do partido, estavam expostos à repressão e a muitas pressões políticas e materiais. Por isso, representar os comunistas no Parlamento era uma tarefa importantíssima, que exigia preparação e decisões coletivas.

As preocupações expressas na resolução de 1920 são um importante alerta. Atuar no Parlamento é jogar no campo do inimigo, é uma tarefa de exposição pessoal, de riscos severos, de intensa responsabilidade. Como parte de um projeto político coerente, pensamos igualmente ser extremamente relevante a escolha das pessoas que vão cumprir essa tarefa. Nesse sentido, as orientações das Teses permanecem relevantes para nós, mas necessitam de adaptação à atual situação política e ao estágio de desenvolvimento do movimento socialista.

Antes de tudo, os testes que a luta de classes nos impõe hoje em dia são qualitativamente diferentes daqueles a que estavam submetidos os dirigentes da III Internacional, como a clandestinidade, a guerra civil etc. Porém, existem as provas do nosso tempo: a disposição militante, a resiliência, a subordinação às decisões coletivas, as renúncias pessoais que precisam ser feitas para ser parte de uma organização socialista.

Por outro lado, experiência não pode ser confundida com idade, pois há uma geração de jovens que está protagonizando os profundos conflitos sociais dos últimos anos e que pode (e deve) se expressar também em candidaturas.

Além disso, a seleção dos candidatos precisa levar em consideração a “sinceridade e o valor comunista” da militância que irá assumir a tarefa, entretanto deve também se basear em critérios políticos e táticos, a depender de qual tema programático a candidatura quer priorizar.

Nesse sentido, que lição podemos tirar da resolução dos anos 20, a qual afirmava que os candidatos deveriam ser os operários e não os advogados e jornalistas? Essa opinião, em nossa visão, obedecia a um critério político de classe: expressar na candidatura o projeto político que queremos construir e representar na candidatura a vanguarda das lutas do período.

Atualmente, existe uma vanguarda ativista no mundo que representa uma conexão com processos de resistência e bandeiras extremamente urgentes, como o antirracismo, o feminismo, a luta contra a LGBTIfobia, a luta por justiça socioambiental, entre outras.

Dessa forma, a escolha de candidatas mulheres, de negras e negros e de representantes da população LGBTQIA+ deve ser um processo consciente, que parte da compreensão de quem são os alvos prioritários da extrema direita hoje e do reconhecimento de um movimento progressivo que busca visibilidade e participação de setores que sempre foram excluídos da política no capitalismo. Essa escolha tem uma profunda conexão com a morfologia da classe trabalhadora brasileira, com a maioria social do nosso país.

O controle coletivo sobre o mandato

Outra medida imprescindível para os membros da III era o controle coletivo da organização, primordialmente de sua máxima direção, sobre o mandato e o parlamentar. Nas Teses, os bolcheviques apresentam assim sua orientação:

“Uma vez encerradas as eleições, é atribuição exclusiva do Comitê Central do partido comunista a organização do grupo parlamentar, esteja ou não, nesse momento, o partido na legalidade. A eleição do presidente e dos membros do secretariado do grupo parlamentar deve ser aprovada pelo Comitê Central. O Comitê Central contará no grupo parlamentar com um representante permanente que goze do direito de veto. Em todos os problemas políticos importantes, o grupo parlamentar está obrigado a solicitar as diretrizes prévias do Comitê Central.”

Julgamos que essa orientação é extremamente importante atualmente. Na Constituição brasileira, está escrito que o mandato parlamentar é personalíssimo. O parlamentar, institucionalmente, tem poder absoluto sobre o mandato, ele que nomeia e exonera assessores, que contrata serviços com a verba de gabinete, que decide o que vota e quais projetos propõe.

Por isso, além de critérios rígidos de escolha do parlamentar, é muito necessário um acompanhamento permanente do mandato e da atividade do parlamentar feito pelas instâncias internas da organização, em especial de suas direções, que devem ser as responsáveis pela intervenção parlamentar do partido e/ou das correntes.

O trecho das Teses que trata desse problema se concentra nos elementos políticos do acompanhamento coletivo do mandato. Talvez na época as questões materiais não tinham a relevância que possuem hoje em dia. Desse modo, para complementar o conteúdo da resolução da década de 20, vale ressaltar que o controle coletivo da organização do mandato necessita se estender também para seu aparato.

A atitude do parlamentar revolucionário

O terceiro tema que queremos destacar, o qual foi tratado com atenção pela resolução da Terceira Internacional, são as orientações a respeito do comportamento do parlamentar. Os bolcheviques acreditavam, cremos que com razão, que a atitude do parlamentar, seja no interior do Parlamento ou no movimento de massas, tinha uma relação direta com a estratégia.

Há dois trechos nas Teses que queremos citar para entendermos a relevância que essa questão teve para os congressistas de 1920. São eles:

“O deputado comunista está obrigado a colocar-se à cabeça das massas proletárias, na primeira fila, bem à vista, nas manifestações e nas ações revolucionárias”
(…)
“Todo deputado comunista no parlamento está obrigado a recordar que não é um ‘legislador’ que busca uma linguagem comum com outros legisladores, mas um agitador do partido enviado para atuar junto ao inimigo para aplicar as decisões do partido.”

Na primeira passagem, é possível notar como a compreensão de que o mandato deve estar a serviço das mobilizações da classe trabalhadora se expressa nesse tema. O parlamentar é um indivíduo que, em geral, tem grande exposição na imprensa e nas redes sociais. Portanto, quando ele se coloca à frente das ações do proletariado, ajuda a ampliar a visibilidade da luta e da pauta.

Essa orientação se choca com uma postura institucional de não participar dos processos da luta de classes, especialmente dos mais radicalizados, para não arriscar o mandato e/ou os direitos políticos do parlamentar. Como existe imunidade parlamentar em muitos países, a obrigação do parlamentar socialista é, na verdade, usar suas maiores proteções jurídicas a favor do movimento de massas.

Em nosso contexto, esse comportamento pode ser parcialmente flexibilizado diante das ameaças da extrema direita. Sabemos que é crescente a violência política contra parlamentares de esquerda, sobretudo contra mulheres negras e lideranças LGBTQIA+. Por isso, podem ser necessários protocolos defensivos temporários para a defesa da vida, da integridade física e da saúde mental de nossas representantes.

Na segunda passagem, outro elemento estratégico das Teses se revela: a intervenção parlamentar enquanto uma plataforma para fazer agitação política revolucionária, ou seja, para ajudar no desenvolvimento da consciência política do povo trabalhador e oprimido.

A postura de um socialista no Parlamento precisa privilegiar as questões mais sentidas pela nossa classe, os temas mais importantes da luta de classes no momento. Isso não passa apenas pela escolha do assunto, mas também pela linguagem, pela forma de comunicação.

Quando um revolucionário usa a tribuna parlamentar, ele deve se dirigir à população que poderá ter contato com seu discurso e, desse modo, não se deixar pressionar pela diplomacia comum nas Casas legislativas, tampouco pela opinião dos demais parlamentares, em sua maioria representantes dos interesses da burguesia.

Um mandato a serviço da política e da construção da organização

Por fim, acreditamos que uma possível síntese da essência das Teses para os dias de hoje é a compreensão de que um mandato revolucionário deve estar a serviço da política e da construção partidária. Nesta etapa da luta de classes, na qual a tomada do poder não é uma tarefa imediata, neste momento histórico de acumulação e preparação, o mandato de uma corrente revolucionária precisa ser um amplificador de suas posições políticas e um catalisador para a organização de militantes e o fortalecimento da atuação nos movimentos sociais.

Essa conclusão parece óbvia, mas é muito difícil de aplicá-la na prática. A dificuldade vem de dois lados. Em primeiro lugar, vem das pressões institucionais e materiais que a atuação no Parlamento cria, uma vez que o Poder Legislativo é marcado por negociações, diplomacia e privilégios.

Em segundo, vem da tendência de os mandatos ganharem autonomia em relação aos partidos e às correntes, pois eles são coagidos a responder somente às pautas das Câmaras e Assembleias, aos pedidos de ajuda e apoio de muitos setores sociais etc. Dessa forma, as prioridades políticas e o trabalho de base da corrente ou do partido acabam não se refletindo nas iniciativas dos mandatos e dos parlamentares.

Atualmente, esses problemas se potencializam. As correntes de esquerda são muito menores que os grandes partidos socialistas da primeira metade do século passado. Além disso, há muito mais confiança nas instituições do regime. Um parlamentar possui um prestígio social e uma credibilidade que as correntes políticas não têm. Se levarmos em consideração a influência, a visibilidade e o aparato, os mandatos são muito mais fortes que as organizações coletivas.

Desse modo, existe um perigo real de, com o passar do tempo, as correntes e partidos terminarem se colocando a serviço dos interesses dos mandatos (que é basicamente o aumento de sua base eleitoral) e não o contrário. É justamente por causa disso que as medidas concretas propostas pelos bolcheviques são imprescindíveis para nós.