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TEORIA

Uma resposta à UP: Combater o conservadorismo e o moralismo burguês de dentro das fileiras da esquerda

Daniel Silva e Sarah Cordeiro, do Afronte-Sergipe
“Abaixo o trabalho doméstico que escraviza!” Autor desconhecido, 1930
Divulgação/Boitempo Editorial

Nos últimos dias do mês de janeiro tivemos acesso a uma publicação assinada por companheiros da UP, veiculada por seu jornal, com o título “Os Comunistas e a Pornografia”. A audiência negativa perante setores organizados da esquerda e vanguarda independente gerou certa repercussão na juventude por evidenciar desvios conservadores e perigosamente moralistas num partido que reivindica- se comunista. Mas, para quem acompanha a inconsistente linha política da organização e conhece seus outros posicionamentos que seguem este caminho (como sua indefensável política de criminalização das drogas), sabe que este não é um fato isolado.

Por sentirmos a necessidade de dar um contraponto à luz do marxismo e das fundamentais contribuições que o movimento LGBTQIA+, o feminismo e os coletivos negros dão, dedicaremos algumas linhas para colaborar na formação crítica da nossa geração.

Um problema teórico e de tradição política

Nossa polêmica não está atrelada ao repúdio ou não da indústria pornográfica. Sejamos objetivos aqui: nossa organização defende o fim da exploração do corpo das pessoas pelo capitalismo, seja na indústria têxtil, automobilística, de calçados, cultural ou pornográfica. Esta última em especial é uma das líderes em abusos contra trabalhadores, em especial as mulheres cis e trans, geralmente privadas de acesso à direitos, atividades sindicais e condições de segurança. O mercado é uma máquina de moer pobres e oprimidos e é impensável nossa convivência pacífica com este restrito grupo de bilionários. Entretanto, a saída perpassa a auto organização de trabalhadores do sexo e apoio às suas lutas por garantias e direitos. O caminho não pode ser o de marginalização, criminalização e conservadorismo proposto pela moral reacionária. Se o elefante já foi retirado da sala, podemos seguir.

A forma como a UP realiza este debate publicamente é problemática. Vejamos a seguir:

“Podemos afirmar que a nossa cultura está completamente pornificada. Cenas de sexo explícito em novelas e filmes, músicas com conteúdo pornográfico, coreografias que simulam atos sexuais, propagandas com
teor sexualizado, entre outros exemplos nos mostram como a indústria pornográfica se naturalizou em nossa vida. O que antes era considerado como pornô, hoje faz parte da cultura pop, enquanto que a pornografia
atual se consolida explorando os limites da degradação e da violência.”

Este trecho retirado do artigo nos leva a nos questionar: qual o objetivo desta publicação? Para a UP, qual é o real problema da pornografia? Somos levados a crer que a questão que motivou os companheiros a escrever é o “fato” de se existir sexo demais no mundo, onde jovens são levados a se bestializarem por meio da manipulação da sexualidade. As danças estão sensuais demais, as letras de música possuem um conteúdo muito erótico, o teatro, o cinema e as novelas contém cenas de “sexo explícito”. Camaradas, este pequeno parágrafo abre um precedente perigoso na esquerda brasileira do século 21. Expõe um pensamento reacionário e, portanto, conservador, baseado na tática do pânico moral, que abre brechas para perseguições e censuras à manifestações artísticas. A UP acredita que as produções culturais de jovens, LGBTs e mulheres, que possuem algum teor sexual, erótico ou pornográfico, deve ser jogado numa lata de lixo junto da indústria pornô? Mais um:

“O machismo, enquanto estruturante da nossa sociedade, é uma das principais armas do capitalismo para desunir os trabalhadores e é por isso que são eles, os homens trabalhadores, os destinatários do bombardeio da pornografia em suas diversas formas de manifestação.”
[…]
“A pornografia aparece como o instrumento ideal para mercantilizar nossa sexualidade, gerar lucro para os capitalistas e para embrutecer a classe trabalhadora. A visão de mundo dos ricos, que não tem empatia,
compaixão ou qualquer sentimento humano pelo outro, coloca nessa indústria tudo aquilo que pensa sobre as mulheres, os negros, os LGBTs, enfim, o povo como um todo.”

Os companheiros acreditam que a “degeneração” sexual é a principal arma da burguesia para impor sua dominação sobre nossos corpos. Infelizmente, essa posição não encontra respaldo no cânone do marxismo revolucionário, um erro teórico. Para a vasta contribuição das e dos marxistas, os burgueses se valem mais, muito mais, do casamento e da monogamia. O casamento é um dos maiores reprodutores do individualismo na nossa cultura. Essa compreensão é fundamental para as formulações que pretendem pautar uma verdadeira revolução nos costumes. A liberdade sexual, a naturalização do corpo e as formas de relacionamentos não-monogâmicas não podem ser vistas como conquistas menores da revolução:

“Os piores inimigos da mulher são a moral tradicional e a concepção conservadora acerca do casamento” KOLLONTAI, Alexandra.
“A moral sexual burguesa (na qual o essencial consiste em considerar a vida sexual não de maneira natural, mas em ligação estreita com a ordem social atual, é negar a sexualidade, ter uma atitude tímida e recuada em
relação a ela) se encontra cravada na nossa pele, em nós, comunistas, mais profundamente do que possamos crer” KOLLONTAI, Alexandra.
“No entanto, a legislação não interfere em qualquer relação sexual entre dois indivíduos adultos que não seja forçada e seja livre de pressões. O intercurso sexual desse tipo é considerado um assunto das pessoas
envolvidas. A questão da moralidade pública, portanto, é irrelevante para a legislação. Atos de homossexualidade, sodomia e qualquer outra forma de prazer sexual têm o mesmo status legal que as supramencionadas. Enquanto a legislação europeia considera tudo isso uma ofensa à moral pública, a
legislação soviética não faz qualquer diferença entre a homossexualidade e o chamado sexo “natural”. Todas as formas de intercurso são tratadas como questões pessoais. Processos criminais só são iniciados em casos de violência, abuso ou violação dos interesses de outros.” BATKIS, Grigory.

Além disso, ao final do texto os camaradas abordam a falta de amor nas relações sexuais como um dos problemas do sexo sob o capitalismo, o que é, na verdade, uma das grandes expressões da moral burguesa e conservadora.

“É um sentimento de profundo respeito e amor ao próximo, ao povo e à humanidade que move um comunista e esse sentimento deve estar presente em todos os aspectos da nossa vida, inclusive o mais íntimo, o sexual.”

Não pode fazer parte da moral revolucionária uma ideia reacionária de que sexo sem amor é degenerado ou corrompido, um “excesso na vida sexual”. O ideal de romantismo atrelado ao sexo é também uma ferramenta capitalista de controle da subjetividade e dos
corpos a partir da monogamia.

A luta pelo sexo foi corajosamente compreendida como central para alguns revolucionários russos, mesmo que incompreendida por alguns camaradas no momento imediatamente posterior à revolução, e em alguns anos, quase completamente sufocada pela burocracia Stalinista. Se a totalidade das conquistas feministas não sofreram com os anos de moralismo representados pelas próximas décadas na história da URSS, pelo menos podemos afirmar que a máquina estatal passou a controlar com rigor a vida privada dos seus cidadãos. Por exemplo, o brutal ataque de Stalin contra os direitos afetivos dos homossexuais em 1934, quando promulgou o Artigo 121 do Código Penal soviético, que indicava 5 anos de prisão para homens gays.

Como um copo d’água

Como comunistas, constituímos um setor da sociedade que chama para si uma responsabilidade a mais na vida: a de disputar os rumos da história, nos opondo a uma classe muito mais poderosa que nossos pequenos grupos revolucionários. Para alcançarmos a vitória, precisamos ganhar mentes e corações, avançarmos a consciência e nos livrar dos preconceitos e valores pertencentes à sociedade burguesa.

Para nós, não existe espaço para conservadorismo e moralismo nessa disputa. Precisamos que o sexo, a arte, a cultura, a educação e as relações sociais possam ser livres. Apesar deste artigo com vários equívocos e problemas, contamos com as e os camaradas da UP na luta. Mas alertamos: desliguem o sinal vermelho do moralismo e do terror sexual! Pois, como já dizia Kollontai, “no comunismo, o sexo será tão simples quanto um copo d’água”.