Pular para o conteúdo
MOVIMENTO

O lugar do Psol na disputa de um novo futuro

Qual nosso papel diante do novo governo? Qual relação estabelecer com o governo? Como contribuir para que a derrota eleitoral de Bolsonaro avance para uma derrota estratégica e definitiva de seu movimento e suas ideias?

Henrique Canary, militante da Resistência/PSOL
Bandeira PSOL
Marcos Musse

Estamos diante de uma situação inédita. Pela primeira vez na história, sobe ao poder no país um governo identificado com os ideais de esquerda, que terá como oposição não um partido da direita tradicional, mas um poderoso movimento fascista com forte representação parlamentar. Isso ocorre depois de quatro anos de governo da extrema-direita, durante os quais testemunhamos a destruição de várias estruturas estatais e conquistas sociais e civilizatórias, além de um verdadeiro genocídio que custou a vida de cerca de 680 mil pessoas. Essa realidade, somada ao fato de que o PSOL contribuiu ativamente para a derrota eleitoral do fascista, abre um importante debate no PSOL: Qual nosso papel diante do novo governo? Qual relação estabelecer com o governo? Como contribuir para que a derrota eleitoral de Bolsonaro avance para uma derrota estratégica e definitiva de seu movimento e suas ideias?

Acreditamos que as posições em debate hoje dentro do PSOL são parte dos questionamentos e das dúvidas de milhares de ativistas, cujo objetivo é colocar um fim definitivo no pesadelo Bolsonarista. Por isso, defendemos que o debate seja feito com respeito, paciência e humildade, sem ultimatos e medidas sancionatórias. Trata-se de uma discussão política, que deve ser resolvida no terreno da política.

Partimos de um balanço extremamente positivo da atuação do PSOL não somente nas eleições de 2022, mas no último período em geral. Desde o impeachment de Dilma Rousseff, nosso partido tem se colocado no lado certo da barricada. Fomos oposição de esquerda durante os dois mandatos de Lula e os 6 anos de governo de Dilma Rousseff, mas quando a situação política mudou, soubemos nos localizar de maneira categórica contra o golpe parlamentar de 2016. Lutamos contra a prisão de Lula e a ascensão da extrema-direita, ao mesmo tempo em que projetamos nosso partido e nossas próprias figuras públicas a partir de importantes processos políticos e eleitorais. O programa, a prática cotidiana e a cara diversa do PSOL se tornaram uma referência em política de esquerda para todo um setor da população que passou a nos apoiar politicamente e a votar em nossos candidatos. Mais recentemente, acertamos em apoiar Lula desde o primeiro turno, ao mesmo tempo em que reafirmamos o PSOL como um partido coerente e arrojado na luta contra o bolsonarismo. Esse correto equilíbrio resultou no fortalecimento do PSOL com a eleição de 12 deputados federais e 22 deputados estaduais. Ao mesmo tempo, pudemos testemunhar como a política de isolamento e autoconstrução de organizações como a UP, PCB e PSTU redundou em votações extremamente reduzidas e no enfraquecimento dessas agremiações. Assim, soubemos rejeitar os esquemas rígidos sobre a “superação do PT”. Não é qualquer desgaste do PT que favorece o movimento de massas e o nosso partido. O ano de 2016 o demonstrou de maneira categórica. A superação do PT é um processo mais longo e mais complexo do que prevíamos. Seu enfraquecimento foi capitaneado pela direita fascista e não podemos deixar isso se repetir. Como, então, atuar?

Dissemos que o PSOL se fortaleceu. Mas em que residiu, exatamente, nosso acerto? Em nossa opinião, no fato de que conseguimos combinar duas necessidades distintas: por um lado, a manutenção e o fortalecimento do diálogo político com aquela ampla camada de vanguarda e até de massas que percebeu que a derrota de Bolsonaro era a tarefa central do momento, acima de qualquer necessidade de autoconstrução. Esse setor viu no PSOL um partido sério, que sabe avaliar o perigo real e imediato e que se colocou, por isso, humildemente, como um instrumento útil na luta contra o fascismo. O apoio à candidatura Lula desde o primeiro turno foi importante por isso. Ao mesmo tempo, o partido mostrou sua razão de existir, apresentou um programa, pressionou pela inclusão de inúmeras demandas da classe trabalhadora e do povo pobre, como a revogação do legado do golpe, incluindo o teto de gastos, a luta por uma reforma tributária que combata os privilégios dos bilionários, a defesa do desmatamento zero e toda a agenda de combate ao machismo, ao racismo e à LGBTfobia. Assim, o mesmo setor que nos viu como um instrumento útil na derrota eleitoral do fascismo percebeu também que temos nosso próprio perfil político e programático e concordou com nossas propostas. Foi esse difícil equilíbrio que fortaleceu o PSOL. Esse setor percebeu que entramos na coligação encabeçada pelo PT com toda a nossa força, que queríamos honestamente a vitória de Lula e lutamos de verdade por ela. Mas viu também que tínhamos uma contribuição qualitativa, propostas profundas, bem fundamentadas e coerentes, que estávamos abertos ao novo e expressamos nas nossas candidaturas a luta feminista, antirracista e a agenda LGBTQIA+. Esse setor nos olha com simpatia, dialoga conosco e está em disputa entre nós e o PT. E nós soubemos dialogar com eles. Tal é a essência do acerto político que tivemos desde 2016 e também em 2022. Esse balanço do PSOL deve servir como parâmetro para elaborarmos nossos próximos passos, nossa localização frente ao agora governo Lula.

Em que deve consistir, portanto, a essência de nossa posição? Em nossa opinião, em primeiro lugar, no fato de que nos colocamos como vanguarda na luta contra a oposição de extrema-direita. Haverá tentativas de boicote, obstrução, inviabilização, pautas-bombas, mobilizações de rua e todo o tipo de manobra para retirar do governo sua legitimidade, desgastá-lo e provocar novamente sua queda pela direita, exatamente como em 2016. Em todos esses casos, não pode haver dúvidas sobre qual é a localização do PSOL: somos os maiores inimigos da oposição. Mais até do que o PT, que tentará fechar acordos por cima, contemporizar, incorporar, negociar, ceder. Esse trabalho já vem sendo feito brilhantemente por nosso partido, tanto na Câmara de Deputados e Assembleias Legislativas, quanto nas ruas e na militância real e concreta. Fomos parte da luta pela aprovação da PEC da Transição ou PEC do Bolsa-Família. Esse aspecto da nossa atuação deve continuar e até ser intensificado.

Muitos companheiros defendem que entremos no governo Lula com o objetivo de lutar de maneira mais coerente e eficiente por reformas progressivas. Respeitamos, mas não concordamos com esse argumento. Pensamos, ao contrário, que é decisivo – até mesmo para uma luta coerente contra a oposição fascista – que o PSOL mantenha sua independência política e liberdade de opinião frente ao governo.

É verdade que é preciso apoiar as medidas progressivas do governo. E não duvidamos que nosso partido e nossos parlamentares o farão. No entanto, a existência de medidas progressivas não é incompatível com uma outra hipótese: a de que Lula estabeleça, no final das contas, uma governabilidade conservadora, apoiada em partidos da direita neoliberal como MDB, União Brasil e PSD. Desde a campanha eleitoral e depois dela, Lula tem apostado todas as fichas no isolamento meramente institucional da oposição bolsonarista, via a composição de um governo de maioria que traga o centrão para sua base de apoio (vide apoio do PT à reeleição de Lira). Sabemos bem a que preço isso se dará.

Descartamos completamente a ideia de ser oposição. Nossa independência política quer dizer tão somente que não estamos atados ao governo por laços disciplinares. O PSOL tem uma história própria, um programa próprio e um perfil próprio. Não é nosso papel a administração do Estado em um contexto de governabilidade construída desde cima. Nosso papel é junto aos movimentos sociais, na luta parlamentar combativa e independente contra a oposição fascista e em defesa das medidas progressivas do governo, mas com liberdade de palavra e ação diante da possibilidade de medidas regressivas.

Cremos que esta é a postura mais coerente com a linha política que viemos aplicando desde 2016. Dar um passo a mais e ingressar no governo seria romper esse equilíbrio. Não é verdade que a entrada no governo seja a continuação lógica do apoio eleitoral prestado pelo PSOL ao PT desde o primeiro turno. Na verdade, é a sua antítese porque é a ruptura de um delicado equilíbrio político que se mostrou vitorioso. Durante as eleições, a tarefa central era a derrota de Bolsonaro. O PSOL, corretamente, subordinou tudo a esse fim, mas em nenhum momento deixou de ter seu próprio papel.

Enquanto e sempre que a oposição fascista for um perigo, o PSOL estará na primeira fileira do enfrentamento, até mesmo mais do que o PT. Mas não precisamos entrar no governo para lutar contra o fascismo e defender as medidas progressivas de Lula.

Como dissemos mais acima, o PSOL tem um projeto histórico que inclui a superação do PT pela esquerda. Mas essa superação se demonstrou mais complexa do que prevíamos. É preciso manter o diálogo político com aqueles que confiam no governo e depositam nele grandes esperanças. Precisamos acompanhar pacientemente esse amplo setor em sua experiência com o PT, mas mantendo a liberdade de crítica e ação naquilo que for necessário. Temos certeza que, neste caso, o diálogo não será rompido e os laços de confiança política com esse amplo setor somente se fortalecerão.