Seguindo o caminho apontado pelos camaradas Henrique Canary e Luiz Arias sobre a necessidade de desbolsonarizar o Estado brasileiro, o detalhamento desta urgência no âmbito da saúde se impõe mediante as consequências da pandemia de COVID19, concomitante à execução do projeto de morte e destruição liderado por Jair Bolsonaro nos últimos quatro anos.
É um consenso que Bolsonaro tenha utilizado o novo coronavírus como aliado na operação do extermínio projetado para os setores mais precarizados da sociedade brasileira, fomentando o acometimento acentuado de pessoas pobres, negras, das mulheres e dos trabalhadores essenciais pela COVID19. Isto não seria possível sem a institucionalização da desordem neofascista no Sistema Único de Saúde (SUS), que endossou o longo processo de desmonte e sucateamento aprofundado com as contrarreformas de Michel Temer – com maior expressão no teto de gastos disposto pela Emenda Constitucional 95 (EC 95).
Começando pelas sucessivas trocas na liderança do Ministério da Saúde (MS), órgão mais sensível do período de crise sanitária, as escolhas e alianças de Bolsonaro serviram à cristalização do bolsonarismo nas instituições de saúde e à sua capilarização na ponta da oferta de serviços. Henrique Mandetta, médico, com seu histórico de anuência ao desmonte do SUS enquanto parlamentar e sua longa omissão diante dos desmandos de Bolsonaro; o médico Nelson Teich e sua gestão relâmpago; o general Eduardo Pazuello e seus absurdos neofascistas comprometidos com a promoção da tragédia pandêmica; e o atual Marcelo Queiroga, médico responsável por atribuir uma aparência menos grotesca à gestão da saúde, sem deixar de seguir a cartilha bolsonarista de desmonte do sistema de saúde, anuência à corrupção e fomento do negacionismo.
Para que as gestões do MS fossem bem sucedidas na efetivação do programa bolsonarista, era necessário fazer chegar à assistência à saúde a expansão desta ideologia. Esta tarefa ficou incumbida, principalmente, à categoria médica, que cumpriu papel central na promoção de medidas de prevenção ineficazes, de notícias falsas sobre a vacinação e as medidas de distanciamento social, e de barreiras de acesso à população mais necessitada, subsidiando o funcionamento do “gabinete paralelo” que praticamente substituiu o MS na gestão da pandemia.
Vale lembrar que no dia em que o País registrou 2 mil mortes em 24 horas, o Conselho Federal de Medicina (CFM) participou de uma live promovendo o “tratamento precoce” com ivermectina, azitromicina e cloroquina, mesmo após o meio científico refutar a eficácia dessas medicações para a COVID19 e a fabricante da ivermectina – maior interessada em sua venda – declarar a inutilidade da medicação para esse fim. Contrariando o disposto no Código de Ética Médica, os conselhos federal e regionais de medicina não apenas foram omissos diante da conduta anticientífica dos profissionais, mas a encorajaram. A autonomia médica foi a justificativa formal para milhares de pessoas rejeitarem a vacinação e optarem pela administração de fármacos totalmente dissociados da necessidade de saúde. O lapso ético e o prejuízo biopsicossocial dessa atitude são tão grandes que necessitariam de um texto reservado apenas ao tema.
Graças ao modelo de saúde vigente, baseado na cultura biomédica e hospitalocêntrica na qual também é estruturada a compreensão sobre saúde da população brasileira, a categoria médica é aquela em que os cidadãos mais confiam. Em uma expressão da falta de compromisso com essa responsabilidade, o CFM abonou seus profissionais à prática mais catastrófica descrita na história recente. Não sem motivo: o histórico sociocultural da categoria, com características elitizadas, racistas e misóginas, contextualiza a aproximação de muitos profissionais à ideologia bolsonarista, o que se expressa na tomada dos conselhos profissionais por médicos alinhados a Jair Bolsonaro, muitos com carreira política própria e histórico de candidatura a cargos eletivos, que contam com a popularidade controversa de Jair Bolsonaro para a autopromoção.
Além disso, é a categoria médica a proprietária de grandes conglomerados empresariais da saúde, que muito lucraram durante a pandemia com o adoecimento e a morte. Os profissionais que se colocaram em oposição às barbaridades estimuladas pelo CFM foram hostilizados e perseguidos em seus locais de trabalho, como denunciado no escândalo da Prevent Sênior, que matou cobaias humanas em um experimento ilegal com Cloroquina e promoveu contra os profissionais opositores assédio moral e ameaças individuais e contra seus familiares.
Às demais categorias foi conferido o papel coadjuvante de disseminação do bolsonarismo em sua prática profissional, um alinhamento consequente à formação sociocultural de profissões subalternizadas no campo da saúde. É possível observar a quantidade de profissionais de saúde declaradamente apoiadores de Jair Bolsonaro, mesmo depois de viverem a piora das condições de trabalho, o aumento do risco de adoecimento e morte e o luto pela perda de colegas e familiares. Isso muito se deve à repercussão da história do desenvolvimento dessas profissões, muitas oriundas de uma perspectiva religiosa e conservadora no Brasil, como a enfermagem; bem como outras com autonomia em consolidação e um repertório de elitização do acesso ao ensino e às práticas profissionais que dialoga com as características já descritas sobre a categoria médica.
Muitos desses profissionais não só encorajaram os tratamentos ineficazes como os utilizaram, e cumpriram também o papel de fomento às notícias falsas e à desproteção da população em nome do apoio a Jair Bolsonaro, motivado por um gama de razões que também se expandem para além das características profissionais. Como o olavismo serviu ao bolsonarismo atribuindo a roupagem teórica necessária à legitimação dessa expressão neofascista enquanto uma ideologia de grande repercussão, o negacionismo científico endossado pelas categorias de saúde atribuiu ao projeto de morte o verniz técnico demandado para a impregnação do bolsonarismo na saúde.
No cenário de “morte em nome do lucro”, em que o Secretário de Atenção Primária à Saúde de Bolsonaro, Raphael Câmara, afirmava que o objetivo era “construir um sistema de saúde liberal”, o passo a passo deste projeto era cumprido. Enquanto o Brasil caminhava à marca de mais de 680 mil mortes registradas decorrentes da COVID19, os planos de saúde aumentavam seus lucros líquidos em cerca de 70%. Para mais, a vacina – descredibilizada e negligenciada pelo Planalto e pelo MS -, só foi encarada pelo governo Bolsonaro diante da chance de angariar US$ 1,00 por dose em propina. Como se não bastasse, o Orçamento Secreto atinge, também, o SUS, mostrando onde foi colocado o recurso que poderia ter salvado milhares de vidas na pior crise sanitária dessa geração.
Recentemente, a piauí detalhou o esquema de malversação de verbas do SUS, investigado pela operação Quebra Ossos, da Polícia Federal. Os desvios ocorrem em vários municípios, mas ganhou maior popularidade o registro de procedimentos e consultas não realizados em Igarapé Grande, no Maranhão, com o intuito de majorar o teto do repasse para o financiamento da atenção à saúde viabilizado por emendas parlamentares. Para que exista montante disponível para a distribuição descontrolada de emendas parlamentares aos aliados de Bolsonaro, o desfinanciamento corta na carne do SUS: com redução de cerca de 60% nos recursos, mais de R$ 3 bilhões foram retirados da saúde pública.
Ao total, são 12 programas atingidos, abrangendo áreas de recursos humanos, tecnologia e informação, educação e formação em saúde, saúde indígena e ribeirinha, prevenção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis e AIDS, e atenção materna e infantil. Além desses programas, outras áreas sensíveis foram afetadas pelo desfinanciamento já promovido pela EC 95 e piorado pelo programa bolsonarista e pelas ações institucionais de desmonte do SUS, com repercussão rápida e direta sobre a saúde da população, como a atenção oncológica, a queda na cobertura vacinal, e a atenção à saúde mental, respectivamente. Em um contexto de piora significativa das condições de vida da população, com aumento do desemprego e da informalidade, da insegurança alimentar, da degradação ambiental, dos prejuízos à segurança territorial e sanitária dos povos originários, das periferias e favelas, a depauperação de programas centrados na promoção da saúde de forma equitativa eleva os prejuízos biopsicossociais no âmbito sanitário.
A aposta bolsonarista recrudesce os impactos negativos da conformação histórica do modelo de saúde, balizado pelos preceitos neoliberais e estruturado na atenção à saúde compartimentalizada, centrada no atendimento médico, focada em procedimentos, centralizada no ambiente hospitalar e no uso de tecnologias de alta densidade. Um modelo que já se mostra ineficaz – pela piora contínua nas condições de vida e saúde do povo e pela sucessiva oneração do Estado com oscilação no retorno objetivo relacionado à melhora da qualidade de vida dos cidadãos – foi incrementado com os elementos de maior debilidade do contexto sanitário, intensificados pelo negacionismo científico e pela potencialização da lucratividade como pilar da política de saúde.
Também é parte desse modelo e objeto de exacerbação para o bolsonarismo a ciclicidade das iniquidades em saúde, fazendo com que o elitismo, o machismo, a LGBTfobia, o racismo, o capacitismo sejam barreiras de acesso aos setores mais precarizados e piorando continuamente suas condições de saúde. O produtivismo que envolve essa estrutura descompatibiliza a atenção à saúde e a promoção dela, pois desmerece a atenção integral, a territorialização, a abordagem coletiva e comunitária – um modelo completo, baseado na vigilância em saúde, na prevenção de doenças e na promoção da saúde, com o devido valor às práticas populares e comunitárias e à capacidade da sociedade, em coletivo, instigar ferramentas de produção da saúde integral e equitativa no território onde se desenvolvem suas condições de vida, trabalho e socialização.
É esta a direção que a saúde pública brasileira deve assumir a partir de agora. O remodelamento da saúde precisa ser o compromisso irredutível de uma aliança formada entre os movimentos populares, as associações comunitárias, os coletivos que levantam a bandeira da Reforma Sanitária, os partidos de esquerda e o governo Lula. São sinalizações importantes as propostas expressas no programa de governo: restituição dos programas Mais Médicos e Farmácia Popular; investimento no complexo econômico e industrial da saúde; fomento ao planejamento e ao apoio à municipalização. Também é um ponto positivo a garantia de recursos para as políticas sociais e ambientais, para o investimento nas universidades federais, e para o aumento do salário mínimo na proposta de emenda à constituição elaborada pela equipe de transição para o orçamento de 2023, pois impacta diretamente nos determinantes sociais da saúde e, portanto, no processo saúde e doença da população.
Por outro lado, o programa de governo também preocupa pelo amplo arco de alianças firmadas em prol da viabilidade eleitoral e, agora, de governabilidade. As relações íntimas com o empresariado da saúde – expressas, por exemplo, na carona que a Qualicorp, um dos maiores planos de saúde do País, deu a Lula para a participação do presidente eleito na COP27, no Egito -; a equipe de transição composta apenas por médicos, homens e brancos; o detalhamento difuso da retomada de programas de saúde e da progressão da universalização do acesso. Lula não pode repetir os erros dos mandatos anteriores, quando se sentiu confortável ao sentar nas mesas de negociação que privatizaram e terceirizaram setores da atenção à saúde, abrindo enormes gargalos na atenção secundária e terciária, oferecendo robustas fatias do orçamento público ao setor privado, e minando a expansão e o fortalecimento da atenção básica à saúde como pilar do SUS.
Para que as respostas às insatisfações do mercado com as primeiras medidas da transição e com as perspectivas do governo não sejam mera retórica, é necessário que se aplique à saúde pública o que Luiz Arias apontou para o novo governo: quadros que sejam não apenas técnicos, mas políticos. É preciso alocar na gestão da saúde profissionais comprometidos com a ampliação dos recursos e orientação social do financiamento, com vistas à perpetuação e fortalecimento da universalização do SUS; a garantia da disponibilidade e efetividade dos recursos humanos, bem como uma formação socialmente referenciada e devidamente integrada entre o ensino, o serviço e a comunidade; a expansão da atenção básica à saúde, com séria revisão do modelo de financiamento do principal nível de atenção e incentivo à reterritorialização das áreas adstritas para melhora na implantação e alcance da cobertura populacional; valorização e provimento das políticas setoriais de saúde, com vistas à equidade para o acesso dos setores mais precarizados e necessitados; fortalecimento da produção científica, com valorização e investimento nas universidades federais, na Fiocruz, no Butantan e nos demais institutos de pesquisa que fazem deste País referência na política pública de saúde.
Essas medidas só são possíveis com a revogação da EC95; a destituição dos prejuízos impostos pelas reformas trabalhista e da previdência; a auditoria e revisão do pagamento da dívida pública; a reformulação do pacto federativo para a gestão do SUS e a adequação do orçamento da saúde e das demais políticas sociais em uma perspectiva de responsabilidade social em detrimento da dita responsabilidade fiscal. Para mais, é necessário que as escolhas técnico-políticas sejam, como a própria política de saúde, equitativas, garantindo-se a participação popular, o controle social, o perfil multiprofissional, e a presença de profissionais mulheres, LGBTs, pessoas com deficiência, indígenas e quilombolas, negras e negros na formulação das estratégias que retomarão as rédeas da política pública de saúde, pois só assim será possível garantir o alcance dos programas e ações a todos os setores da população brasileira, com ênfase naqueles que mais sofreram no último período pelo desmonte do SUS.
Tendo se feito verdade a elaboração sobre o papel central da saúde nas eleições, a mudança no modelo de saúde com resultados diretos no acesso da população à saúde pública, na melhora das condições de trabalho dos profissionais de saúde e na retomada do progresso da qualidade de vida da população pode fazer da saúde pública, também, um elemento de popularidade e um termômetro eficaz do sucesso do novo governo, que assume com a tarefa de reconstruir o País. Fazer do Brasil, novamente, a nação que ostenta a maior política de saúde do mundo é torná-lo, também, curado do bolsonarismo.
Escrito por Lígia Maria, do Distrito Federal
BIBLIOGRAFIA
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