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BRASIL

É preciso desbolsonarizar o Estado brasileiro

Esse texto busca estabelecer um diálogo, visando aprofundar alguns pontos levantados pelo companheiro Henrique Canary em seu artigo: “PRF é apenas a ponta do iceberg: é preciso desbolsonarizar o Estado brasileiro”

Luiz Arias*, de Belém, PA
Presidente Jair Bolsonaro fala com a imprensa no Palácio da Alvarada sobre o resultado das eleições
Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Nesses últimos 04 anos, vimos um governo que procurou operar um verdadeiro desmonte do Estado brasileiro. Desde a Constituição de 1988, todos os mandatários que chegaram ao Palácio do Planalto buscaram governar dentro dos mandamentos constitucionais, respeitando as Instituições, a divisão dos três poderes, e buscando, à sua medida, o desenvolvimento de políticas públicas para o enfrentamento de problemas nacionais.

O bolsonarismo, o fascismo à brasileira do século XXI, nunca escondeu que não tem apreço algum pelas instituições e pela ordem democrático-burguesa vigente. Sua estratégia sempre foi a subversão política, a costura de um golpe de estado, a torção e retorção das instituições e a submissão de tudo e de todos ao projeto de poder da extrema-direita.

Os exemplos são infindáveis: o incitamento às Forças Armadas; os ataques recorrentes ao Poder Judiciário; a proposta de elevar o número de ministros do STF, a fim de se ter uma maioria na Corte alinhada aos interesses de Bolsonaro; alterações legais e constitucionais de caráter duvidosos, para se liberar a maior corrupção eleitoral desde a República velha, com bilhões de reais em criação de novos auxílios às vésperas da eleição (turbinados com o empréstimo consignado via Caixa Econômica Federal); o definhamento de políticas como o Farmácia Popular e a subtração orçamentária da merenda escolar e do leite para crianças socialmente vulneráveis, em troca de abastecer o mecanismo conhecido como Orçamento secreto, o qual submete o Legislativo ao Executivo; a completa desmobilização de órgãos ambientais e de fiscalização, como o IBAMA e o ICMBio, além do famigerado sigilo de 100 anos. Essas são apenas parte das formas de estabelecimento e exercício do poder pelo fascismo.

Existe uma outra que é diretamente o aparelhamento institucional. Busca-se colocar pessoas em cargos chaves e de direção, para que estes exerçam suas funções baseados não no regramento legal e constitucional, mas conforme manda o interesse da Presidência da República. Esses agentes, então, pela sua ação ou omissão abandonam a sua função pública de servidores de Estado, e passam a atuar como verdadeiros agentes políticos. O exemplo mais simples e evidente é o da Polícia Rodoviária Federal, quando no domingo realizou uma série de ações para dificultar o direito ao voto dos eleitores nordestinos, e quando a mesma, no dia seguinte, deixa de realizar os desbloqueios nas estradas federais e até mesmo se confraterniza com os manifestantes golpistas.

Outros exemplos poderiam ser colocados, como a troca de delegados da Polícia Federal que investigavam os filhos do presidente, ou que procuravam combater o desmatamento, o tráfico de madeira e o garimpo ilegal na Amazônia. Mas fiquemos só nesses.

O que é importante destacar: o projeto fascista busca o exercício do poder de maneira direta e autocrática, sem freios e contrapesos. E para isso lança mão de várias táticas para alcançar o seu objetivo: desde alterações legislativas e constitucionais, quando possíveis, para facilitar seu projeto; mas principalmente, a submissão de instituições e órgãos ao poder Executivo; o corte de verbas para aquelas que não se dobram; os ataques virulentos e movidos por notícias falsas para desgastar politicamente os que se contrapõe; a perseguição interna de servidores; e o aparelhamento institucional.

Portanto, depois de 04 anos de promoção da desordem e da baderna institucional, há um longo caminho para desbolsonarizar o Estado brasileiro. Passarei agora a tratar, em diálogo com o texto já mencionado, acerca especificamente do desaparelhamento dos órgãos e instituições nacionais.

1. Não existem nomeações “meramente técnicas”.

Todas as pessoas são movidas por alguma ideologia consciente ou inconscientemente. É possível existir excelentes quadros técnicos liberais ou quadros técnicos progressistas e socialistas. Sob determinada ótica, é possível até ter ótimos “quadros técnicos” abertamente fascistas.

Existem quadros técnicos da área econômica liberais e aqueles que tem uma maior visão social. Aqueles da área da saúde que são favoráveis aos planos de saúde e ao mercado, e os que defendem o SUS. Os que são favoráveis ao ensino privado, e os que defendem a educação pública. Ou seja, a primeira coisa que é preciso compreender (e que o fascismo já entendeu há algum tempo), é que não existem quadros neutros e puramente técnicos. Isto se trata de, no máximo, um certo fetichismo muito presente em partes da esquerda brasileira. O governo Lula, portanto, tem que retirar os bolsonaristas de todos os cargos de direção, e colocar no lugar pessoas democratas, alinhadas às ideias progressistas, humanistas e sociais.

Dito de outro modo: a gestão do Estado é uma tarefa eminentemente política. Não adianta ter um governo de esquerda eleito e a gestão ser feita por “quadros técnicos”, os quais reproduzem, ainda que de maneira não consciente, uma ideologia liberal e de direita. É preciso montar excelentes equipes gestoras, as quais consigam aliar a qualidade técnica necessária com o projeto e programa político progressista, o qual saiu vitorioso das urnas. É preciso ter socialistas competentes à frente do novo governo!

2. O Estado (inclusive o Poder Judiciário) é um terreno de permanente disputa

Uma maneira que esta batalha se apresenta possui relação direta com quem vai ocupar os postos mais altos da administração pública e dos Poderes da República. Uma forma de ilustrar isso é analisar o Judiciário e a composição do STF. No Brasil, pode ainda parecer uma ideia pouco comum, mas nos Estados Unidos é plenamente pacífico e aceitável que um presidente do Partido Democrata tende a escolher integrantes para a Suprema Corte progressistas, enquanto o Partido Republicano escolhe conservadores.

Pouco adianta para nós, assim, a escolha de ministros do STF que sejam liberais, conservadores, reacionários, ou que defendam a reforma trabalhista e que sejam punitivistas na esfera penal. O PT pagou caro por más escolhas, e por acreditar fielmente na democracia burguesa. A composição da Corte majoritariamente selecionada por Lula e Dilma foi responsável por ser o Supremo, o avalista do golpe de 2016. Não existem juízes ou ministro do Supremo “neutros”. É preciso selecionar juristas progressistas de qualidade incontestável para compor o STF. Ou seja, se Bolsonaro escolheu um ministro “terrivelmente evangélico”, Lula deve selecionar juristas “terrivelmente progressistas”, a fim de fortalecer no poder Judiciário também, as ideias democráticas e pró-sociais.

3. É preciso travar a luta ideológica

Outra dimensão é a luta ideológica que necessita ser travada pelo conjunto da esquerda e pelo governo. Há diversas instituições em que não basta trocar a direção ou a chefia máxima. As ideias fascistas, golpistas e reacionárias muitas vezes estão entranhada nos indivíduos, em sua maioria servidores públicos concursados, o que leva à contaminação do conjunto dessas instituições. Assim, não basta ter um Ministro da Defesa democrata, é preciso ensinar valores democráticos aos novos oficiais e aos praças das Forças Armadas, para que o Brasil possa superar de vez as ameaças golpistas e a intromissão autoritária dos militares nos assuntos civis. A mesma coisa deve ser observada com os secretários de Segurança Pública estaduais em relação às Polícias Militares.

George Orwell, o escritor inglês, no texto A liberdade do parque, publicado no Tribune, em 7 de dezembro de 1945, observa de maneira bastante perspicaz essa questão:

A polícia britânica não é como a gendarmerie ou a Gestapo da Europa continental, mas não acho que seja uma calúnia dizer que, no passado, ela foi hostil às atividades esquerdistas. Em geral, ela mostrou uma tendência a se alinhar com os que considera defensores da propriedade privada. Houve alguns casos escandalosos na época dos distúrbios de Mosley. No único grande comício de Mosley a que compareci, a polícia colaborou com os camisas-negras na “manutenção da ordem”, de uma maneira em que certamente não teria colaborado com socialistas ou comunistas. Até recentemente “vermelho” e “ilegal” eram quase sinônimos, e era sempre o vendedor do, digamos, Daily Worker e nunca o do, digamos, Daily Telegraph que recebia ordens de ir andando, e em geral sofria intimidações. Parece que pode acontecer a mesma coisa, ao menos em alguns momentos, sob um governo trabalhista.
Uma coisa que eu gostaria de saber – e sobre o qual ouvimos muito pouco – é que mudanças são feitas no pessoal administrativo quando há mudança de governo. O policial que tem uma vaga noção de que “socialismo” significa uma coisa contra a lei continua a agir da mesma forma quando o próprio governo é socialista? Manda um princípio saudável que o funcionário não tenha filiação partidária, sirva fielmente a sucessivos governos e não deva ser perseguido por suas opiniões públicas. Mesmo assim, nenhum governo pode se dar ao luxo de deixar os inimigos em postos-chave, e quando o Partido Trabalhista está no poder legítimo pela primeira vez – e, portanto, quando está assumindo uma administração composta por conservadores -, ele deve claramente fazer mudanças suficientes para evitar sabotagem. O funcionário, mesmo quando é amigo do governo no poder, tem demasiada consciência de que é permanente e pode frustrar os ministros de vida curta a quem supostamente deve servir.

Logo, essa não é um dilema novo para governos de esquerda ou socialistas, tampouco uma peculiaridade nacional. A disputa ideológica e a educação em valores democráticos e humanistas é essencial para o ganho de consciência das pessoas, em sua dimensão individual, as quais são servidoras públicas estáveis dessas instituições. Para que parem, assim, de se guiar por ideias fascistas e autoritárias e tenham como princípios a democracia e a defesa de uma sociedade mais plural, justa e democrática.

4. Punir os servidores golpistas que não respeitam o resultado eleitoral

Todos os servidores públicos que por sua ação ou omissão desobedeceram decisões judiciais, que prestaram suporte aos bloqueios anti-democráticos e que se pronunciaram abertamente à favor de um golpe de Estado precisam ser punidos de maneira exemplar. Todos devem ter um Processo Administrativo Disciplinar abertos contra si, para averiguação de sua conduta enquanto servidor, e também, quando for o caso, responder criminalmente por eventuais condutas previstas na Lei 14.197/2021, relativas aos crimes contra o Estado Democrático de Direito e tipificadas no Código Penal Brasileiro.

A sociedade brasileira não pode tolerar ou naturalizar os discursos à favor de golpes e que incitam às Forças Armadas a agir contra os poderes constitucionalmente instituídos. Mais grave é quando tais discursos são proferidos por servidores públicos integrantes do alto escalão estatal. Precisam sofrer as punições cabíveis, sob pena de vermos aos nossos olhos, cada vez mais, o crescimento da besta fascista que a todos nos ameaça.

Em síntese, é preciso que o novo governo Lula:

I) Estabeleça uma convivência democrática entre os poderes da República e o conjunto das instituições;

II) Recomponha o orçamento dos órgãos de Estado vistos como inimigos, e das políticas públicas desmontadas pelos fascistas;

III) Exonere todos os servidores públicos temporários fascistas, e retire os que são concursados dos cargos de direção e chefia, assim como proceda a punição na forma da Lei para os criminosos e transgressores;

IV) Selecione quadros técnicos-políticos socialistas, progressistas e de esquerda para as principais funções de Estado;

V) Empreenda uma luta ideológica para a reeducação democrática do corpo de funcionários públicos de carreira.

Por fim, é preciso dizer que isto é apenas parte dos desafios que as forças populares e democráticas vão enfrentar no novo governo. Muito mais ainda precisará ser feito para superar a destruição promovida pela extrema-direita, e para construir a justiça social no país.

*Luiz Arias é advogado popular e militante do Afronte!