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BRASIL

20 de novembro: O resgate de uma memória cativa

Jean Montezuma**, de Porto Alegre (RS)
20 de novembro
Reprodução

“13 de maio traição

  liberdade sem asas

  e fome sem pão” 

(13 de maio, poema de Oliveira Silveira 

publicado no seu livro “Banzo Saudade negra”.)

“Nós, negros brasileiros, orgulhosos descendentes de ZUMBI, líder da República Negra de Palmares, que existiu no Estado de Alagoas, de 1595 a 1695, desafiando o domínio português e até holandês, nos reunimos hoje, após 283 anos, para declarar a todo povo brasileiro nossa verdadeira e efetiva data: 20 de novembro, DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA!”  

(trecho do Manifesto do MNUCDR, aprovado em 04/11/1978)

Foi em novembro de 1978, na cidade de Salvador, a mais negra cidade fora do continente africano, que o nascente Movimento Negro Unificado – a época ainda chamado MNUCDR* – aprovou o 20 de novembro como data maior da consciência negra. Acontecia então, naquele 04 novembro, a II Assembleia Geral de um movimento que escreveu um novo capítulo na história do protesto negro no Brasil. 

Passados 44 anos daquele 04 de novembro, a anedota curiosa que muitos não sabem, é que o dia da consciência negra no Brasil foi aprovado em “território alemão”. Isso mesmo, após sofrer dura repressão da polícia e do exército que baseados no AI-5 impediram a realização da Assembleia em dois outros locais, restou a militância apelar ao então diretor do ICBA – Instituto Cultural Brasil Alemanha – que já era parceiro de lideranças negras da cidade e tinha a prática de ceder o espaço da Instituição para reuniões do movimento. Impedidos legalmente de reprimir a Assembleia em território diplomático estrangeiro, restou a Ditadura infiltrar provocadores que tentaram sem sucesso constranger a militância negra que corajosamente debateu e votou todas as deliberações daquela reunião histórica.

Meses antes, num dia 07 de julho em São Paulo, aquela brilhante geração de pérolas negras já havia mostrado a que veio, realizando um ato que reuniu centenas de pessoas no centro da maior metrópole brasileira, em plena Ditadura civil-militar, para denunciar a violência policial e a tortura, e afirmar a plenos pulmões a existência do racismo, bem como a necessidade de confrontá-lo radicalmente. Nos 4 meses que separaram o ato nas escadarias do teatro municipal em São Paulo, da II Assembleia em Salvador, o Movimento foi ganhando forma, estatuto, capilaridade, dando contornos decisivos à um processo de reorganização do movimento negro que vinha se acumulando ao longo de toda década de 70. 

Embora não se tenha um consenso sobre a origem, a própria ideia do 20 de novembro como contraponto ao 13 de maio também foi sendo amadurecida ao longo da década de 70. No livro “Mundo Negro: Relações raciais e a constituição do movimento negro”, o autor Amílcar Ferreira destaca a contribuição dada pelo Grupo Palmares, um coletivo de militantes negros e negras de Porto Alegre surgido em 1971, entre os quais estava o poeta e intelectual Oliveira Silveira, que desde então defendia essa bandeira. Para o Grupo Palmares, a defesa do 20 de novembro era parte integrante de uma necessária revisão da maneira como os negros e negras foram retratados na História do Brasil. Um resgate de uma trajetória de resistência em contraste com um 13 de maio cuja centralidade repousava sob a benevolência da princesa branca e redentora.

A memória é um campo de batalha.

Para o historiador Eduardo Galeano, a memória é um ponto de partida na construção das identidades individuais e coletivas. A filósofa Marilena Chauí, por sua vez, defende que a memória social é forjada através de mitos fundadores, testemunhos, relatos, depoimentos e registros. Por fim, outro historiador, o francês Pierre Nora, argumenta que a memória social não é algo espontâneo, mas objeto de construção/reconstrução constante. Recorrendo aos três, devemos nos perguntar: A quem interessava, ou melhor, a que projeto de sociedade interessava a construção de uma memória sobre a abolição na qual negros e negras fossem meros objetos de uma dádiva real? 

Uma forma de responder a essa pergunta é observar o que aconteceu no 14, no 15, no 16 de maio, e assim por diante. Como bem disse Oliveira Silveira em seus versos, o 13 de maio representou uma liberdade sem asas, uma traição de um Estado Brasileiro que buscava dissimuladamente dar as costas para aqueles e aquelas diretamente responsáveis por toda riqueza que já foi plantada, colhida ou extraída dessas terras.

No contexto da independência do Brasil, foi o compromisso com a preservação da escravidão – negra, mas também indígena – que selou o pacto entre as elites brasileiras e um português, D. Pedro I, que seria proclamado imperador do país que recém rompia com Portugal. Tão fundamental que era, a escravidão era representada na própria bandeira imperial, através dos ramos de café e tabaco, símbolos ao mesmo tempo de uma economia voltada para exportação, abastecida pelo tráfico de seres humanos, e sustentada pelo trabalho cativo. 

Findado o moribundo Império em 1889, com o golpe da Proclamação da República, a mesma elite outrora escravista seguiu buscando de todas as formas atribuir aos negros e negras uma condição de cidadãos de segunda classe. Criminalização da capoeira, do samba, das religiões de matriz africana, perseguição aos cortiços, enfim; tudo aquilo que era identificado como manifestação da cultura, da identidade e da sociabilidade negra, era tratado como caso de polícia. Algo que hoje parece tão banal como o Registro Geral, a famosa carteira de identidade, tem na sua origem o objetivo de identificar para melhor monitorar e reprimir aqueles que, nas palavras do historiador Sidney Chalhoub, eram vistos pelo Estado como “classes perigosas”.

No contexto dos anos 1970, palco da reorganização do protesto negro que culminaria no MNU (Movimento Negro Unificado), a negação da identidade negra tinha sua continuidade repousada na combinação entre um consenso ideológico pautado na pretensa “democracia racial” e a força da doutrina de segurança nacional da Ditadura Civil-Militar. Denunciar o racismo, ou falar em identidade negra, era considerado crime contra segurança nacional. Não à toa, logo após o golpe em 1964, o movimento negro foi duramente perseguido e parte das suas lideranças, a exemplo de Abdias Nascimento, tiveram que partir para o exílio. 

Para a geração negra de 70 a desconstrução do mito da democracia racial e afirmação da consciência negra eram exercícios que se combinavam dialeticamente. Atacar o mito da democracia racial por meio do recurso à denúncia da realidade concreta de discriminação imposta aos negros, e em contraposição afirmar a identidade negra e a consciência racial, esse era o cerne da propaganda ideológica do MNU na qual a afirmação do 20 de novembro estava totalmente integrada.

“Há uma História do povo negro sem o Brasil. O que não existe é uma História do Brasil sem o povo negro” (Januário Garcia).

O 20 de novembro deste ano se dá num contexto onde foi recém conquistada nas urnas uma histórica vitória popular sobre a candidatura fascista de Bolsonaro. Se dependesse do voto da negritude, Lula teria sido eleito com ampla margem e no 1° turno. Antes disso, ao longo dos 4 anos de duríssimos ataques do governo da extrema-direita, não houve rendição, houve resistência negra.

E foi assim porque a luta negra é a antítese do projeto de ódio bolsonarista que buscou no governo radicalizar a imposição de um Estado de Exceção permanente contra a população negra. Uma verdadeira cruzada racista que objetivava o extermínio físico, cultural e moral, contra corpos e territórios racializados. No plano imediato, a continuidade da agenda antirracista se combina com a necessária desbolsonarização da agenda política e do ambiente ideológico da sociedade.

Num artigo onde tratamos tanto de memória, nada mais simbólico para utilizar como exemplo a urgente refundação da Fundação Cultural Palmares. A Fundação Palmares é constituída em 1988, no contexto da redemocratização do país, processo no qual o movimento negro cumpriu um papel dinâmico e potente. Na lei que a instituiu estão estabelecidos entre os seus objetivos “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”

Não foi à toa que o bolsonarismo escalou Sérgio Camargo para, desde a presidência da FCP, fazer justo o oposto: Promover a deslegitimação e o abandono das comunidades quilombolas, junto com a desvalorização de toda manifestação cultural e todo legado da luta negra. Uma vez mais, a memória é uma ponte para construção da subjetividade e da identidade coletiva, por isso mesmo é um campo de batalha. Ao atacar também a nossa memória, a extrema-direita fascista busca quebrar com uma identidade negra, e com uma sociabilidade pautada em laços de solidariedade de raça e classe, que se constituiu nutrindo-se do aporte que o avanço na consciência racial promoveu. Nosso compromisso com as gerações anteriores é, portanto, não arredar os pés também desse campo de batalha.

“Por menos que conte a História

 Não te esqueço meu povo

 Se Palmares não vive mais

 Faremos Palmares de novo!”

(José Carlos Limeira)

 

* Inicialmente chamado MUCDR – Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial – o movimento que convocou e realizou em São Paulo, o ato público de 07 de julho de 1978 contra violência policial, a tortura e a discriminação racial; agregou o termo “negro” no contexto da realização da sua I Assembleia geral que redigiu e votou o seu estatuto, passando a usar a sigla MNUCDR.

** Jean Montezuma é historiador formado pela Universidade Federal da Bahia e militante do PSOL.