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BRASIL

Toda solidariedade ao povo nordestino

David Cavalcante*, de Recife, PE
Gustavo Gomes/Agencia Brasil

Toda sociedade nacional é heterogênea em suas características culturais e sociais. Isso quer dizer que temos variedades, diversidades e pluralidade de línguas, sotaques regionais, formas de falar e de se comportar perante as pessoas diferentes, culturas alimentares, vestimentas, relações familiares, características econômicas e religiosas distintas. Assim é o mundo, assim são as nações e assim são inclusive as classes sociais que refletem tais diferenças e variedades nos seus meios sociais.

Essa é a riqueza da humanidade que ante suas pluralidades a torna tão rica de potencialidades, mas também tais diferenças historicamente foram e são utilizadas e instrumentalizadas para gerar guerras, escravizações, discriminações e segregações, que é a separação física de povos para fins de domínio, exploração e opressão.

As razões para existência de tais diferenças está no que chamamos de formação social de cada país e região. No caso do Brasil, por exemplo, não há como não analisar a sociedade e a política sem compreender o papel violento e exterminador da escravização pelos colonizadores dos indígenas e povos negros africanos. Daí que temos atualmente o que se denomina racismo estrutural que é uma marca da nossa sociedade que normalizou e institucionalizou a opressão e discriminação contra negros e negras no país e isso se traduz atualmente nos indicadores que são os piores em escolaridade, taxas de aprisionamento, vítimas da violência policial e desemprego.

A opressão é justamente tipificada por condutas, comportamentos individuais ou coletivos e às vezes, até baseadas em leis, que buscam se utilizar dessas diferenças para manter ou alcançar privilégios, vantagens e benefícios de uns grupos sobre outros. Para tanto, diminuir, caricaturar e desqualificar as pessoas diferentes têm como objetivo alimentar posições de poder de grupos, nacionalidades e/ou classes sociais, na maioria das vezes de forma violenta.

As relações de opressão são historicamente utilizadas pelo sistema capitalista para dividir a classe trabalhadora e facilitar a dominação e exploração das classes subalternizadas, dificultando sua unidade de classe contra o capital e seus governos. Por exemplo, quando a mulher consegue conquistar o espaço público e do trabalho, a diferença de gênero foi utilizada para uma maior exploração da força de trabalho feminina com mais baixos salários, buscando jogar os homens contra as mulheres operárias.

Utilizar-se de tais diferenças é a grande arma ideológica da extrema direita. Por isso, são reforçadas e defendidas por partidos, grupos e lideranças políticas vinculadas ao fascismo, já que a estratégia de tais organizações é justamente forjar supostos inimigos para dar coesão aos seus seguidores em manifestações violentas verbais e/ou físicas. Assim, o nazismo se utilizou do antissemitismo e do antibolchevismo para mobilizar seus grupos de assalto em ações violentas contra a esquerda alemã e qualquer um que se opusesse no seu caminho rumo ao poder do Estado e à ditadura totalitária.

A opressão regional nordestina

Sobre a formação social do Brasil, chamei atenção em um texto intitulado, Uma nota sobre a opressão Regional nordestina1, que no Brasil, além da histórica, estrutural e institucional opressão racial e de gênero, há a opressão regional contra o povo nordestino.

É parte da nossa formação social e foi essencial no processo de acumulação e consolidação do capitalismo desigual e combinado brasileiro que, mesmo sendo um capitalismo periférico em relação ao capitalismo global, dentro do seu território se utilizou da opressão regional para melhor explorar força de trabalho nordestina.

Para tanto, o capitalismo brasileiro e as elites sudestinas alimentou e alimenta discriminações em relação ao povo desta região que ao contrário do que se diz foi decisivo para construção das grandes metrópoles com o fornecimento de trabalhadores nas históricas e épicas migrações para São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, além de fornecer força de trabalho mais barata para os ciclos da borracha na Região Norte do país e nos grandes empreendimentos impulsionados pelo Estado brasileiro. No referido texto destaco:

Na dimensão social, um fator decisivo que agravou a regressão social da região foi a existência de um enorme exército de reserva de mão de obra, que garantiu o fornecimento de força de trabalho não qualificada para as regiões Norte, Sudeste e Brasília. Esta migração em massa ocorreu devido às secas prolongadas, estagnação econômica, concentração fundiária e os resquícios do coronelismo na região do semiárido, conhecida como Sertão.

A estagnação econômica e a concentração de renda e da propriedade fundiária expulsaram levas e levas de nordestinos, cuja saga foi a busca pela sobrevivência em outras regiões. Afinal, nem mesmo um bem tão básico para a vida humana, como o acesso à água, foi possível à grande maioria dessas populações.

De modo que empurrados pela estagnação econômica, a concentração fundiária, a violência das elites coronelistas e oligarquias, o abandono dos governos centrais, com destaque para o período do regime militar, os trabalhadores nordestinos, migraram em massa entre por décadas em busca de alternativas de sobrevivência, principalmente para a Região Sudeste. Somente entre as décadas de 1960 e 1980 foram mais de 22 milhões de emigrantes.

Essa é a história do Presidente Lula cuja família teve que sair da zona rural da cidade de Caetés (então um distrito da cidade de Garanhuns), Estado de Pernambuco, em dezembro de 1952, em busca de sobrevivência e trabalho. Lula tinha apenas sete anos e era o sétimo dos 8 filhos de um casal de lavradores, quando viajou por 13 dias numa carroceria de um caminhão coberto de lona que se chamava “pau-de-arara”. Depois de uma longa história pela sobrevivência tornou-se metalúrgico e líder sindical em São Bernardo do Campo.

Nessa saga épica se forjou grande parte do proletariado dos grandes centros urbanos sudestinos com a força de trabalho mais necessitada, manual e desqualificada, portanto mais barata e superexplorada.

As migrações em massa foram uma política consciente e planejada dos governos centrais e Estaduais. O resultado foi o achatamento do valor da força de trabalho, traduzindo-se ainda na discriminação velada e aberta dos costumes alimentares, musicais e estéticos da cultura nordestina.

Outra sequela dessa histórica relação de subalternização do povo nordestino, em conivência com as elites locais, é o subdesenvolvimento do subdesenvolvimento. Isso se reflete nos mais baixos pib per capita do Brasil, além dos piores indicadores sociais que se manifestam até hoje produto dessa dialética da opressão que é justamente reproduzir uma região com mais desigualdades que por sua vez são controladas por grupos econômicos e oligarquias que se alimentam internamente dessa superexploração.

Daí as origens o duplo ódio de setores das elites e da burguesia sudestinas contra Lula, agora em grande parte associadas ao bolsonarismo, visto que, ter sido um Presidente que, além de ser nordestino, foi operário metalúrgico e foi o governante que mais beneficiou a Região com políticas públicas de inclusão social, mesmo com todas as limitações.

Os ataques xenófobos do bolsonarismo e a necessária resposta

Assim como as elites sudestinas historicamente alimentaram a discriminação e a xenofobia contra os nordestinos e sempre nutriram ódio contra aqueles que são os maiores responsáveis pela geração da riqueza do grande capital, o bolsonarismo se alimenta. Agora de maneira mais explícita.

Mesmo diante das visitas demagógicas e motociatas com seus aliados locais no período de campanha do 1o turno, tentando ganhar de forma desesperada eleitores de última hora, essa discriminação odiosa que o Presidente tinha controlado por um tempo, agora veio à tona com toda ênfase.

Ante a avalanche de votos no 1o turno do Nordeste em apoio à Lula, com 67% em média na Região, desencadeou-se uma onda de ataques xenófobos contra nossa gente. O próprio inominável, em uma transmissão nas redes sociais associou a vitória de Lula ao analfabetismo da Região, culpando os governos estaduais.

Ocorre que a arrogância dos seguidores bolsonaristas e seus líderes é tão grande que são incapazes de entender o quanto que foram positivas as políticas públicas para minorar as históricas desigualdades regionais. Bastaria analisar o quanto foi importante a construção da rede de Institutos e Universidades Federais em dezenas cidades do Nordeste profundo para mudar a vida de milhões de pessoas, ou mesmo a transposição do Rio São Francisco para a zona rural e as obras do Programa de Aceleração do Crescimento, muitas das quais foram desmontadas após a subida do governo Temer.

Seguindo o exemplo do chefe, dezenas de ataques contra os nordestinos se multiplicaram nas redes sociais. Foram publicações de todo escalão proferidos por “elegantes” advogadas que “esqueceram” seu juramento da OAB e empresários “liberais” raivosos que geralmente lembram do papel do Estado quando vão pedir empréstimos nos bancos públicos.

Mas a grande resposta contra a xenofobia e a discriminação é a solidariedade, a unidade e a viração do voto. Além do voto que deve ser novamente repetido e aumentado no 2o turno, deve ser fortalecida essa corrente (não precisa de jejum) de unidade na diversidade para romper essa cadeia do ódio, que tem sido estimulada contra as mulheres, os quilombolas, os negros e negras, os nordestinos, LGBTQIA+, os trabalhadores e trabalhadoras, os favelados, estudantes dos Ifs e universidades públicas, os cristãos não fundamentalistas, os indígenas e uma longa lista dos que tem sido vítimas desse governo.

 

*Bacharel em Direito. Cientista Social e Político. Doutor em Serviço Social.
1. Uma nota sobre a opressão regional nordestina