Pular para o conteúdo
Colunas

O legado da Constituição que morreu jovem e as razões para o “Brexit chileno”

Rejane Hoeveler

Rejane Carolina Hoeveler é historiadora. Mestra e doutora em História Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Co-organizadora do livro A onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad, 2016). Atualmente é pós-doutoranda em Serviço Social pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas).

Ainda estão por ser sentidas as consequências da ampla votação pelo Rechazo no último domingo, dia 4 de setembro. Muita coisa vai depender da postura da própria direita vencedora, que retoma, com isso, a iniciativa política e ganha um trunfo ao qual sempre poder recorrer. As direitas mundiais celebraram esse resultado, e imediatamente já começaram a cair as máscaras do Comando pelo Rechazo, recusando-se a sentar-se de imediato com o Presidente para armar uma nova Convenção, como havia prometido; e reabilitando José Antonio Kast (que havia desconhecido todo o processo constituinte).

Começam a se desenhar alguns balanços sobre o processo. O jornalista Reinaldo Azevedo, por exemplo, fez uma crítica coerente de um ponto de vista liberal-reformista. Para ele, a esquerda chilena teria se equivocado ao querer “assaltar os céus” com a Constituição, que era um bom texto, mas teria sido “sacrificado” por posturas “identitaristas” intransigentes. Afirma que foi um exagero incluir a paridade de gênero inclusive em cargos eletivos, bem como o fato de defender a plurinacionalidade. Teria sido melhor ficar apenas com a parte da proteção social da Constituição em troca de tirar tais elementos que vão de frente contra o conservadorismo sabidamente existente na sociedade. Como se fosse possível negociar tal coisa. A posição talvez seja mais liberal que reformista, porque apela sutilmente para a máxima do “um homem, um voto” do liberalismo clássico, princípio também utilizado discursivamente pela suposta “centro-esquerda pelo Rechaço” e que desconhece que há uma sub-representação política crônica de determinados grupos sociais. Ele tenta diferenciar essa avaliação da Constituição chilena com sua (tardia, mas bem-vinda) defesa das cotas raciais e sociais nas universidades.

É preciso assinalar algumas coisas: primeiro que esse conservadorismo social chileno também é impregnado de racismo. Os setores sociais chilenos que poderiam realmente estar preocupados com os efeitos concretos da plurinacionalidade, tal como ela se apresenta na Constituição, são exíguos do ponto de vista eleitoral. A única explicação é que as mentiras relacionadas ao tema se calcaram no histórico racismo contra os indígenas, chocantes para uma elite que sempre se quis branca e europeia, transbordando esse ideário/imaginário por todos os cantos. O mesmo poderia ser dito sobre o enfoque de gênero, já que a aversão a este está fortemente calcada na insegurança masculina.

Segundo, apesar de não dispormos de dados sobre como foi a diferença da votação entre homens e mulheres, ou por raça/etnia, é certo que a Constituição não geraria a desigualdade como dizia a direita. Aliás, a ideia de que foi na Constituição que se originou uma “divisão social” no país foi um dos pseudoargumentos mais esgrimidos pela direita do Rechazo. Acaso tudo foi consensual em algum momento da história, e ainda mais em se tratando de uma sociedade capitalista? Essa tese não resiste a nenhum questionamento. Mesmo de um ponto de vista liberal reformista, acaso uma Constituição não deve existir justamente para proteger os setores mais oprimidos?

E terceiro, a paridade de gênero e a plurinacionalidade não são detalhes que poderiam ser descartados depois de um levante que pouco tinha de consenso propositivo. Lembre-se que na explosão social que foi o “Big Bang” da Constituinte, pelo menos dois elementos se impuseram: a solidariedade com os povos originários, o feminismo e o ecologismo. Além, e combinadamente, com o rechaço ao neoliberalismo. Depois das demonstrações desses movimentos dos últimos anos, é virtualmente impossível conceber políticas públicas que não consideram as diferenças sociais, raciais e de gênero de maneira transversal; no terreno do Direito, é muito mais fácil atingir esses objetivos se está plasmado na Constituição. Ignorar as reivindicações desses movimentos seria ter “parado a História” para voltar a fazer o mesmo.

A Constituição proposta em 2022 no Chile certamente será referência mundial em termos de um texto que consolida pilares civilizatórios básicos para o século XXI, tratando da responsabilidade do Estado nacional em combater a emergência climática, prevendo a “desconexão digital” em seu capítulo sobre direitos trabalhistas; a proteção de dados na internet; a proibição de lucro nas instituições de ensino superior; definindo a água como um bem social não-comercializável; desenhando um sistema público universal de saúde e seguridade social; a desmilitarização da polícia e respeito transversal e multidimensional aos direitos humanos, entre muitos outros pontos.

Razões e desrazões

Entre as razões que seguramente devem ser elencadas para o resultado, seguramente estão as opções políticas do governo Boric, que desde que assumiu vem tentando fazer concessões à direita para poder governar, mas cada vez se encontra mais acossado por essa mesma direita. Se foi uma opção consciente por parte de algum setor da esquerda chilena abandonar mobilizações e canalizar todas as energias para dentro da ordem, está claro que é aqui onde o balanço interno precisa ser feito. Ainda assim é difícil falar em um “desastre” econômico e social causado pelo governo Boric – que de fato apresenta enorme lentidão para responder às demandas imediatas.

Analisando preliminarmente o resultado, vemos que os números de votantes do Apruebo são muito similares àqueles do segundo turno da eleição de 2021 (Boric x Kast). A votação de Boric era, já em 2021, uma espécie de “teto” da esquerda. Com uma significativa diferença: ali, tratava-se de um embate direto com um adversário abertamente neoliberal e pinochetista. Aqui, como foi prometido por praticamente todas as forças políticas (com exceção de Kast), foi dito que independentemente do resultado do plebiscito de saída, haveria uma nova Constituinte, portanto teoricamente não seria a última oportunidade de substituir a Carta do ditador.

Ainda é cedo para encontrar uma síntese de determinações e compreender a complexidade desse resultado com todo seu peso histórico. Porém, não é razoável culpar o próprio texto constitucional; nem culpar os Constituintes; nem culpar supostos “identitarismos” ou “vanguardismos”. Devemos considerar fatores como: a precocidade com que o processo da rebelião de 2019 se institucionalizou, como já vinha sendo assinalado pelo historiador Sergio Grez; a ausência de um sistema eficaz de pesquisas qualitativas, que poderia ter funcionado como um termômetro, pelos Constituintes, sobre as proporções reais da aprovação ou reprovação popular sobre os diversos pontos da Carta; e o paradoxo da própria incorporação eleitoral de setores que nunca tinham votado, já que este foi o primeiro pleito com o voto obrigatório e com valores altos de multa para o não comparecimento. Paradoxal porque a Constituição prevê também o voto obrigatório, algo que na maioria dos países funcionou para uma importante ampliação da democracia eleitoral.

Imaginou-se que a margem de novos votantes seriam setores “sociologicamente” de esquerda. Porém, são também os setores mais aleijados da política, mais refratários à participação em projetos coletivos, e, portanto, mais vulneráveis ao sequestro discursivo da direita impregnado na mídia, nos grupos de whatsapp etc. Aqui se combina o conservadorismo, que no mais é muito anterior ao neoliberalismo, com outro legado de Pinochet: uma subjetividade impregnada de individualismo e imediatismo, tendo a ansiedade como marca, como afirmou o escritor Cristian Alarcón [Diario El Mostrador no Instagram: “Cristian Alarcón (La Unión, 1970), hijo del exilio que ha vivido la mayor parte de su vida en Argentina, se impuso en la versión 2022 por…”]. Subestimou-se o poder do método que funcionou em tantas ocasiões, como a Colômbia do plebiscito pela Paz; o Brasil de 2018 com a vitória de Bolsonaro; ou o Brexit de 2016. Essas são as comparações mais apropriadas do ponto de vista da manipulação ideológica através de campanha de desinformação e muito dinheiro.

Para a infelicidade dos saudosistas de tempos terríveis, no entanto, essa derrota não terá o poder de conter as insatisfações sociais ou de encerrar as mobilizações dos de baixo, como já demonstraram os estudantes nesse primeiro dia após o plebiscito, realizando novas evasões no metrô e reunindo-se de novo na Praça Dignidade.

Esse processo foi deslanchado sobretudo pelos jovens e pelas mulheres. A juventude talvez tenha sido a maior marca desta Constituição assassinada antes de viver. E como afirmou a ex-presidente Michelle Bachelet, insuspeita de esquerdismo ou radicalismo, mulheres movem as grandes transformações no mundo.