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No Pasarán: a volta por cima do Chile

foto mostra uma bailarina, com roupa vermelha, saltando. Ao fundo, militares em um tanque, observam a dança.
Reprodução

Uma bailarina dança em frente a militares em Santiago, durante a intervenção militar e o toque de recolher em outubro de 2019, nos protestos contra Piñera

Rejane Hoeveler

Rejane Carolina Hoeveler é historiadora. Mestra e doutora em História Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Co-organizadora do livro A onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad, 2016). Atualmente é pós-doutoranda em Serviço Social pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas).

O susto foi tremendo. Foi uma pesada notícia para o Chile e para o mundo quando, no primeiro turno da eleição nacional realizado em 21 de novembro de 2021, o candidato da extrema-direita, José Antônio Kast, empresário alemão e notório pinochetista, tirou a primeira maioria alguns pontos acima de Gabriel Boric, um jovem deputado de 35 anos proveniente das lutas estudantis de 2008 e 2011, membro do Convergencia Social, partido que compõe o Frente Amplio. Não se tratava de uma eleição banal: a mera possibilidade da vitória de Kast colocava em jogo todo o ciclo de lutas que culminou no estallido social em outubro de 2019; ameaçava de morte o processo constituinte. Parecia um pesadelo tão assombrador quando aviões sobrevoando La Moneda.

Boric não era o nome indiscutível que representasse o movimento de 2019, até porque existia uma forte desconfiança por parte das vanguardas, as quais viram como uma traição sua assinatura no acordo que levou ao Plebiscito (não por acaso, a assinatura foi individual e não em nome de seu partido). Entretanto, o que era motivo de denúncia acabou se tornando uma arma favorável na disputa eleitoral: invariavelmente o próprio Boric relembrava do fato como uma evidência de que ele buscava acordos políticos amplos, ao contrário do outro candidato (que rechaçou o acordo pelo plebiscito e em seguida atuou fortemente na campanha do No). Através do plebiscito, viabilizou-se uma espécie de canalização institucional de reivindicações de uma verdadeira insurreição popular que parecia incontrolável e que ao mesmo tempo, não forjava uma direção orgânica. Ao mesmo tempo, a identidade de esquerda parecia perdida e fragmentada, pois embora o conteúdo dos protestos fosse anti-neoliberal e anti-capitalista, nenhum partido ou conjunto de partidos (nem no sentido amplo do termo) chegou propriamente a capitalizar o levante outubrista. Até o final de 2020/início de 2021, o nome que despontava nas pesquisas espontâneas era o de Daniel Jadue, do Partido Comunista, quem podia utilizar do fato de ter experiência de governo. O Apruebo Dignidad apesar disso conseguiu ter unidade suficiente para a disputa e o nome de Boric venceu as primárias de forma inconteste.

A campanha de terror realizada pelas direitas em tudo remeteu a slogans, discursos e ideologias que marcaram o pré-1973 e a defesa do no Plebiscito de 1989, especialmente o tom ameaçador de que viria o caos se a esquerda ganhasse. Eram dezenas de fake news do tipo: “Boric vai roubar as pensões e distribuir entre os políticos”; “Boric vai mudar o hino e a bandeira nacional”; “Boric vai confiscar todos os patrimônios”; “O Chile vai virar uma Venezuela” (Chilezuela); “Boric vai proibir o uso de automóveis” (pelo fato do candidato defender a ampliação da malha ferroviária); e principalmente, a idéia de que o Partido Comunista iria governar e implantar o totalitarismo bolivariano marxista cultural etc. A mídia corporativa de maneira geral, salvo raras exceções, tampouco ajudou a desmistificar tais notícias falsas, recusando-se mesmo a realizar minimamente o trabalho de fact checking.

A eleição parecia indefinida até praticamente a semana derradeira de campanha. As pesquisas eleitorais mais otimistas colocavam Boric apenas alguns pontos à frente, gerando ansiedade e temor, ao mesmo tempo incentivando adesões de peso entre artistas, intelectuais, personalidades da mídia e mesmo do mundo político que até então se mantinham apáticas, como Michelle Bachelet.

Contra tudo e contra todos, a militância social fez com que Boric saísse vitorioso em 11 das 16 regiões, e ainda abriu uma margem total de mais de 11 pontos em relação a Kast, confirmando uma derrota retumbante das direitas de todos os matizes que se reuniram, mais ou menos engajadamente, em esforços para impedir o triunfo. Até mesmo organizar a disponibilização de automóveis para as pessoas irem votar, em meio a um boicote do comparecimento à eleição por parte do Ministério dos Transportes. A direita liberal sujou as mãos e não levou. E diante de tal margem de diferença, Kast não teve sequer a chance de contestar o pleito.

A que devemos esse impressionante resultado?

Em primeiro lugar, evidentemente, devido à mobilização e engajamento por parte dos ativistas e dos movimentos sociais; mas podemos observar uma conjunção mais ampla: primeiro, há aqueles que não foram votar no primeiro turno não por compactuarem com a direita, mas simplesmente por subestimar a possibilidade real da vitória do pinochetista; trata-se de pessoas que não gostavam particularmente de Boric, que até então não se sentiram atraídas o suficiente para se engajar em sua campanha eleitoral, mas que ficaram em choque com os números do primeiro turno. Depois, a quebra da credibilidade de Franco Parisi, candidato de direita do Partido de la Gente, que havia tirado um surpreendente terceiro lugar, quando denunciado por não pagar a pensão alimentícia – seu apoio a Kast passou a valer muito menos. É difícil avaliar o peso disto, mas os dois debates da última semana, ARCHI e ANATEL, foram amplamente favoráveis para Boric, com Kast saindo-se muito mal na maioria dos temas e ainda sendo surpreendido, como por exemplo quando Boric mostrou um exame de teste de drogas que o pinochetista passou a campanha toda cobrando, em uma insinuação de que o candidato da esquerda seria um drogado.

Durante o último debate, pela primeira vez desde o início da eleição, as redes sociais (dominadas por bots kastistas) passaram a ser pró-Boric: foi quando o jornalista Daniel Matamala perguntou a Kast sobre a censura a um programa infantil sob a alegação de que este ensinaria “esquerdismo radical” para as crianças. Por fim, pode ser até mesmo que o imponderável do destino tenha feito a sua parte: a morte de Lucía Iriart, aos 99 anos, a quatro dias da eleição, reforçou o tema ditadura/democracia no centro do debate político, deixando Kast entre a espada e a parede. Terminou numa posição incômoda, tendo que se se distanciar da família Pinochet e ao mesmo tempo mandando condolências. Mesmo que Lucía não fosse “a” representante do pinochetismo há algum tempo (apenas Iván Moreira ficou de seu lado quando da morte do ditador), o passado cobrava seu preço simbólico. Contra toda essa maquinária, a virada só foi possível devido a uma soma de todos esses fatores e outros ainda os quais seguramente não estamos apontando aqui.

O fato é que com essa derrota, a direita latino-americana lamenta a perda de um importante referente seu, e agora o Chile se soma a uma lista cada vez maior de países que escapam ao terror direitista, junto com Argentina, Venezuela, Peru e Bolívia, com muito maior possibilidade que qualquer outro governo na região, nesse momento, de fazer um governo memorável.

Afirmar isto está longe de depositar uma confiança cega em Gabriel Boric. Também não significa automaticamente entender esse resultado como o “fim” do pinochetismo: a campanha de Kast conseguiu reunir inúmeros quadros, captou e consolidou base, ampliou sua militância. Podemos dizer que também desde a volta da democracia os pinochetistas nunca tiveram resultado eleitoral tão favorável. Mas ficou provado que os fascistas são uma minoria política e social e que há um entendimento social comum sobre o legado nefasto da ditadura e do neoliberalismo. Do mesmo jeito que a vitória eleitoral foi fruto da luta, sabemos que qualquer mudança real somente será possível com a continuidade e aprofundamento da mesma. Não é uma solução mágica dos problemas, mas significa, no mínimo, lutar em condições infinitamente mais favoráveis.

 

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