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Três vitórias da esquerda no continente

Uma mulher ergue as mãos, em um ato, exibindo uma faixa vermelha, onde se lê: "Ya se van". Ela usa máscara, é branca e usa camisas de mangas longas.

Apoiadora de Xiomara Castro, do Partido Livre, comemora em Honduras.

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

Em 2021, quatro países latino-americano tiveram eleições presidenciais. No primeiro deles (Equador), a direita liberal triunfou no segundo turno, de forma surpreendente, com a vitória de Guillermo Lasso (52,5%) contra Andrés Arauz (47,5%), candidato apoiado por Rafael Corrêa. Naquele país, a vitória da direita foi determinada pela divisão da esquerda e abstenção de grande parte do movimento indígena no segundo turno, em virtude de sua oposição histórica aos efeitos predatórios do desenvolvimentismo propagado pelo correísmo. Ainda assim, foi uma vitória insuficiente para estabilizar a situação e o governo Lasso já iniciou frágil e enfrentando fortes resistências sociais.

Nas outras três eleições (Peru, Honduras e Chile), os vitoriosos foram candidatos de esquerda, em processos que indicam mudanças substanciais na dinâmica política latino-americana. Nenhuma destas eleições foi resultado de grandes coligações envolvendo partidos tradicionais do centro ou centro-direita, desmentindo a noção corrente de que só são viáveis candidaturas que se movem ao centro. No Peru, Pedro Castillo eleito com 50,13% dos votos contra 49.87% de Keiko Fujimori, foi candidato do Peru Libre, um partido que se apresenta como “marxista-leninista-mariateguista” e que até então era eleitoralmente inexpressivo. Em Honduras, Xiomara Castro constituiu o LIBRE (Libertad y Refundación) e foi eleita com 51,1%, obtendo maioria em uma eleição de turno único. Sua única aliança eleitoral foi com o PSH (Partido Salvador de Honduras), um pequeno partido anticorrupção recentemente constituído. No Chile, Gabriel Boric foi candidato por uma frente de esquerda que reuniu o Frente Amplio e o Partido Comunista de Chile, tendo vencido o candidato da extrema-direita, José Antonio Kast por 55.9% contra 44.1%. Ainda que no segundo turno tenha recebido apoios de organizações antipinochetistas de centro-esquerda e de centro, sua coligação Apruebo Dignidad reunia basicamente organizações de esquerda.

Cada um destes processos tem seus limites e contradições, os candidatos e seus partidos têm suas insuficiências e fragilidades, o que é inteiramente compreensível se considerarmos o estágio histórico de refluxo das organizações dos trabalhadores. Mas todos eles foram eleitos propondo conduzir transformações profundas, que implicam em enfrentamentos duros. Nenhum deles propõe a conciliação com a direita liberal como solução para os problemas ou como meio para obter “governabilidade”, e todos eles elegeram-se por investirem na ampla mobilização popular, enfrentando acirrada sabotagem midiático empresarial. É verdade que os primeiros meses do governo Castillo mostram que entre a disposição de promover transformações e sua concretização há um caminho difícil e que a ameaça golpista é real e concreta. Ainda assim, é uma experiência em curso e as mobilizações pressionam para que o processo siga em curso

Estas três vitórias mostram, portanto, que é possível vencer eleições em diferentes países sem realizar alianças com a direita liberal. Mas para além disto, há peculiaridades que aumentam a importância cada um destes triunfos. No Peru, a vitória de um candidato que se apresenta com um programa de esquerda parecia absolutamente improvável, em um país marcado pelo ultraneoliberalismo, pela fragilidade das organizações de esquerda e pelo trauma produzido pela terrível atuação do Sendero Luminoso e consequente repúdio que produziu. No país de José Carlos Mariátegui, Pedro Castillo e o Peru Libre foram capazes de expressar o Peru Profundo, convocando e mobilizando camponeses e indígenas do campo, em especial das regiões andinas, tendo obtido largas vitórias nestas regiões e com isto neutralizado a expressiva derrota que sofreu em Lima. Em Honduras, a vitória de Xiomara Castro, esposa de Manuel Zelaya, presidente deposto por um Golpe Midiático-Parlamentar em 2009, expressa a perspectiva de superação do Golpe e seus efeitos, incluindo a possibilidade de responsabilização de Juan Orlando Hernández (Partido Nacional), sobre o qual pesam inúmeras denúncias de envolvimento com narcotráfico. No Chile, além do fato de que a vitória eleitoral é consequência do extraordinário processo de mobilização social que teve seu auge com o estalido social iniciado em 2019, Gabriel Boric tem o grande desafio de confrontar o neoliberalismo no país que foi seu berço, para o que deve contar com a continuidade das mobilizações populares. Não é tarefa fácil e não se pode esquecer que mesmo com discursos progressistas, os governos da Concertación nas últimas décadas mantiveram políticas econômicas e sociais estritamente neoliberais.

Há ainda outro elemento relevante a ser destacado, que o fato de que estas vitórias de candidatos de esquerda deram-se em contraposição a uma direita truculenta, autoritária e violentamente anticomunista. No Peru, Keiko Fujimori, a filha do ditador corrupto Alberto Fujimori, fez sua campanha baseada no terror discursivo que propagava as maiores tragédias caso Castillo fosse eleito. Em Honduras, às políticas repressivas e antipopulares sustentadas pelo Partido Nacional soma-se sua relação nebulosa com grupos de extermínio e organizações criminosas. No Chile, é conhecida a admiração de Kast por Augusto Pinochet e suas posições extremistas de direita que o levaram a ser designado como “Bolsonaro chileno”. Em todos os casos, portanto, a vitória da esquerda foi também a derrota de uma direita radical e que precisa ser combatida sem tréguas, e que só será derrotada se os governos de esquerda colocarem em prática as transformações profundas que são urgentes e necessárias.