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Ninguém merecia um debate assim

Reprodução/Redes Sociais

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Dobrado é o perigo de quem foge ao inimigo
Provérbio popular português

A má notícia é que, depois do primeiro debate, aumentou a probabilidade que as eleições presidenciais de outubro sejam decididas em um segundo turno. O mais relevante do primeiro debate presidencial não foi o descontrole misógino de Bolsonaro, as tergiversações de Lula para não aumentar a taxa de rejeição, a “performance” de Simone Tebet, a exaltação anti-estatista de Felipe D’Ávila, ou o delírio de imposto único de Soraya Thronicke.

Análises “técnicas” do desempenho de cada candidato, quando não estão contextualizadas pela relação de forças, e pelos interesses de classe que explicam a luta pelo poder são, politicamente, diletantes. O que está em disputa é imenso, dramático e muito perigoso.

Ninguém em sã consciência desconhece que a eleição presidencial será decidida entre Lula, uma liderança de esquerda reformista moderada e Bolsonaro, um neofascista alucinado. O país está dividido política e socialmente. Lula é favorito, mas Bolsonaro expressa uma candidatura de extrema-direita com influência de massas. O que interessa é saber é se será no primeiro ou no segundo turno. Acontece que, se for no segundo turno, o perigo das ameaças golpistas aumentam, desproporcionalmente.

O que terá, realmente, importância nas próximas cinco semanas será o papel de Ciro Gomes. Ciro cumpre um papel perigoso nestas eleições. A questão relevante, crucial, fundamental é que Ciro Gomes é hoje o maior obstáculo para que Lula vença no primeiro turno. A intenção de votos que ainda mantém será decisiva para que haja ou não um segundo turno. Se a maioria dos, aproximadamente, cinco milhões que simpatizam com Ciro Gomes optarem pelo voto em Lula para garantir a derrota de Bolsonaro não haverá um segundo turno.

Estas eleições não são normais. Um neofascista ocupa a Presidência e vai tentar a reeleição.

Estas eleições não são normais. Um neofascista ocupa a Presidência e vai tentar a reeleição. Quem não compreende isto não entendeu nada, absolutamente, nada do que aconteceu no Brasil desde 2016. A estratégia de Bolsonaro é garantir, sim ou sim, que haja um segundo turno, o que neste momento é incerto. O plano de Bolsonaro é preparar a mobilização golpista de sete de setembro para intimidar a justiça, aterrorizar a esquerda e conquistar um impulso de arrastão eleitoral que garanta sua presença em um segundo turno.

Se for derrotado no primeiro turno, Bolsonaro não poderá organizar, com a mesma desenvoltura, audiência e autoridade uma campanha-denúncia de que a eleição foi fraudada, e colocar em marcha a mobilização de sua base social mais radicalizada nas camadas medias exasperadas. Não poderá, porque as eleições de dois de outubro são eleições gerais. Todos os governadores, toda a Câmara de Deputados e um terço do Senado serão eleitos, também. Entre eles, não poucos bolsonaristas. Na estratégia de Bolsonaro é essencial levar a disputa da presidência para o segundo turno. Por isso, para Bolsonaro, a candidatura de Ciro Gomes é, objetivamente, funcional.

Lula não precisa de 50% mais um dos votos no primeiro turno para vencer. Basta que tenha mais votos válidos que a soma de todos os outros concorrentes. Neste momento, Lula pode vencer no primeiro turno. O que teria importância decisiva, diante das sucessivas ameaças de Bolsonaro ao processo eleitoral, a constante mobilização contrarrevolucionária nas ruas, desde o 7 de setembro até o 1º de maio, e o projeto bonapartista de impor uma derrota histórica à classe trabalhadora e os aliados oprimidos.

“Diz, espelho meu, existe alguém mais honesto do que eu? Diz espelho meu, existe alguém mais preparado do que eu?” Estas brincadeiras são muito comuns quando se trata de Ciro Gomes, candidato pela quarta vez à presidência da República. Ciro Gomes é uma liderança inteligente que impressiona pelo seu grau de articulação e habilidades polêmicas. Estas qualidades pessoais explicam o desempenho no primeiro debate das eleições de 2022. Mas não esclarecem sua insistência obtusa em se apresentar como candidatura de uma “terceira via”

Teimoso e messiânico é um caudilho em busca de um “destino”. Obstinado e personalista, o PDT é o sétimo partido pelo qual concorre a eleições. Messiânico e até meio bonapartista, procura explicar a viabilidade de suas promessas desenvolvimentistas na força simbólica do cargo presidencial. O apelo do discurso de Ciro Gomes repousa na promessa de uma “pacificação” política que não é possível enquanto a ameaça neofascista não for derrotado. Mas Ciro Gomes já deixou claro que não considera que haja perigo imediato e real.

Argumenta que, se eleito, renunciará à disputa de reeleição para um segundo mandato e, com este gesto, poderia garantir apoio no Congresso Nacional suas propostas. Apesar do episódio indesculpável da viagem para Paris em 2018, ainda desperta um desconcertante fascínio sobre uma parcela do povo de esquerda que admira seu estilo frontal, e guarda algum grau de crítica, pela direita, centro e até pela esquerda, ao PT.

Alguns alimentam a ideia ingênua de que Ciro Gomes se situaria “à esquerda” de Lula. Este tipo de avaliação depende da “régua”, ou seja, dos critérios. Numa avaliação marxista, portanto, orientada por critérios de classe esta opinião é indefensável. Quando consideradas opiniões circunstanciais, é algo impossível de saber, porque os dois estão em “perpétuo” movimento.

Mas, há uma diferença muito importante. Lula cumpriu um papel insubstituível na construção do PT, preservando relações orgânicas com os principais movimentos sociais, enquanto Ciro é um político profissional errático.

A atração que Ciro exerce sobre uma parcela das camadas medias assalariadas de escolaridade media e alta inclinadas à esquerda é significativa. Não se explica somente pelas frustrações da experiência dos treze anos de governos Lula e Dilma Rousseff. Ciro Gomes se apresenta como terceira via defendendo um projeto desenvolvimentista inspirado na ideia de que um capitalismo regulado pela ampliação do mercado interno turbinado pela expansão de um crédito mais barato para consumo e investimento pode impulsionar crescimento com justiça social e responsabilidade fiscal. Insiste, obsessivamente, também, no perfil “mãos limpas” e tem um apelo.

Mas a estratégia de Ciro Gomes não parece ser a disputa a sério da eleição de 2022, embora nunca se deva subestimar o grau de autoengano narcisista. Mesmo no Ceará está em terceiro lugar, com menos de 10%. O objetivo realista de Ciro Gomes não pode ser senão sobreviver. Ambiciona manter posições e ocupar um lugar para o que der e vier em 2026, ou mesmo depois. Trata-se de um cálculo personalista que repousa na avaliação de que, mesmo não sendo competitivo agora, ainda tem tempo para um futuro.

Não Ciro, não é pessoal, mesmo.